Conversa de Sábado à Noite (Alagoas, 1º andar) – 8/4/95 – sábado – p. 19 de 19

Conversa de Sábado à Noite (Alagoas, 1º andar) — 8/4/95 — sábado

Todo homem tido por normal na minha geração tinha como elemento fundamental para obter a felicidade terrena o ter segurança econômica e saúde estável * Havia certas pessoas que sabiam que não estavam no píncaro do edifício da felicidade, mas em um estado de coisas que lhes dava uma posição razoável, equilibrada: a classe do fazendeiros * Esse homem mediano na fazenda, na cidade era um importante e se sentia o primeiro * O felizardo é um sujeito que entrou em um círculo mais elevado do que aquele que lhe toca, e foi servido por várias circunstâncias boas que fazem com que lhe aconteçam felicidades * Dª Leonor, uma senhora mediana que passava por felizarda * Havia um bar, chamado Bar Viaduto, que era assim também onde se formavam rodas de felizardos * Uma pessoa que atraísse os outros pelo ideal tinha uma vida muito dura porque os prazeres do espírito estavam completamente aniquilados * O salão da sede da Rua Imaculada Conceição ressuscitava o gosto pelos ideais, o gosto pela cultura, o gosto pela civilização, e isto em pleno vaso da Religião * Os economistas, que estudavam economia política, eram fundamentalmente utilizados para espalhar no mundo a industrialização * Com a industrialização não houve uma negação da Fé, não houve uma negação de ideais; houve uma coisa que dizia: “Fé não tem importância, ideais não são nada: ganhe!”

Eu sentiria a tarde muito vazia se eu não tivesse os meus… como é? Insuportáveis, não, como é?

(Sr. Paulo Henrique: Insuportados.)

Insuportados.

(Sr. Poli: Ou complicados.)

Complicados, complicados, é isso.

Ave Maria…Gloria Patri… Gratias Agimus… Benedictio…

Não quero lhes dar a mão porque não quero contagiar a ninguém.

Então, meu Guerreiro, como vai você?

Distância!

(Sr. Guerreiro: Não, o senhor não pega. Se pegar acho que é uma bênção, senhor.)

Olha lá!

(Sr. Guerreiro: E o senhor como está passado?)

Graças a Deus bem melhor, mas muito…

(Sr. Guerreiro: O senhor está com boa cor.)

Tal será que não estivesse. Passei a tarde de hoje dormindo.

(Sr. Guerreiro: Mas está com boa cor.)

Graças a Deus. Ao menos isso, não é?

(Sr. Paulo Henrique: Pôde descansar um pouco.)

Vamos sentar.

Como é, temos mais quem? Quem está faltando?

(Sr. Paulo Henrique: O coronel estava lá com um telefonema, resolvendo casos, sempre muito tomado com trabalhos ultimamente. Mas o Sr. Guerreiro tinha uma pergunta preparada.)

(Sr. Guerreiro: O Sr. Gonzalo deu um jornal-falado da reunião da semana passada e do que o senhor falou na semana passada…)

Como é, meu coronel, liquidou o seu telefonema?

(Sr. Poli: Senhor, eu estava arrumando umas coisas.)

Então diga.

(Sr. Guerreiro: [Dá a ponta-de-trilho]. O senhor não poderia entrar um pouco nesses outros pontos, para que nós pudéssemos tirar da reunião passada todo o fruto que, dada a gravidade da coisa, seria necessário que nós tirássemos?)

* Todo homem tido por normal na minha geração tinha como elemento fundamental para obter a felicidade terrena o ter segurança econômica e saúde estável

Eu acho que isso se prende, no fundo, ao seguinte:

Todo homem tido por normal na geração minha e, portanto, na geração que corresponde aos pais de vocês, todo homem assim posto na atmosfera de Bagarre azul, mas mais antigo ainda, posto na atmosfera que precedeu a I Guerra Mundial e depois da atmosfera entre-deux-guerres, era fundamentalmente feito da seguinte maneira:

Ele tinha uma idéia de felicidade terrena. Essa idéia de felicidade terrena se constituía de alguns elementos.

O elemento fundamento fundamental era ele ter uma segurança econômica que dava a ele a possibilidade de levar uma vida segundo certos padrões que eu vou descrever daqui a pouco.

Depois, ele tinha que ter também saúde estável e que não fizesse com que ele estivesse pensando continuamente na sua própria saúde. Isso [lhe] tornaria a vida enfadonha e insuportável.

A saúde é uma coisa que se definia assim: é o estado em que não se pensa em saúde. Isto é a saúde, o homem saudável não pensa em sua própria saúde. Se ele começa a pensar em sua própria saúde, ele é doente e entra numa outra categoria de pessoas que não é essa gente de que estou falando aqui.

Depois, a sua consideração social também dependia de certos fatores, em que era preciso que…

* Havia certas pessoas que sabiam que não estavam no píncaro do edifício da felicidade, mas em um estado de coisas que lhes dava uma posição razoável, equilibrada: a classe do fazendeiros

Havia certas pessoas que sabiam bem que elas não estavam no píncaro do edifício, mas elas pensavam que tinham uma situação tal que, sem estar no píncaro do edifício, podiam viver como quem estivesse no píncaro do edifício. Não quer dizer o seguinte: gozar a vida larga, como os habitantes do píncaro gozavam, mas é uma coisa diferente. Ela tinha um estado de coisas que lhe dava uma posição decorosa, decente, razoável, equilibrada. Este estado fazia parte da felicidade, e quando a pessoa não tinha isso, não tinha felicidade.

Por exemplo, é muito característico: uma classe que eu conheci mais ou menos ao mesmo tempo, muito de perto e muito de longe, foi a classe dos fazendeiros.

Havia, por exemplo, fazendeiros que eram alguém na grande cidade que era a capital do respectivo estado. Então eles eram alguém, ainda que eles não tivessem a fazenda, mas eles tinham na grande cidade bens, haveres, que lhe davam a situação média. Mas uma situação média folgada, com o colarinho largo, despreocupada e alegre.

Essas pessoas sabiam que havia quem era mais do que elas, mas elas sabiam também que elas tinham um estado do mediania e de suficiência muito agradável, que lhes facultava de serem inteiramente independentes, não precisarem agradar a ninguém para ter uma situação, não precisavam bajular ninguém, não precisavam estar economizando nem nada disso. Elas viviam com a naturalidade com que um rio caudaloso flui para as águas que o conduzirão afinal ao oceano.

Vamos dizer, por exemplo, o que seria um exemplo disso: o Rio Tietê, que hoje é uma cloaca. Mas imaginem que em vez de ter água suja lá dentro, tivesse água. O Rio Tietê não é um grande rio em nenhum sentido da palavra, mas é rio de uma boa massa de água, com uma boa distância entre as margens, percorrendo uma zona que não é uma zona de chiqueiros nem de favelas, mas é uma zona também na qual se pode morar. Esse rio não é do primeiros do Brasil nem de longe, mas ele tem uma situação por assim dizer política. Ele percorre uma cidade que lhe dá uma certa importância simplesmente por estar em São Paulo.

Isto tudo dá ao Rio Tietê uma mediania entre os rios Brasil que não é fácil de descrever, mas que o exemplo do Tietê talvez sirva para localizar o que é que eu quero entender por esta mediania.



(Sr. Poli: Está longe de ser uma riacho.)

Está longe de ser um riacho, mais longe ainda de ser o Amazonas, mas é um bom rio.

(Sr. Paulo Henrique: E tem história.)

Tem história.

Isso faz muito papel no status de um rio, ele tem história. Ali desembarcou Fernão Dias Paes Leme, com as botas sujas, as mãos imundas, um resto de cuscuz no caixote que ele vinha trazendo, mas vinha trazendo flores secas das margens de perto do Oceano Pacífico. Chegando, encontra a senhora e diz para a senhora: “senhora, trago-vos flores do Pacífico. Vós a mereceis”. Tira debaixo umas flores secas e dá para ela. Ela fica contente, prende com uma agulha deste tamanho aqui no corset dela, e volta para casa satisfeita.

É um episódio da vida das bandeiras, está acabado, está natural.

(Sr. Poli: O senhor comunicou tanta vitalidade ao exemplo, que dá vontade de sorrir.)

* Esse homem mediano na fazenda, na cidade era um importante e se sentia o primeiro

Mas era assim, não é?

Bom, essas pessoas nesse estado de mediania — sem compreender estado de mediania, não se pode entender a coisa — ao mesmo tempo tinham fazenda, e na fazenda esse mediano da cidade era um importante. Ele era na cidadezinha Alfenas… Alfenas nem sei onde é que fica.

(Sr. Paulo Henrique: Em Minas.)

Minas? Então deixa escolher outro exemplo, não é, meu filho?

(Sr. Paulo Henrique: Não, não, mas está excelente!)

(Sr. Guerreiro: No Paraná e Londrina ele era uma pessoa que tinha relevo.)

Londrina já é grande de mais. Não havia Londrinas, havia…

(Sr. Paulo Henrique: Alfenas, Alfenas está bom.)

Eu não sei, de repente você é de Alfenas, não quero lhe… hahahaha!

(Sr. Paulo Henrique: Não, não!)

Mas um lugar qualquer. Vamos dizer, Miracema. Então, Miracema.

Em Miracema ele era outro homem. Ele se sentia o primeiro, vestia botas, montava a cavalo, mas sem elegância de equitação nem nada, ele montava de um modo prático. Andava a cavalo com arreios semigastos, mas feitos para duraram muito. Um chapelão feito para proteger contra o sol, mas que era discretamente um símbolo de mando. Uma varinha na mão aparentemente para apressar o cavalo, mas realidade para bater no moleque que permitisse jogar uma bombinha no cavalo dele ou qualquer coisa assim eficientemente.

A casa dele é antes de tudo uma casa caipira, com um chão lavado, bem lavado, mas não encerado. Nas cortinas não havia tecidos, havia panos pendurados, quando havia cortina, quando não era umas folhas de pau que substituam a veneziana, com que a pessoa fechava a janela. Cadeiras de balanço enorme, nas quais a pessoa podia quase fazer esporte, e que tinham três ou quatro crianças brincando na mesma cadeira de balanço, meio furada por causa disso. Comida à vontade, tanto quanto queria, mas comida caipira. E uma espécie de alegria de viver, mas de viver fazendo barulho.

Se ele entrava na avenida principal de Miracema, ele entrava a cavalo com um pouco de pressa, com um chapelão um pouco a la três mosqueteiros, etc. Parava, e de seu cavalo mesmo gritava para o fornecedor:

Quincas, não deixe de me mandar caninha hoje, hein! Olhe, da outra vez você esqueceu, hein!

O Quincas vinha como quem vê nascer o sol, e dizia para ele que não, oferecendo já para ele um cálice de pinga para ele tomar no lugar.

Essa não está boa, Quincas!

Não, mas é das melhores!

Eu amolando você um pouco. Até logo, Quincas — varada no Quincas e ia para frente.

Cumprimentava o padre com muito respeito, mas à distância, porque o padre é o reino da caceteação. A gente não se deve deixar devorar pelo reino da caceteação.

* Tudo era uma alegria expansiva de pequeno mandarim caipira e não de doutor da cidade; o homem mediano representava ao mesmo tempo os dois papeis

A madame dele era do mesmo gênero, mas raramente montava a cavalo. Ia num carrinho qualquer puxado por um cavalo ou dois cavalos, com um cocheiro na frente e ela atrás. Assim, o carro sacudindo e ela sacudindo com o carro. Era assim que eles faziam.

Ali eram as horas da predominância, em que eles achavam que… etc.

Uma vez ou duas na vida iam para a Europa e traziam da Europa vestidos elegantíssimos, comprados nas casas que vendiam a última moda de há três anos atrás e que, portanto, era mais barato. Ele trazia roupas, trazia coisas para os nenês, trazia presentes para todo o mundo, inclusive para os cabos eleitorais.

(Sr. Guerreiro: Até para a empregada deles também.)

Para a empregada é claro, a empregada é membro da família.

Tudo junto era então uma alegria expansiva de pequeno mandarim caipira, e não de doutor da cidade. Ele representava ao mesmo tempo os dois papeis.

Este tipo assim tinha negócios seguríssimos, as finanças do país seguríssimas, tudo o mais sólido possível. De maneira que não lhes acontecia nada e eles viviam alegres e como um sol que não aparece num dia extraordinário, mas num dia comum. Um bonito sol de dia comum eram eles.

Esses assim na cidade levavam a vida social da cidade em ponto pequeno: cinema de bairro, confeitaria de bairro, fotógrafo de bairro para fotografar as crianças que tinham feito a Primeira Comunhão, tudo no bairro. O bairro era uma miniatura de cidade como a fazenda era uma miniatura de país.

Assim viviam eles, seguros, alegres, medianos, tendo pouca gente abaixo de si e ninguém acima. Porque eles não se incomodavam com os que estava acima, eram um simulacro de situação perfeita.

Eu não sei se vocês nos respectivos estados ou países conheceram situações destas ainda. Eu conheci às torrentes, o Brasil era um tecido disto.

(Sr. Paulo Henrique: Eu conheci, senhor. E Vivi um pouco disso.)

Viveu um pouco disso.

(Sr. Paulo Henrique: Enfim, em tom bem baixo, mas vivi um pouco disso.)

* A idéia de estabilidade, de normalidade, de mediania, era a representação da alegria, da segurança e, até certo ponto, da honra na vida

Porque todo o mundo mais ou menos quando ia para a fazenda vivia um pouco disso. A vida da fazenda, do fazendeiro rico, ainda tinha um pouco disso. Já não estou falando do fazendeiro mediano que eu tentei representar.

Eu não sei se vocês têm idéia de que isto só se rompia, esse cerco, em favor do médico. Quer dizer, quando eles se sentiam doentes, eles em geral iam para o médico conhecido, que era o médico da família, que tinha a fama de curar reumatismo bem depressa, pedra no fígado dá um liquido verde para o sujeito tomar e passava logo a pedra no fígado, etc. Mas que eles sabiam que quando começava a apalpar no diagnóstico, não adiantava, ele não estava vendo, então iam para o grande médico da cidade. Ou, então, o maior médico do Rio de Janeiro, que era o centro, o sol dos médicos. Então ia todo mundo para o médico do Rio de Janeiro, mas aproveitavam para passar dez dias, quinze dias no Rio folgando, e depois voltavam para as respectivas fazendas.

Isso formava uma idéia de estabilidade, de normalidade, de mediania, que era a representação da alegria na vida, da segurança, e até certo ponto da honra na vida. Quer dizer, o sujeito que alcançava um estado assim, tinha um estado de honra. Não era um estado eminente, não era um estado desses, mas era um estado honrado, e assim era tido e havido pelos outros, etc.

Esse quadro está bem claro ou não?

(Sr. F. Antúnez: Com relevo se diria.)

Em relevo. É, eu pus as cores mais vivas que podia, porque eu acho que, ou se colore isto com cores de verdade mas uma verdade parlante, ou não se tem a sensação, o sabor da realidade que a coisa deve dar.

* O felizardo era o homem rico, que tem um grande nome e que mais ou menos no Brasil inteiro se sabe qual é a família dele; mas era a exceção

Esta situação era tida como o normal. O homem que tinha essa situação não era um felizardo, ele era uma homem confortável, instalado na vida confortavelmente.

Mas não se considerava que um homem desses era um felizardo. Felizardo era outra coisa. Era o homem rico, que tem um grande nome, que mais ou menos no Brasil inteiro se sabe qual é a família dele, o que é que é, que na capital de seu próprio estado na melhor rua da cidade — no Faubourg Saint-Germain da capital — tinha uma bonita casa e que ia várias vezes na vida para a Europa. Esse era o felizardo.

Mas o felizardo era exceção, eram poucos os felizardos, e a pessoa tomava como felizardo a atitude que toma quando vai ao circo e vê entrar alguém na corda bamba. O sujeito olha o sujeito andar na corda bamba, com aquela história, cai, não não cai.

O sujeito está em baixo olhando e pensando: “Se ele chegar do outro lado, ele vai ter uma salva de palmas e vai ganhar um bom dinheiro. Se ele cair, está morto. Ele é um felizardo? Quando chegar do lado de lá ele é felizardo, até recomeçar, porque quando recomeçar, a tortura da vida começa de novo.

Eu que nunca recebi uma salva de palmas, que nunca receberei, que quando vou ao circo compro uma frisa no circo para me sentar com minha família, mas que nunca andei em corda bamba nenhuma, eu que apoio o meu queixo na bengala para olhar bem direito para ver como é que está fazendo aquele sujeito, eu não sou um felizardo, eu tenho os dons médios da vida.”

* O felizardo é um sujeito que entrou em um círculo mais elevado do que aquele que lhe toca, e foi servido por várias circunstâncias boas que fazem com que lhe aconteçam felicidades

Acontece que o dom médio da vida não está sujeito ao risco dos felizardos. Porque o felizardo em geral é um sujeito que entrou em um círculo mais elevado do que aquele que lhe toca, arranjou um dinheiro maior do que o comum das pessoas da roda dele arranjou, e foi servido por várias circunstâncias boas que fazem com que o sujeito… lhe acontecem felicidades.

Falava-se muito em sorte. Eu não sei vocês ouviram falar muito de sorte, no meu tempo se falava muito de sorte. Um pouco de bruxedo, um pouco desta mulheres que predizem o futuro, entrava um pouco, mas entrava.

O felizardo era tido como uma pessoa em cuja biografia estava de soslaio, de embosca, a sorte, e era freqüente que ou uma figura mitológica passasse em cima dele e deixasse cair perto dele um saco de ouro, ou estando ele na corda bamba, de repente tivesse uma tontura ou simplesmente uma vontade de espirrar, espirrasse e estatelava no chão.

O homem que tinha situação plenamente invejável conforme o temperamento era o felizardo ou o homem normal. E os pais ensinavam aos filhos que a situação que eles tinham era normal, era a boa. O felizardo dava a entender ao filho que, ou o filho seria felizardo como ele, ou não seria nada. E o homem seguro assim dava a entender para o filho que o gostoso é estar seguro e não ter aborrecimentos, e que esses loucos que andavam na corda bamba eram doidos, porque tinham uma coisa que não pode ter, é uma aflição, é uma preocupação.

A despreocupação, a não aflição, o gozo da vida tranqüila mediana era propriamente o gozo da vida. O resto não valia nada.

Correspondia a isso duas posições do indivíduo perante a vida. Um queria ser como o pai, o normal, e o outro queria ser como o pai também, o felizardo. Mas felicidade era naquela dupla pista: ou uma pista ou outra, o resto era coisa que…

Havia casos singulares.

* Dª Leonor, uma senhora mediana que passava por felizarda

Eu conheci, por exemplo, perto da casa de vovó, uma senhora que passava por felizarda. Agora vejam a história dessa senhora. Eu vou reduzir ao máximo.

Ela era aleijada, eu não sei o que é que ela tinha que as duas pernas não funcionavam. Tinha uma casinha perto da casa de vovó, que era uma casinha confortavelzinha, eu julgo que do lado de fora era bem arranjadinha, mas tudo muito mediano. Uma Da. Leonor não sei do quê.

A Da. Leonor passava por ser espirituosíssima, engraçadíssima. Apesar de ser aleijada deste jeito, ela reunia, toda a noite em casa dela tudo quanto [era] homem de inteligência saliente em São Paulo. Iam sem as esposas, as mulheres não freqüentava, porque a mulher não se interessava por essas coisas. Iam só os homens.



São Paulo tinha uma coisa naquele tempo que eu notei quando estive em Minas, que havia também. Por exemplo, no Rio eu notei menos. Alguma coisa disso havia em Curitiba, em Porto Alegre. Menos em Ribeirão Preto, meu Edwaldo. Não conheço senão poucas cidades do estado do Rio. Havia muito, proliferando, em Buenos Aires. Era o seguinte: não tendo propriamente um grande número de intelectuais, mas tendo um certo número de homens bem inteligentes, bem lidos e que gostavam de ter conversa sobre cultura, esses homens arranjavam uns bares ou uns clubes onde se reunir para conversar, e nas rodas deles só ia quem era de uma inteligência saliente para o nível da cidade.

* Todas as noites do ano Dª Leonor as tinha tomada e não havia uma senhora da sociedade que conseguisse uma coisa dessas

A casa da Da. Leonor era um lugar desses, e os homens mais cultos, mais inteligentes, em geral de classe média-média, iam à casa da Da. Leonor. Eles se reuniam à noite; de dia eles tinham que trabalhar.

Quando a gente passava em frente da casa da Da. Leonor à noite e a noite era boa, as janelas estavam abertas e a gente via aquelas gargalhadas de homens. Homens com timbres de voz naturalmente diferentes, rindo, mas que a gente percebia que eram risadas inteligentes, de gente que sabia fazer da arte de ter graça, de ser engraçado, uma expressão da inteligência e não um chacoteiro qualquer.

A Da. Leonor tinha uma hora certa onde os médicos recomendavam a ela para ir deitar. Aparecia uma enfermeira, uma coisa assim, e punha a Da. Leonor, não sei como, nas costas. Era uma bichaça. A Da. Leonor ia montada na bichaça dela para a parte de dentro da casa e as últimas pessoas ainda gritavam coisas para a Da. Leonor, por causa do espírito da Da. Leonor. A Da. Leonor, de longe, ainda dizia alguma coisa.

Todas as noites do ano a Da. Leonor tinha tomadas. Isso deixava o pessoal, que não era da roda da Da. Leonor, com um certo desprezo pela Da. Leonor, porque aquilo era ambiente de gentinha. Mas, por outro lado, com uma inveja, porque não havia uma senhora da sociedade que conseguisse uma coisa dessas. De maneira que, então, Da. Leonor era reputada uma felizarda.

* Havia um bar, chamado Bar Viaduto, que era assim também onde se formavam rodas de felizardos

Havia um bar, chamado Bar Viaduto, perto do Largo de São Bento, que era assim também. Era conhecido pela importação de cervejas e queijos extraordinários e camarões vindos de Santos. Então, tinha nas vitrines cálices com camarão, assim postos os camarões dentro do cálice, e dentro um molho especial. As pessoas que chegavam lá atraídas por aquilo, entravam e comiam daqueles camarões. Era uma comilança de primeira ordem.

Aí não era tanto a inteligência. Era a gastronomia, que é uma forma da inteligência: gastronomia e beberrança. Aí não iam senhoras, mas iam os homens que sabiam divertir-se.

Eu quero crer que a grande prosa lá não fosse simplesmente a dévergondage, a sem-vergonhice, portanto, a imoralidade, mas que eram prosas sobre literatura: literatura portuguesa, literatura francesa, um pouquinho de literatura inglesa, alemã nunca, e daí para fora. Constituía uma outra roda, mas assim de felizardos, a seu modo.

Eu em Curitiba eu notei muito disso. Da. Leonor eu só vi em São Paulo.

(Sr. Guerreiro: Eu não me lembro assim. Não havia. Pelo menos no meu tempo.)

Não havia, não é?

(Sr. Guerreiro: Não.)

É.

Mas o outro gênero, por exemplo, esse tipo Bar Viaduto, em Curitiba tinha muito melhores do que os Bares Viaduto de São Paulo. Era uma coisa excelente, atraentíssima, onde o apetite alemão estava largamente presente, não é? Pães, manteigas, coisas formidáveis em quantidade.

Aqui vem agora a questão.

* O rapaz com a minha idade formava-se vendo na vida uma feira de graus diversos de felicidade e que na vida seria um infortunado se não tivesse um encaixe nesses graus

O rapaz com a minha idade, ou mais moço do que eu, formava-se vendo isto, e vendo na vida uma feira de graus diversos de felicidade. Ele tomava como a coisa mais natural do mundo que se encaixasse num daqueles graus, e que na vida seria um infortunado se não tivesse um encaixe nesses graus. Mas também a vida encaixada num desses graus era uma delícia, passava por ter fruições e satisfações extraordinárias! Todo mundo era candidato a um pedaço de bolo desse banquete, não tinha por onde escapar.

Isto fazia a própria definição da felicidade e da normalidade nesse tempo.

Não sei se vocês concordam com…

(Sr. Paulo Roberto: Perfeitamente.)

(Sr. Guerreiro: Depois, com uma espécie de sugestão. Em certos ambientes criados por esses grupos de pessoas havia uma espécie de espírito, de presença desses ambientes, com uma intensidade, com uma sugestão, com um atrativo que a gente vê que caiu, mas caiu assustadoramente.)

Não há mais.

(Sr. Guerreiro: Não há mais isso. O senhor, por exemplo, falava de certos bares, certos hotéis.)

Curitiba era a cidade dos bons hotéis, hein!

(Sr. Guerreiro: Tinha um hotel na Rua XV que hoje está superdecadente, acabou o seu tempo. O hotel tinha um ambiente que a gente tinha impressão que era um ambiente criado por pessoas, porque só um certo gênero de pessoas é que freqüentava aquele hotel. Aquilo tinha um interesse, tinha um encanto, com essa sensação de estabilidade, de vida bem organizada, vida acertada, etc. A gente vê que no Brasil havia “n” coisas assim. Europa, então, nem se fala.)

Na Europa nem sei até o que dizer!

* Nestes ambientes havia muito pouco espaço para os ideais, para a cultura desinteressada, pelo gosto da vida de inteligência

O que não cabia nisto — tinha na Europa e não tinha no Brasil, na Argentina tinha mais, mas no Brasil tinha — era o seguinte: papel para ideais, papel para a cultura desinteressada, unicamente cultural, pelo gosto da vida de inteligência e pela inteligência. Isto tinha muito pouco aqui e eu vi pouco também em Curitiba.

(Sr. Guerreiro: Ah, não tinha.)

Não tinha, não é? Simplesmente não tinha.

(Sr. Guerreiro: Salvador tinha, senhor.)

Ah, Salvador eu posso crer.

(Sr. Guerreiro: Eu vi, isso menino. […] Por exemplo, o Juarez Távora é um mito. Aqui em São Paulo, mas é um mito.)

Mas tinha do que ser um mito, porque quando ele era deputado eu o vi falar uma vez. Era um orador brilhante e nunca alguém aqui em São Paulo dizia que ele era um orador brilhante. De maneira tal que, quando o presidente da assembléia, o Antônio Carlos, noticiou: “Vai falar o Sr. Ministro de não sei o quê, o Gal. Juarez Távora”, eu pensei: “Se eu soubesse me levantava antes dele subir para falar, porque deve ser uma besta. Mas agora tenho que agüentar, porque ele vai ver que alguém se levantou quando entrou e vai perguntar quem é.” Então eu fiquei sentado.

Quando ele começou a falar era um sortilégio, ouviu? As palavras saíam da boca dele como as notas musicais saem de um instrumentos. Era uma coisa admirável, mas era uma exceção.

* A pessoa ia fazendo cálculos de acordo com o padrão dos pais e essa situação cortava completamente o acesso ao idealismo

Eu queria me fixar neste ponto: que, então a pessoa, por exemplo, era aluno de ginásio ou de colégio, já ia fazendo cálculos de acordo com o padrão dos pais e dos tios, etc. Se era um homem mais ativo assim, ele tendia a alguma coisa mais. Mas a maior parte não era ativa assim, eles queriam aquilo mesmo. O gosto deles era de sentar ali e estabilizar a vida lá, contentona e satisfeita.

Esta situação cortava completamente o acesso ao idealismo. Por esta razão que você acabou de mencionar. Na Bahia as inteligências [são] muito vivas. [Há] muito boas inteligências em outros estados, mas muito menos brilhantes, e o brilho das idéias, o brilho da conversa, pesando muito pouco da Bahia para cá. De maneira que, ter bonitas idéias, lançar frases bonitas e ser admirado por isso, muito pouco.

Se um tipo assim fosse parar, por exemplo, no interior, numa fazenda, a prosa da família não subia até ele. Ele é que tinha que descer para conversar à altura da família, porque a família não toleraria a caceteação de se elevar até os problemas dele. E se ele, depois de ter lido o jornal, dobrasse e quisesse falar de política internacional, eu tenho a impressão que… se fosse um fato sensacional, se falava uns minutos. Se não fosse isso, não era nem isso, não tinha nada. E política do Estado também não tinha nada, a menos que a cidade do interior fosse uma cidade muito politizada. Mas aí era politizada sem idéias, era por interesses pessoais.

(Sr. Paulo Henrique: Isso no tempo, senhor, representa até que ano? “Plutôt” século passado ou já entrando neste século até à década de trinta?)

Mais do que a década de trinta. Eu tenho a impressão que até o Getúlio começar a industrialização e a Revolução Industrial no Brasil houve isso.

(Sr. Paulo Henrique: Até cinqüenta, por aí?)

É, exatamente.

(Sr. Poli: Morreu com a Revolução de sessenta e quatro, não é, senhor?)

De trinta e dois, você quer dizer.

(Sr. Poli: De sessenta e quatro.)

Qual foi a Revolução de sessenta e quatro?

(Sr. Poli: Essa dos militares.)

Ah, sim. Ali acabou de morrer.

(Sr. Poli: Acabou mesmo.)

Acabou de morrer.

* Uma pessoa que atraísse os outros pelo ideal tinha uma vida muito dura porque os prazeres do espírito estavam completamente aniquilados

A ausência de qualquer ideal, a ausência de qualquer surto de inteligência que fosse um pouco maior, a gente notava pelo seguinte: é que era raro, ou difícil, que uma pessoa atraísse os outros por essa razão, e a vida de quem só tivesse isto para viver era uma vida muito dura.

Estabelecia-se a seguinte situação: quando o sujeito, nessa ordem, conseguia um resultado, ele ainda era malvisto.

Eu me lembro uma festa onde eu fui, aqui perto do cinema Roma. Era uma casa muito boa, em estilo neo-medieval muito boa. O dono da casa era um catedrático da Faculdade de Direito e um grande advogado. Convidaram-me para festa — eu era novo da Congregação Mariana — e fui à festa.

Encontrei uma roda de dois, três rapazes que começaram a conversar comigo sobre uma coisa e outra, e eu elevei um pouco a nota da conversa. No fundo tinha uma sala onde eles dançavam e depois tinha uma sala que era um living da casa, mas que ficava mais no fundo, e que estava vazio porque a festa se dava noutra parte da casa.

Eu disse para eles:

Olhem, vamos lá no fundo, nós damos uma prosa de meia horazinha, aí a gente conversa e trata desse assunto.

Fomos lá para o fundo e daí há pouco, pouco a pouco, os rapazes da festa passaram todos para a nossa roda e a festa ficou com risco de fechar.

Apareceu, então, uma senhora com ar assim toda engraçada e disse:

Vocês estão muito tristonhos aí no fundo — nós estávamos conversando debandadamente. — Tem moças tão bonitas aqui na frente. Venham aqui, eu vou apresentar para vocês, e não sei o que.

Já estavam apresentadas, já tinha conhecido, era bobagem.

Eu fui dos primeiros a me levantar, porque eu percebi que a festa ia fechar, que ficava eu como o fechador de festas e ia dar logo máfia. Então eu me levantei e fui com outros lá para o salão.

A sem-gracês da coisa era medonha. Tinham posto no salão um pára-vento e de um lado do pára-vento — um pára-vento um pouco alto — as moças todas com as mãos do lado de cima do pára-vento. O rapaz ia lá e escolhia o par de dança de acordo com a mão que aparecia.

(Sr. Guerreiro: Caixa de surpresas.)

Faça idéia, cada leoa que saía!

Essa moça, essa que estava dirigindo e animando a festa, diz:

Plinio, para você eu quero dar um mão especial — era uma mão com um anelzinho assim. — Pega nessa mão aqui, você vai ver que linda moça vai aparecer.

Apareceu uma juba. Eu levei a bicha para passear pelo salão, assim, dançando, mas, logo depois saí da festa, deixei a festa.

Mas era raríssimo! Era raríssimo, porque os prazeres do espírito estavam completamente aniquilados. Os da doutrina, os da inteligência, aniquilados também.

* O salão da sede da Rua Imaculada Conceição ressuscitava o gosto pelos ideais, o gosto pela cultura, o gosto pela civilização, e isto em pleno vaso da Religião

O salão da Rua Imaculada Conceição, onde nós fazíamos as nossas reuniões, fazia isto: ressuscitava o gosto pelos ideais, o gosto pela cultura, o gosto pela civilização, e isto em pleno vaso da Religião. Era qualquer coisa de inteiramente sem igual em São Paulo.

Mas era anti Bagarre azul. Por quê? Porque tudo isso que eu estou exprimindo de cultura, de ideal, etc., tudo isso para a maior parte das pessoas não significava nada, não se interessavam absolutamente. O que eles queriam era aquela vida conforme o padrão em que eles tinham nascido e onde eles tinham conhecido as coisas. Não era outra coisa senão isso.

(Sr. H. Black: Hollywood.)

Hollywood e cinema em quantidade. O rádio havia um pouquinho, televisão não havia, havia cinema em quase cada quarteirão. Então se ia muito ao cinema, mas esta coisa não existia, esse gosto pela cultura.

Então está definido um quadro, no qual esta gente vivia, que é um quadro já diferente do quadro de vocês. Quer dizer, o quadro de vocês é isto, mas marcado pela Revolução Industrial que eu vou indicar daqui a pouco. Daí haver uma diferença de psicologia, de mentalidade e de tudo.

Com isso, eu darei aquilo contra o que é que vocês têm que lutar. Porque vocês têm que lutar em parte com o que eu disse. Está encastoado no espírito de vocês. Tem uma outra parte que eu não disse e que não está encastoado no espírito de vocês — ou por outra, está encastoado, mas artificialmente no espírito de vocês — e que eu teria que acrescentar ao que estou dizendo.

Mas eu não sei se isso está muito cacete.

(Sr. Guerreiro: Está extraordinário! Uma espécie de vala na qual a humanidade caiu e que precisa uma espécie de nova redenção para o homem se erguer desse estado. Porque isso é um estado meio primitivo no fundo.)

É, é claro.

(Sr. Guerreiro: Esta falta de gosto das idéias e dos princípios…)

É uma degringolada!

(Sr. Guerreiro: … dos temas mais gerais que não sejam meramente temas pessoais e de família.)

Os temas do espírito, ouviu?

(Sr. Guerreiro: Quando um país não vive em função dessa ordem de temáticas, é um conjunto de fazendas, não passa disso.)

Inteiramente. E lamentável a esse respeito.

(Sr. Paulo Henrique: E já decadente.)

Já.

(Sr. Paulo Henrique: Porque, no caso do primitivismo, tem qualquer potência, que aponta, digamos, para algo superior.) [Vira a fita]

dá ao homem tudo quando o homem pode querer. Ele não precisa outra coisa do isso. Tem Bios e Mamon, está acabado.

Agora, se vocês agüentaram, eu passo para a civilização industrial, quer dizer, o fator industrialização.

* A industrialização eu só compreendi sua falsa necessidade quando o mal ficou feito, antes disso não tinha compreendido

Era uma coisa que, eu que nunca tive estudos econômicos, custava para compreender, mas só compreendi quando o mal ficou feito, antes disso, não tinha compreendido.

Eu sabia que — as vistas mais curtas possíveis, eu tinha em matéria de economia — que são Paulo, concretamente São Paulo, plantava café e quase que exclusivamente café. Era a monocultura mais escandalosa que se possa imaginar.

Eu, às vezes, me irritava com isso. Eu dizia: “Essa gente aqui, por exemplo, plantam café e exportam café, café, café. Mas se eles exportassem laranja, exportassem banana, exportassem outras coisas, no exterior não haveria mercado para isso? Por exemplo, eu vejo laranjas, uma fruta de que eu não gosto mas que é bonita”.

Para fazer como eu vi na Europa, quando eu era mais menino. Laranja encerada com uma cera cor-de-laranja, mas que dava à laranja uma impressão de fruta do Paraíso, empilhadas do lado de fora das casas que vendiam frutas: “Orange du Brésil”. As pessoas paravam, compravam, em pouco tempo aquela pirâmide de laranjas estava vendida, era preciso mandar vir dos fornecedores outras.

[Então eu dizia]: “Por que essa gente não planta laranjas? Que mania é essa? Bom, mas há tanta coisa que eu não compreendo da parte deles que essa será mais uma”.

O café eles exportavam em toneladas e tudo o que não fosse plantado aqui — eles não se esforçavam para plantar várias coisas, eles queriam uma só — se comprava vindo do exterior, mediante dinheiro que o café tinha rendido. De maneira que produção brasileira era só para exportação — ao menos paulista — e, na exportação, era só exportar um tipo. Em outros estados do Brasil se produziam outras coisas, mas era o mesmo fenômeno, naquela mancha que se produzia aquela coisa, só se produzia aquilo.

Do exterior vinham, então, a preço barato, vinham as melhores coisas. Eu me lembro, por exemplo, as bonbonnières, eram bonbonnières fantásticas! Havia uma na Rua da Quitanda, chamada Lirial. Era uma bonbonnière que, entra outras coisas, tinha bombons para criança. Então tinha flores transformadas em bombons e vendiam balas — bombom é um modo de dizer — que eram lírios transformados em balas de açúcar, cerejas induzidas do açúcar, mas não era compota, era toda açucarada.

(Sr. Guerreiro: Cristalizadas?)

Cristalizadas. Das quais eu gostava com uma espécie de frenesi!

Assim, uma porção de outras coisas.

O comércio, era um comércio que vocês não podem imaginar. Por exemplo, e para não ir mais longe, o comércio de Santos: imagens. Comércio grande de imagens boas, importadas da Península Ibérica, mas sobretudo importadas da França, com mármores lindo, imagens da Itália com mármores lindo, de bronze, umas coisas riquíssimas. O café pagava tudo! Não se preocupe, porque no fim do ano a fazenda dá.

Com isso, um luxo todo feito com o que a Europa tem de melhor, e pago às torrentes porque o café era caro e tinha muito. São Paulo era um grande produtor de café.

A mim isso me parecia normal e não me passava pela cabeça que as coisas pudessem ser outras.

* Os economistas, que estudavam economia política, eram fundamentalmente utilizados para espalhar no mundo a industrialização

Mas havia uma espécie de gente que estava nascendo como que de uma conspiração. Eram os economistas, que estudavam economia política, que analisavam esses fenômenos e que eram fundamentalmente utilizados para espalhar no mundo — portanto, os que havia no Brasil, para espalhar no Brasil — a industrialização.

A industrialização partia da seguinte idéia:

Um povo que produz muito no terreno agrícola e não produz muito no terreno industrial é um subpovo. Se eles em vez de mandarem todo o dinheiro para o exterior, eles produzissem também produtos industriais aqui, o Brasil guardava seu dinheiro aqui, movimentava indústrias aqui e ficava pujante como a Europa. A Europa tinha produtos agrícolas em quantidade, mas produtos industriais em quantidade e com uma qualidade da pessoa nem saber o que dizer.

Então, começa com a era do Getúlio Vargas — portanto, em 1937, no golpe de 10 de dezembro começa a ditadura getuliana — uma série de coisas que levam ao seguinte: impostos caríssimos de importação. Por causa disso se, por exemplo, a França vendia poucos — no Brasil se compravam poucos — artigos de elegância porque os impostos eram caríssimos, a França levantava impostos para a entrada do café, e se vendia muito menos café, faziam menos doces com o café, o café representava menos na dieta de um francês.

Resultado: o francês ia comprar…

O que é isso aí? Parecia um grilo aqui dentro.

(Sr. F. Antúnez: É o telefone. Já atenderam.)

Isso é telefone?

(Sr. Paulo Henrique: Com som de grilo.)

Puxa!

(Sr. Guerreiro: São os mais recentes frutos da industrialização.)

É isso.

Mas afinal de contas… eu perdi o fio do que eu estava dizendo.

Sabe o que é que fazia? Compravam o café nas colônias deles da Argélia. Café muito mais ordinário, valendo muito menos do que Brasil, mas um transporte mais próximo e, portanto, menos caro, e depois não tinha impostos de importação porque aquilo era a França, a Argélia era uma colônia da França.

Então toda a França, submissamente, tomava café ordinário da Argélia, um pouco misturado com café do Brasil. Também café da Colombia, que era muito prezado, até talvez mais do que o café brasileiro, como sendo excelente.

Mas aquela gente que importava, como o francês que está no Atlântico e importa café produzido às margens do pacífico, nas praias do Pacífico da Colômbia para o café ser gostoso, vai beber café da Argélia… Eu bebi esse café, era um café horroroso!

Você talvez tenha bebido, Fernando.

(Sr. F. Antúnez: Sim, havia um café horroroso.)

Mas horroroso propriamente dito, não é?

Eles conseguiram esse passo: todos os fornecedores de matéria-prima começaram eles mesmos a fabricar. Então perdiam os compradores da matéria-prima, e se começava a fazer produtos baratos e vivendo mal nos dois lados.

* A economia se transformava numa guerra e o resultado dessa guerra era o mal viver de um lado e de outro

O resultado dessa guerra era isso: a economia se transformava numa guerra, numa competição e não numa colaboração. E o resultado da guerra era esse: é mal viver de um lado e de outro. Eles não diziam isto assim, escrito no jornal, mas eu via, qualquer um vê isto.

Mas se um levantasse a voz… como eu levantei às vezes, vocês podem imaginar, e logo de uma vez truculento, aos pontapés: “Por que está essa porcaria aqui na mesa? Manda jogar fora, no lixo! É produzido aqui? Não quero! Só quero matéria estrangeira!” Depois eu acabei vendo que a época tinha acabado.

Arrebenta a guerra, isso se acentua ainda mais: “Precisa fabricar isto, aquilo e aquilo no Brasil, porque a Alemanha não exporta mais para o Brasil”. Mas depois que o Brasil começou a fabricar o que na Alemanha se fabricava, acaba a guerra e eles não compram mais na Alemanha, continuam a comprar o produto brasileiro.

Daí, uma baixa-de-nível, uma coisa sem comentários, que é, para nós nos exprimirmos assim, o primeiro passo da industrialização. Você vê que são indústrias e que para ter indústria se estrangulava a economia de dois países. Era uma coisa horrorosa e caía o nível de vida.

(Sr. Guerreiro: Isso que o senhor está levantando é uma questão interessante. Eles têm argumentos para dizer que não se estrangulou, que houve um momento de estrangulamento, mas depois houve um momento de crescimento. O problema está na qualidade dos produtos que caiu enormemente.)

Aí é que está.

(Sr. Paulo Henrique: Uma tirania do mau gosto e da decadência.)

Decadência.

(Sr. Paulo Henrique: Porque isso veio de encomenda.)

É de encomenda.

(Sr. Paulo Henrique: Os mesmos apreciadores daqueles produtos como o senhor era… Quer dizer, o senhor exigiu, mas se outros exigissem, talvez tivessem conseguido.)

Talvez, talvez.

(Sr. Paulo Henrique: Como não exigiram, foram fazendo porcarias cada vez pior, cada vez pior, e estamos nessa situação que estamos.)

Se você tivesse provado o pão de antes da 2ª Guerra Mundial feito com trigo argentino e comparado com o pão feito com o trigo plantado aqui, nem sei onde, nos bueiros do Viaduto do Chá ou qualquer coisa, é uma diferença enorme. Todo mundo come esse pão. Eu só vi eu que reclamei.

* Ao princípio de ter indústrias a todo o custo se somou um outro princípio que é o de que tudo aquilo que pode ser objeto de industrialização deve ser produzido com prejuízo da agricultura

A esse princípio, ter indústrias a todo o custo, se somou um outro princípio que é o seguinte: tudo aquilo que pode ser objeto de industrialização, deve ser produzido com prejuízo da agricultura.

De maneira que se, por exemplo, elemento característico disso, a matéria plástica fornece a você como que tecidos — porque é um tecido, no fundo — para você fazer mil coisas, não vá plantar uma coisa que depois ainda tem que ser industrializada para servir… Fabrique a matéria-prima, fabricando a matéria plástica. Você fabricando a matéria plástica, passa um recibo de inutilidade e de impotência para ramos inteiros da agricultura.

Não sei se eu estou me exprimindo…

(Sr. Paulo Henrique: E uma constante também que eu peguei — já tenho cinqüenta anos, mas bem de menininho — ouvindo assim pai, tios falando entre si, no campo: a tudo aquilo que o fazendeiro produzia, vinham os compradores e impunham os preços que eles queriam. […] De maneira que a situação do fazendeiro era uma situação única no Brasil, que ia tender a pior cada vez mais com essa política.)

Com essa política irmã das outras políticas que eu estou descrevendo. É uma conspiração.

Então, vinha o seguinte, você dizia:

Bem, mas afinal de contas eu fico com o dinheiro sobrando.

Compre uma fábrica e fabrique! Produza alguma coisa que o Brasil ainda precisa não importar mais.

Bom, e cada vez mais a decadência, a decadência, a decadência. Exceto alguns produtos que o parque industrial brasileiro ainda não estava em condições de comprar, e então comprava na Europa a preços fabulosos. Então um grande luxo de automóveis, por exemplo, um grande luxo de aparelhos de produção de som, que só os riquíssimos podiam ter e o reto andava de ônibus.

Sabe que no meu tempo de mocinho ter automóvel era sinal de fortuna, não é?



* Só o grande capital podia importar o grande luxo; de maneira que o industrial riquíssimo era o único que levava a vida que antigamente levavam os ricos

A razão dessa situação ainda estava nisso: é que para o grande luxo havia a possibilidade de mandar vir o grande dinheiro, o grande capital podia importar o grande luxo. De maneira que o industrial riquíssimo era o único que levava a vida que antigamente levavam os ricos.

(…)

que um filho, que uma filha, que alguém, enfim, quisesse alguma coisa, descesse, fosse lá ao porão, com licença dele naturalmente, e levasse embora o que ele tinha vontade de ter.

Vocês eu tenho certeza que não conhecem nenhum luxo parecido com esse.

O é que ficava, em comparação com isso, um fazendeiro?

(Sr. Paulo Henrique: Um ratinho.)

Um ratinho, um ratinho.

(…)

Você subia duas vezes. Num só passo, você subia um degrau com suas pernas e a escada te levava um degrau mais para cima.

Isso não dava ao indivíduo uma vontade louca de se engajar nessa mecânica e de subir também? Não só para subir na escada desse homem que eu falei, mas havia outros à maneira desse. Menos reluzentes, mas à maneira desse. Mas também em profissõesinhas: pequenos vendeiros, pequenos açougueiros, pequenos não sei o quê, que em ponto pequeno, num bairro, representavam isso. De maneira que todo mundo era convidado para essa ascensão.

(…)

Os que se movimentavam eram uns gigantes que percebiam por onde a vida corria.

(Sr. Paulo Henrique: E sempre bem assessorados.)

Sempre bem assessorados.

(Sr. Paulo Henrique: Porque o plano deles era reverter essa ordem.)

Reverter.

Para terminar: o comércio.

* Para a indústria era necessário que o comércio funcionasse bem

Abaixo da indústria era preciso, para a indústria, que o comércio funcionasse bem, porque era preciso, para essa indústria que fabricava para o Brasil, que o brasileiro comprasse muito da indústria brasileira. Era preciso, portanto, dar ao brasileiro a vontade de aumentar o consumo.

Então a gente vê como era o negócio. O brasileiro que entrava para a fábrica de um industrial rico, ele ficava mais rico. Mas ele era obrigado a comprar com o dinheiro ganho do industrial rico os artigos a varejo que o industrial rico fabricava.

Quer dizer, ele era ao mesmo tempo o varejista e o produtor daquilo que ele comprava no varejo. Formava uma roda em que, também no pequeno e no médio comércio, se podia ser um pequeno ou médio crésus.

Não sei se está claro isso.

(Todos: Está claro.)

E o conjunto todo era como se fosse uma bola de fogo em que todo mundo subia.

(Sr. Guerreiro: E é verdade do ponto de vista econômico, não é, senhor?)

É.

(Sr. Guerreiro: Eles fizeram essa biotécnica.)

Havia mais uma coisa que era contra tudo isso: prédios de aluguel. Eles odiavam o prédio de aluguel. Porque o prédio de aluguel, por exemplo, isto aqui, se eu sou dono disso e alugo, você tem que me pagar um aluguel e esse aluguel tem estabilidade, o sossego dos empregos de capital dos antigos tempos.

Então, era preciso acabar com a locação. Daí, como o pretexto da 2ª Guerra mundial: “Lei de inquilinato. Proibição de aumentar o aluguel durante cinco anos, de todas as casas”. E mais ainda: havia certos casos em que o aluguel se tornava retroativo, baixava.

Resultado: a cidade sempre crescente por causa das indústrias, ninguém construiu, todo mundo morava apertado e vivia rico, mas ninguém tinha o sossego que o inquilinato trazia antigamente.

(Sr. Guerreiro: Toda essa classe também foi…)

Congelada.

(Sr. Paulo Roberto: Como a dos fazendeiros também, não é?)

Como a dos fazendeiros, a mesma coisa.

Agora, vocês não imaginam o que era a agonia de uma pessoa nessas condições, sentindo-se afundar e obrigada a fazer cara alegre porque todo mundo fazia cara alegre.

(Sr. Guerreiro: Isso daí é uma coisa tremenda. Isso que o senhor está descrevendo é um gênero de Revolução que poucas vezes o senhor comentou isso no Grupo.)

É, realmente nunca tive oportunidade de expor com todos esse detalhes.

(…)

* Com a industrialização não houve uma negação da Fé, não houve uma negação de ideais; houve uma coisa que dizia: “Fé não tem importância, ideais não são nada: ganhe!”

fazer uma aplicação para vocês do que é que essa representa, como reminiscência e como modo de ser, modo de querer subir, enfim, como um modo de substituir o ideal, a Fé e tudo aquilo para que nós vivemos. Porque não houve uma negação da Fé, não houve uma negação desses ideais. Houve uma coisa que dizia: “Fé não tem importância, ideais não são nada: ganhe!”

Eu tenho a impressão de que entraram nisso, como carneiros, às multidões. E aí está!

Bom, meus caros, está um pouquinho tarde.

(Sr. Paulo Henrique: Muitíssimo obrigado, senhor. A aplicação está muito boa.)

Hahahaha!

(Sr. Paulo Henrique: Que nós possamos tirar frutos dela. Contamos com as orações do senhor também.)

Certamente!

Há momentos minha Mãe…

(…)

(Sr. Paulo Roberto: Era Anna Gould, não é?)

Anna Gould, com o Boni de Castellane.

Agora, isto posto, não tenham a ilusão — para compreender a crueldade da situação — de imaginar que esses advogados, médicos e engenheiros perderam dinheiro. Não. Eles enriqueceram. E com isso, estavam estupidamente alegres. Porque se não fosse o parque industrial de São Paulo, eles ganhariam muito menos. Mas eles não compreenderam que eles de primeira classe passaram a ser quinta.

(Dr. Edwaldo: E perderam a alma.)

E perderam a alma.

(Sr. Poli: E a passagem da segunda para a quinta é muito menos do que passar da primeira para a segunda, não é?)

É claro, é claro.

Sobrenadando a isso — você vê bem — a Família Imperial. Mas quem na família imperial? Única e exclusivamente o Pedro Gastão, íntimo amigo do Chiquinho, vira-e-mexe estava em São Paulo, iam fazer passeios com o Chiquinho pelo interior. Por exemplo, uma vez foram conhecer Aparecida e rezaram, e outras coisas assim.

Minha sobrinha conta isso, eu não acredito muito, que o Chiquinho dizia para D. Pedro, numa sala da casa lá: “D. Pedro, me fecha aquela janela lá que está entrando muito sol”. O D. Pedro ia e fechava a janela. Minha sobrinha conta isto.

Dizer que é absurdo, eu não digo. Eu digo que duvido. Mais do que isso eu não vou dizer.

(Sr. Guerreiro: D.Pedro fazia isso por flexão de espírito dele próprio, ou por um jogo de fundo maçônico para que depois se comentasse essas coisas na sociedade?)

Por uma coisa e por outra.

(…)

*_*_*_*_*