Conversa
de Sábado à Noite (Alagoas, 1º andar) –
6/6/92 – Sábado – p.
Conversa de Sábado à Noite (Alagoas, 1º andar) — 6/6/92 — Sábado
A coroa mais bonita do mundo * Uma coroa sacral e que tem algo de materno * Um fato que mostra que o Arquiduque Martin se vendeu * Duas coisas que, mais ou menos, foram se definindo para o SDP ao mesmo tempo: as classes sociais e as casas, as residências * Alguns filhos da imigração tinham nomes que soavam de modo ridículo o que se prestava a debiques. Ex. do Pangela * Um fato que mostra bem como era o gênero dos Pangelas, os que eram do outro lado do muro * A idéia de classe social, de aristocracia, começava a se formar na cabeça do SDP * A procura dos modelos arquetípicos e das coisas perfeitas levavam o SDP a fazer classificações * A inauguração da casa de dona Veridiana e a presença da Senhora Dona Lucilia * As três características que favoreciam a família Ribeiro dos Santos * Como a Senhora Dona Lucilia contava o baile branco, dado pelo Conde Penteado para inauguração de sua casa * Visitando um cardeal armênio que estava hospedado em casa de outro armênio, o SDP recebe deste último, uma “vingança” dos Pangelas!
… ficar aqui em casa trancado sozinho. Mas o que é que a gente pode fazer?
(Sr. Gonzalo: Para o senhor é um descanso ficar longe…)
Não, não, não é um descanso não.
(Sr. Guerreiro: O senhor quando fica só, fica consigo mesmo, e nós quando ficamos só ficamos com nós mesmos.)
Ahahahahah! Todos ficamos com Deus e Nossa Senhora. Isso é o que não se pode negar.
Então, qual é a matéria? O que é que há?
(Sr. Gonzalo: O senhor está muito resfriado e muito cansado, de maneira que é mais do que compreensível que o senhor não queira fazer a reunião.)
Eu não estou muito cansado, pelo contrário, passei o dia muito repousado.
(Sr. Gonzalo: …)
Não, vamos entrar num tema qualquer. Eu estou pensando em fazer o seguinte.
* A coroa mais bonita do mundo
Poli, você se lembra daquela coroa austríaca que está no meu quarto de dormir… É uma coisa que…
Não abram porque dentro tem uma figura imoral, mas vejam que beleza isso.
Isso foi distribuído pelo pavilhão austríaco na exposição de Sevilha, e eu mandei pedir ao Berrizbeitia que mandasse, e ele mandou imediatamente. E o Andreas teve dizendo que isto aqui é uma coroa mandada fazer por um imperador que era ao mesmo tempo rei da Boêmia, péssimo, Rodolpho II. Que como todo pessoal lá da Boêmia, é pessoal meio mágico, ocultista, aquelas coisas do gênero, e que ele dirigiu, ele mesmo, a arquitetura da coroa.
Bom, eu acho a coroa mais bonita do mundo.
(Sr. Gonzalo: É a coroa deles.)
É a coroa deles. Depois passou a ser a coroa dos imperadores do Sacro império. E depois quando o sacro império foi dissolvido, as jóias do Sacro império foram dadas à Áustria, de maneira que…
Vale a pena você prestar atenção, meu filho, nas pedras preciosas…
(Sr. Gonzalo: … é uma coisa absolutamente colossal.)
Eu considero a coroa mais bonita do mundo.
(Sr. Gonzalo: E é arquitetônico que seja a do Sacro Império.)
Isso. Isso.
Diga, meu filho?
* Porquê é a coroa mais bonita do mundo
(Sr. Guerreiro: Ao olhar essa coroa, que elementos ela tem, que leva o senhor a fazer essa afirmação de que é a coroa mais bonita do mundo?)
Por uma razão muito simples. É que olhando-a eu tenho a impressão da beleza total, insuperável e dificilimamente igualável. Logo tem que ser a mais bonita do mundo.
Pois é claro.
Porque são coisas… Por exemplo, quer ver uma coisa que é uma verdadeira beleza?
Você toma aquela… na coroa?
(Sr. Gonzalo: Esmeralda?)
Não, a esmeralda é uma maravilha, mas não é isso não. É ali embaixo, bem… dá cá que eu aponto. Isso aqui… Mostra para eles.
Bom, imagine que a coroa não tivesse isso como perderia.
São várias pedras preciosas, não é?
Outra coisa, a inteligência de não fazer dessa coroa um capacete todo fechado de metal, mas deixar aparecer dentro um gorro de veludo muito bonito, muito bem arranjado, dentro.
(Dr. Edwaldo: E essa abertura o senhor acha a abertura ideal?)
Acho a abertura ideal.
Agora vocês tomem embaixo…. Porque tem esse veludo vermelho, na frente dele passa uma espécie de arco. Agora, vejam como o arco tocam numa ponta e se abre de um modo bonito.
(Sr. Gonzalo: E depois propriamente o conceito que o senhor tem de sacralidade está aí.)
* Uma coroa muito rica mas sem nada de “nouveau riche”
É. E depois outra coisa, ela é muito rica — vocês devem ter notado que o que se gastou de dinheiro é uma fábula — ela é muito rica, mas não tem nada do nouveau riche.
(Sr. Gonzalo: E não tem a nota frívola do Ancien Régime também.)
Não, não tem.
(Sr. P. Roberto: Ela tem algo de oriental?)
Um pouquinho.
O que fica bem para a Boêmia. A coroa foi feita na Boêmia. E a Boêmia, Polônia, aqueles países, Ucrânia, etc., são uma primeira passagem do Ocidente para o Oriente.
* Esta coroa não é uma coroa que se planeja, a gente sonha essa coroa
(Sr. Guerreiro: Ela tem um esplendor um tanto oriental.)
Tem, ela tem alguma coisa de oriental. Aliás, tem também o seguinte: o papel do sonho nessa coroa. Esta coroa não é uma coroa que se planeja, a gente sonha essa coroa. É uma coisa diferente.
Vocês vejam aqui. Vocês vêem a harmonia, a correção dessa coisa, como isto é uma coisa bonita?
O que eu achei estúpido é colocar em cima “Áustria imperialis”. Estúpido!
(Sr. Gonzalo: Acho que é para tirar um pouco o efeito do esplendor que a coroa tem.)
É, é uma fassurada.
(Sr. Guerreiro: Uma faixa enorme, branca, e sem nenhuma necessidade.)
(Sr. P. Roberto: Cortando…)
Cortando!
Eu estou com vontade de fazer o seguinte: vocês estão vendo ali aquela porta? Aquela porta dá para um box em que eu guardo várias coisas. E do lado de dentro da porta tem uma série de relíquias, e eu estou com vontade de mandar fazer uma moldurazinha muito simples e colocar isso do lado de dentro da porta.
(Sr. Merizalde: Mas deveria arranjar um assunto sem a “Áustria Imperialis”.)
É, se pudesse, mas eu não vejo jeito.
(Sr. Gonzalo: Tem fotos dessa coroa.)
(Sr. Merizalde: Eu conseguiria Senhor Doutor Plinio.)
Mas você sabe o que é que tem, Gonzalo? É que essa coroa está num tamanho que é único. Para você medir bem o tamanho das pedras, etc., etc., esse tamanho é único.
(Sr. Merizalde: Quase natural.)
Se não for. Eu considero a obra-prima em matéria de coroa.
Há uma coisa que os russos fazem e que é muito bonita, porque certos dignatários eclesiásticos deles usam coroas, e é o seguinte: incrustar aí esmaltes, representando santos ou imperadores, etc. Fica muito bonito. Mas aqui é mais…
(Sr. Gonzalo: Nem sequer cruz tem, mas não é para ter.)
Não é para ter.
(Sr. Gonzalo: E não tira com isso a sacralidade dela.)
* Uma coroa sacral e que tem algo de materno
Agora, está bem. No que é que está a sacralidade?
(Sr. Gonzalo: É um pouco pegar as palavras que o senhor acaba de dizer, mas está no todo dela que é de uma elevação, e uma austeridade dentro do esplendor muito grande.)
(Sr. Guerreiro: Ela é austera?)
É preciso ver o que é que se entende como austeridade. Se se entende por austeridade, seriedade, gravidade, eu creio que não tem dúvida.
O que ela tem de muito interessante essa coroa, é que ela tem qualquer coisa de materno. Um súdito que olha para essa coroa e entenda que essa coroa é feita para governá-lo, ele se sente protegido.
[No relógio do primeiro andar soa meia-noite.]
Vamos rezar a oração da passagem da meia-noite?
Dignare Mater die iste.
Sine peccato nos custodire. [Três vezes]
(Sr. Gonzalo: E que de origem à uma Casa que é muito materna.)
Exatamente. É tal e qual isso.
* Uma coroa que é a imagem de um estado de espírito que abrange toda a mentalidade de um homem
(Sr. Gonzalo: Agora, isso que o senhor disse, que ele sonhou, o senhor poderia tratar um pouco de que sonho ele tinha para ele ter ideado isso?)
Quer dizer, isso aqui é a imagem de um estado de espírito. Mas a imagem de um estado de espírito que abrange toda a mentalidade de um homem. Não abrange apenas num aspecto, mas toda a mentalidade de um homem. E essa mentalidade, esse homem sonhou, ele sonhou para si um estado de espírito de dignidade, de bondade, de esplendor, de conforto e de força que é o sonho dele, é o céu na terra para ele. E ele mandou executar.
(Sr. Gonzalo: Não é qualquer um que sonha isso. Ele tinha alguns lados bons…)
Ah, isso é certo.
(Sr. Gonzalo: Num MNF o senhor disse que uma dinastia nasce a cada mil anos, e quando Deus com o dedo índice indica: “dele eu vou fazer uma dinastia”. Que há um desígnio muito grande da Providência, com esse homem propriamente…)
* Às vezes, vendo o que é que um monstro fez de ruim, a gente percebe o que ele teria feito se fosse bom
Eu não pude entrar em pormenores com o Andreas, porque estava uma conversa sobre várias coisas aqui, de Aparecida, etc., etc., e por isso não perguntei a ele o que é que fez de ruim, esse Rodolpho II, mas às vezes, vendo o que é que um monstro fez de ruim, a gente percebe o que ele teria feito se fosse bom. Existe isso. E talvez por essa forma a gente tivesse podido dizer alguma coisa. Mas eu não conheço nada de suficiente sobre ele. Porque o reino dele se perdeu lá por aquelas Boêmias, aquelas coisas todas.
(Sr. Gonzalo: Mas por aí o senhor vê muito a alma dele.)
Um aspecto da alma dele, quer dizer, o lado bom dele. O lado bom inteiro.
Bom, mas isso é uma entrée é uma mise en scene da reunião.
(Cel. Poli: Qual é o lado bom de alma que o senhor vê?)
Foi o que eu disse há pouco: seriedade, bondade, etc., etc. Porque por exemplo, o homem que mandou fazer essa coroa, ele era um imperialista? Ele era um homem que queria ter muitas coroas, muitos Estados? Ele era um Napoleão?
De nenhum modo. Aliás, não se pode imaginar a cabeça de Napoleão dentro dessa coroa. Ordinário! Cafajeste!
(Dr. Edwaldo: Acho que nem ele quereria.)
Não quereria não. Não, nada. Ele se visse essa coroa, ele teria ódio. Porque sentiria muito inferior, mas de outro lado querendo ter, mas entendendo que não era feito para ele, sobretudo que ele não era feito para isso. Problemas pessoais de toda ordem.
Mas enfim, eu achei que valia a pena, como introdução da reunião apresentar isso que é uma coisa… eu não conheço coisa melhor do gênero.
(Dr. Edwaldo: Faz um bem enorme de olhar essa coroa.)
É, faz bem. Faz bem. É pena a gente não ter uma coisa pintada, uma pintura. Mas seria muito difícil fazer uma pintura representando essa coroa. Um quadro. Porque vocês percebem que há toda espécie de jogo de luz aí em cima. Discreto, mas há.
(Sr. Gonzalo: O senhor consegue na Áustria, boas fotos para o senhor.)
(Sr. Merizalde: Não é difícil conseguir uma boa foto.)
Boas fotos talvez não seja difícil, mas o interessante seria conseguir uma pintura. E uma pintura é que eu acho muito difícil. Muito difícil.
(Sr. Merizalde: Muito difícil. Mas uma boa foto em papel de qualidade…)
Aliás, além de difícil, cara, porque se o sujeito conseguisse fazer uma boa cópia pintada dessa coroa, eu não sei o que é que ele cobrava. É claro.
(Sr. Gonzalo: Mas se entende porque os primeiros flashs de menino do senhor eram com a Casa d’Áustria.)
Ah sim.
(Sr. Gonzalo: Francisco José, etc., está tudo ligado a isso.)
* Um fato que mostra que o Arquiduque Martin se vendeu
Está tudo ligado a isso. Mas apesar de tudo isso, eu numa programação que o Casté me mandou daquela Universidade Complutense que realiza reunião no Escorial uma vez cada dois anos, etc., o Casté me mandou agora, a lista das coisas da Universidade Complutense para esse ano. Do programa. E tem um ponto do programa que é: “O império Austro-húngaro, seu passado e seu futuro”. Três conferencistas se revezam para dar uma volta inteira no assunto: Arquiduque Otto, Arquiduque Martin e Arquiduque Salvator.
Quer dizer, o arquiduque Martin se vendeu.
(Sr. Guerreiro: Ou, numa hipótese mais otimista, está sendo comprado.)
É, mas se está sendo comprado, está se vendendo, não tem conversa. É uma coisa triste. Uma coisa triste. D. Bertrand, Mario Navarro, Juan Miguel deitaram um esforço em cima do Martin para convertê-lo, etc., de todos os modos possíveis…
(Dr. Edwaldo: E o senhor rezou muito por isso.)
Rezei, e tudo. Ele arranja esta saída. É uma coisa indigna.
* Isso nos faz ver o que é uma coisa esquisita da alma humana
Agora, aí a gente vê o que é uma coisa esquisita da alma humana, mas é assim.
Nós, que eu saiba, aqui, nenhum de nós tem sangue austríaco. Se tiver sangue austríaco, é pouco provável que tenha sangue da Casa d’Áustria. Bem, nós vemos tudo isso, compreendemos e nos enchemos de gáudio, de respeito, etc.
Um Martin qualquer, para conseguir fazer uma viagem de cruzeiro internacional, num desses navios que percorrem o mundo, ou qualquer coisa, é capaz de se vender.
Agora, o que é que tem na cabeça de um homem desses para ele fazer assim?
(Sr. Gonzalo: Sabendo muito claramente onde que está o ponto de salvação ele…)
Ele sabe perfeitamente.
(Sr. Gonzalo: Para continuar isso é só com o senhor, não tem jeito. Porque complutense vai enterrar o sacro império.)
Não se assustem, isto é assim mesmo.
Bom, agora, meus caros, que assunto que tratamos, qual é o…
* Ponta de trilho: um apanhado das reuniões anteriores
(Sr. Gonzalo: [Faz uma introdução para a pergunta dando um resumo das reuniões anteriores] O senhor estava tratando disso e o senhor mesmo queria continuar tratando. E o senhor deu vários exemplos…)
Sim, porque os senhores pediram vários exemplos.
(Sr. Gonzalo: Sim, porque é uma coisa que mostra muito como é a via espiritual e a vida espiritual do senhor. […] Então, apenas para rememorar um pouquinho… [continua o resumo] Então o pedido era se o senhor pegasse coisas a esmo, coisas que o senhor via quando menino para ir comentando o significado que tiveram e como a alma do senhor se foi formando nisso… Não sei se está claro o pedido…)
Sim.
(Sr. Gonzalo: Nós não queríamos deixar de dizer para o senhor, o encanto que produz a reunião, a leitura, etc. O senhor disse que a Igreja trabalhou muito o bonum e verum, mas não tanto o pulchrum, e que agora, com a vocação do senhor chegou a hora do pulchrum…)
Há pouco ainda era o pulchrum. Tipicamente.
(Sr. Gonzalo: Quando o senhor trata disso, entra um ar completamente benfazejo e unitivo com o senhor no que o senhor tem de mais elevado, e mais único, e sumamente exorcístico da quarta e quinta Revolução. Então o pedido era se o senhor pudesse colher mais pedras preciosas que passam pelo caminho e ir comentando.)
É. Há uma multidão de coisas que podem servir de exemplos, etc., para essa coisa.
* É período que corresponde ao curso secundário que a alma vai se abrindo para a vida, que vão se formando os padrões, os tipos, e a pessoa vai entrando em outras ordens de realidade
Por exemplo, são coisas que a gente vai percebendo… eu não sei com vocês como foi, nem sei se foi do mesmo modo para todos ou se foi de modo diferente. Mas no decurso do curso secundário se dão muitas reflexões e considerações dessa natureza, e é por isso que eu tenho impressão que quando a TFP organizar um curso de ensino bem à maneira dela, o ensino secundário vai ter um papel enorme, porque é nesse período que a alma vai se abrindo para a vida, que também vão se formando os padrões, os tipos, etc., etc., e a pessoa vai entrando em outras ordens de realidade.
* Duas coisas que, mais ou menos, foram se definindo para o SDP ao mesmo tempo: as classes sociais e as casas, as residências
Por exemplo, uma coisa que me traz até um certo agrado lembrar, eram duas coisas que, mais ou menos, foram se definindo para mim, ao mesmo tempo. São as classes sociais e as casas, as residências. Não sei se para vocês isso foi se definindo ao mesmo tempo ou não. Para mim isso foi se definindo mais ou menos ao mesmo tempo, mas assim: ora eram as residências, ora eram as classes sociais. E a coisa assim ia de um jeito para outra, etc.
(Sr. Guerreiro: Em que idade mais ou menos?)
Isso é um processo longo; poderia ter tomado dos dez anos ao dezessete, dezoito, uma coisa muito longa. Mas primeiro a questão das classes sociais.
Criança assim, criancinha, não tem… ao menos no meu ambiente, não tinha idéia de classe social. Brincava com qualquer um, metia-se com qualquer um, etc., etc. Os pais não permitiam que brincassem com crianças de uma classe social diferente, mas diziam para a gente só assim: “este aqui não é de nossa classe, você não pode brincar com ele”. E isto era dado assim como uma espécie de [o casi?]: “ele não é de nossa classe, e você não pode brincar com ele”, era uma espécie de parede aquém da qual estava um lado da humanidade e além do qual estava um outro lado da humanidade.
* No Colégio São Luís havia meninos de todas as classes sociais
Então, por exemplo, os alunos do colégio São Luís… tinha alunos das melhores famílias de São Paulo. Vamos dizer, todas as boas famílias de São Paulo tinham alunos ali. Mas no colégio, os padres pareciam não conhecer esse assunto de classe social, num país sem nobreza organizada como na Europa, e por causa disso admitiam qualquer pessoa no colégio.
Então, tinham lado a lado, alunos filhos de emigração onde você estava sentido o cheiro do porão no qual o pai viajou para o Brasil, e do outro lado você tinha alunos dos quais você estava sentido um resquício da corte imperial.
(Sr. Guerreiro: É um contraste de perfumes […inaudível].)
Mas é isso. E depois era assim.
Bem… eu estou selecionando muito o que eu digo.
* Alguns filhos da imigração tinham nomes que soavam de modo ridículo o que se prestava a debiques. Ex. do Pangela
Mas a coisa era assim. Os filhos de imigrantes tinham em geral, nomes que soavam de um modo ridículo, e então os filhos da tradição caçoavam deles por causa disso. E caçoavam de um modo horrível. Por exemplo, tinha um filho de italianos, mas de italianos de imigração — haviam italianos finos que desciam aqui — mas eram italianos de imigração, de porão, chamava Pangela. Vocês estão vendo bem que um nome se presta para criança brincar a respeito de um sujeito chamado Pangela.
Ele tomava o bonde na Consolação conosco, e vinha descendo a rua da Consolação. Quando chegava à rua Marquês de Paranaguá, que é uma travessa da Consolação, o Pangela batia uma espécie de tira de couro assim para o bonde parar, e o bonde parava, e ele descia. Quando ele descia uma vaia! do pessoal que estava — eu não sei se já lhes contei isso — uma vaia: “Panela! Panela! Olha cá Panela!”
E ele saia-se da seguinte maneira: ele podia perfeitamente não olhar para trás, mas ele não conseguia dominar a curiosidade de ver como era a vaia que ele estava levando. E já nisso ele se revela cafajeste. E ele então olhava para trás e dava uma risada, coitado!, uma risada como quem ria de si mesmo, para se pôr do lado dos que vaiavam a ele. Não sei se explico o jogo?
E tomava então um ar assim sarcástico contra si próprio e aliado dos que o vaiavam. Mas depois a gente vê que ele notava que a situação era muito difícil e à medida que ia se distanciando do bonde, que ainda não tinha saído do ponto porque desciam muitos meninos, ele ia andando e já não olhava para trás. Mas o pessoal berrava ainda mais forte: “olha para cá Panela! Panela!”
Eu me lembro que eu nunca fiz isso, eu considerava uma coisa indigna, de uma selvageria que roçava pela crueldade, embora eu fosse um grande partidário de manter todos Panelas longe. Isto é uma coisa diferente. Os Panelas fazem parte daquele mundo atrás do muro onde estavam os meninos com quem a gente não podia brincar. O Pangela era um deles. Mas eu tinha uma certa pena do Pangela e nunca, nunca fiz uma coisa dessa com o Pangela.
* Um fato que mostra bem como era o gênero dos Pangelas, os que eram do outro lado do muro
Agora, quando chovia, mamãe dava ordem muito expressa de eu tomar um táxi, porque ela tinha muito medo que eu me resfriasse, etc., etc. E eu tomava o táxi por uma razão inteiramente diferente, que era muito mais cômodo, o táxi me deixava diretamente em casa; mas também por uma razão política, é que eu escolhia os meninos do lado de cá do muro a quem eu quisesse fazer uma gentileza, e então eu dizia: “fulano, entra aqui! Sicrano, entra aqui!” E os que estavam por ali ficavam mais ou menos por perto para ver se eu os convidava. Eram em geral mais ou menos os mesmos.
O caso que vou contar é horroroso. Mas um Pangela qualquer, ficou assim mais ou menos perto esperando ser convidado para entrar no automóvel. E eu disse: “venha cá Pangela!” Enfim, “x”. Ele aproximou-se e eu disse a ele: “você pensa que você entra, você não entra não”. E eu tive desde pequeno uma boca muito grande, abri um bocarra: ahahahah!
Quando ele viu que minha boca estava inteiramente aberta ele cuspiu dentro da minha boca.
(Sr. Gonzalo: Era a prova dos nove do Pangela.)
É, é.
(Sr. Guerreiro: É a certidão de nascimento.)
É, você pode imaginar… Enfim, a coisa diz tantos horrores…. Quando eu percebi o que que o Pangela tinha posto na minha boca, eu cuspi tudo quanto eu podia. E os meus companheiros que estavam do lado de cá do muro, que estavam dentro do automóvel, caíram na gargalhada, numa gargalhada democrática, como quem diz: “Você quis esmagar esse coitado, pois agora, você tem aí a paga”.
E depois o pior é o seguinte: é que eu podia entrar correndo no colégio e lavar a boca; tinha umas coisas assim, uns chafarizes onde a gente bebia água, podia pelo menos lavar a boca, mas o automóvel estava buzinando que não podia porque tinha ir para frente não sei o quê. E eu entrei com boca suja dentro do automóvel e horrorizado. Mas compreendendo que eu tinha que fazer um jogo como o do Panela, mas em sentido contrário: é rindo eu também da situação em que eu estava, para não ficar numa posição torta, errada. Mas ao mesmo tempo começando a fazer uma espécie de análise do que era o lado de lá do muro. O horror do lado de lá do muro, as coisas medonhas, como seria a intimidade entre eles; quando eles brincavam uns com os outros, que horrores sairiam; e portanto, vocês podem imaginar bem as oposições aristocratizantes, furiosamente aristocratizantes…
* A idéia de classe social, de aristocracia, começava a se formar na cabeça do SDP
Quer dizer, esses tipos assim eu não lhes quero mal, mas haus, perto de mim não, porque não fui feito para me dar com essa gente.
Bem, não sei se vocês notam que com isso, toda uma idéia de classe social, de aristocracia, de não sei o quê, começava a se formar na minha cabeça, que se vocês tiverem a paciência de ler o livro da nobreza, vocês vão encontrar coisas ali, que são remotas, são pedacinhos do “ninho” formado naquele tempo a respeito dessa coisa.
Não sei se esse gênero de coisa interessa ou não, como é ou como não é? Não sei também na Argentina, no Chile, na Colômbia, etc., qual é o destino dos panelas, massacravam os Panelas…
(Sr. Gonzalo: No Chile são os “rotos” e os cavaleiros…)
Os “rotos”, achei aquilo magnífico quando me falaram da história, dos “rotos” e dos “cavaleiros” achei uma coisa magnífica.
* Aparecem os grã-finos que, por serem muito mais ricos, esmagavam os de boa família
Agora, de outro lado, eu comecei a ficar sensível aos nomes bonitos. Aos alunos que tinham nomes bonitos e que o nome bonito era sinal de que aquele indivíduo vivia num enquadramento bonito. Que o nome musicalizava mais ou menos o ambiente em que ele vivia, e que dava todo o anti-Panela, quer dizer, toda a nobreza, a distinção, a categoria, etc., etc., mas também apareceu uma coisa a mais, que estava começando a aparecer naquele tempo e que quando vocês passaram por essa idade, já era uma lepra mais do que instalada e organizada: o grã-finismo.
Quer dizer, vocês tinham as boas famílias antigas de São Paulo, com bonitos nomes, com uma bonita apresentação…
(Sr. Gonzalo: Quais são os bonitos nomes que…)
Daqui a pouco eu vou dar um.
Bonita apresentação, etc., etc., mas depois acima deles, os grã-finos. Os grã-finos que tinham não um luxo proporcionados à situação deles, mas um luxo desproporcionado, extravagante, arrogante, e de mal gosto. Mas que, como eram muito mais ricos, esmagavam os de boa família e dos nomes bonitos.
Então, eu comecei depois a analisar o contraste entre as boas famílias e os grã-finos… foi se pondo para mim muito claramente. Mas depois eu fui vendo como os de boa família foram lentamente decaindo, eu fui percebendo como ao longo dos anos, eles iam cada vez mais se vestido mal, relaxando no trajar-se, no todo… E fenômeno mais curioso, nessas boas famílias, começando a aparecer gente feia que antigamente não era.
(…)
… bonito nome. Muito bonito nome.
* O SDP encontra-se, numa confeitaria, com um companheiro de colégio que era muito fino e o analisa
Ele era baixinho, com os olhos escuros, muito grandes, aveludados, a pele dele era feita de não sei, era assim um pouquinho esmaltada, eu não sei como dizer isso, e um dia eu tirei vários prêmios no colégio São Luís e mamãe, que estava doente, pediu a papai que fosse comigo e com a fräulein, tomar um lanche como um dos prêmios que ela dava, numa confeitaria que era a última palavra do gostoso para a Sãopaulinho daquele tempo. Chamava-se Allambra.
Eu entrei lá e encontrei o Bento com a família dele que também tinha ido tomar um lanche de recompensa, porque ele tinha também tirado muitos prêmios. Mas ele estava ele mesmo a mais não poder. Com um chapéu redondo de feltro, gris-pèrle, com uma roupa também gris-pèrle e se não me engano com uns babados assim, etc., com uma impertinência, mas uma impertinência bem nascida, um desdenho, uma coisa do outro mundo. E eu olhando com o canto dos olhos para ele, porque segundo as convenção reinantes entre os alunos, não se deviam cumprimentar fora do colégio. Então não nos cumprimentavam. Uma convenção estúpida. E eu estava vendo o jeito dele. Não era um grã-fino, mas era um muito fino. Não era de uma grande fortuna, mas estava bastante bem e largo na vida. E se passasse um grã-fino perto dele, ele olharia de cima para baixo com um tal pouco caso, que o único jeito que o grã-fino tinha para não ser esmagado como o Pangela, era de olhar de lado.
Eu pergunto o seguinte… [vira a fita]
* O SDP pede um depoimento dos participantes da reunião de como era nos respectivos estados e países
(Sr. Horácio: … mas também cheio de filhos de imigrantes em bons colégios e as pessoas de boas famílias fazendo panelas à parte. Eram dois mundos.)
É isso, é outro mundo.
(Sr. Gonzalo: Ah, inteiramente, os “rotos” e os “cavaleiros” muito separados.)
Como era lá na Colômbia isso?
(Sr. Merizalde: Nós não tínhamos imigração, mas tinha também uma claríssima divisão e não se mexia com os outros.)
Não se mexia com os outros, embora fossem alunos do mesmo colégio.
(Sr. Merizalde: Sim, companheiros de banco, mas não mais.)
Não mais, ahahah!
E você meu filho?
(Sr. P. Roberto: No Rio onde eu estava…)
Santo Inácio…
(Sr. P. Roberto: Não, não, não estudei no Santo Inácio. Mas já na faculdade já era muito misturado.)
E do dr. Edwaldo Marques?
(Dr. Edwaldo: Existia alguma coisa. Eu me lembro algumas coisas assim, não tanto no ginásio, mas no científico…)
É que no meu tempo não havia essa distinção entre científico e ginásio, era uma coisa só.
(Dr. Edwaldo: Eram meninos de 15 anos ou mais.)
É, comigo começava mais cedo, começava lá pelos dez anos, assim já começava a se notar.
E o meu Guerreiro?
(Sr. Guerreiro: Com essa clareza, com essa força demarcatória não havia de modo algum.)
Não havia.
(Sr. Guerreiro: Quando era mais rapazinho, etc., aí começava a ter um certo friso bem maior, mas como o senhor está descrevendo, ao menos no Paraná, pelo que pude ver não era assim. Mesmo porque tinha muitos alemães de terceira geração já, e muito ricos. E depois um pouco diferente dos italianos. O alemão tem uma certa seriedade, e cria um certo quadro para ele diferente do brasileiro.)
Fora de dúvida.
(Sr. Guerreiro: E acontecia o seguinte, que já no meu tempo um bom número de famílias tradicionais do Paraná, casava-se com descendentes de alemães. A tal ponto que as senhoras de mais presença, mais elegantes que eu conheci, não eram de origem brasileira, eram de origem alemã.)
Isso aqui em São Paulo também havia. Quer dizer, para os descendentes de alemão, havia uma exceção, por causa do tônus, etc., etc., havia uma exceção.
(Sr. Guerreiro: Então não era assim como o senhor…)
Como eu estou falando do Pangela.
(Sr. Guerreiro: Havia algo, mas a diferença de geração no Brasil, do senhor para mim é muito grande.)
Ah, muito!
(Sr. Guerreiro: No Chile a diferença não era tão grande. É até muito interessante o senhor comentar isso tudo que nos faz entender melhor toda a relação disso com o que o senhor falou na RCR, o problema da desigualdade, etc.)
* A procura dos modelos arquetípicos e das coisas perfeitas levavam o SDP a fazer classificações
Sim, tem muita relação, tem muita relação. E eu, naturalmente, partidaríssimo dessas coisas todas. Agora, partidário por quê?
Porque exatamente a procura dos modelos arquetípicos e das coisas perfeitas levavam a essas classificações. Era forçoso, não tinha por onde escapar. E então daí vinha uma diferenciação muito marcada, muito profunda.
(Sr. Gonzalo: E os nomes bonitos, o senhor poderia dar um pouquinho? Porque o senhor disse uma coisa muito bonita que é a relação entre nomes e os ambientes… […] Porque não é por acaso que isso forma.)
Não, não é por acaso.
* Em geral, uma família que tem “status” cria um certo ambiente para si e é ela mesma uma verdadeira escola de vida
Há o seguinte, em geral, uma família que tem status cria um certo ambiente para si e é ela mesma uma verdadeira escola de vida. Quer dizer, há um certo modo de ser educado, um certo modo de ser amável, um certo modo de ser fazer sentir importante, um certo modo de, pelo contrário, ser gentil e aberto, etc., uma certa forma de decorar o interior das casas e de construir as casas, de maneira que vendo de fora a gente via como era, que fazia com que muitas vezes o nome em rigor nem sempre era bonito, muitas vezes era um nome perfeitamente comum, mas que servindo como designação de uma família que tinha umas características assim próprias que faziam dela um mundinho, o nome revestia do pulchrum daquele mundinho.
Não sei se…
(Sr. Gonzalo: E o som vem um pouco daí.)
O som reveste algum tanto por aí.
(Sr. Gonzalo: Mas os Prados eu tenho um nó deles, me parece meio “nouveau riche” não sei se é verdade, mas a categoria deles eles usaram mal…)
Usaram para o mal. Usaram muito bem para o mal.
(Sr. Gonzalo: E esmagaram gente que era de melhor nível, etc.)
Isso, exatamente.
(Sr. Gonzalo: De onde vem isso?)
No caso concreto deles vinha do seguinte: um feitio de inteligência que fazia com que os homens….
* Como se deu o fato de que as senhoras finas passaram a ser chamadas de Madame e não mais de Sinhá
Não, a matriarca era Dona Veridiana da Silva Prado, filha dos barões de Iguape. Ela casou-se também com um Prado e era riquíssima, mas riquíssima. Era uma mulher muito feia, mas extraordinariamente feia, inteligente, muito inteligente, e inteligente de uma época — porque ela era muito mais velha que mamãe, era do tempo de minha avó essa senhora — de uma época em que inteligência servia muito para a vida social, porque ter bom gosto, saber arranjar bem as coisas, saber fazer as coisas extraordinárias, etc., era uma coisa que valia muito, que marcava muito. E ela tinha isso tudo no mais alto grau.
(Sr. Guerreiro: Era fina a senhora apesar de feia?)
Não, era muito inteligente. Era uma “búgara” medonha, mas muito inteligente e com um trato muito inteligente. E fina, quer dizer, sabendo tratar com muita finura, e ela é considerada pelos que se dedicam a esse gênero de história, como a senhora que marcou a transição da Sinhá para Mme. Quer dizer, todas as senhoras do tempo dela, se faziam chamar de Sinhá, que é o modo de negro dizer senhora, uma contração para dizer senhora.
E eu conheci um número enorme de sinhás, por exemplo. Que eram senhoras de boas famílias, etc., etc., mas que eram chamadas assim.
Ela, introduzindo, por causa de muitas viagens à Europa, as modas francesas no Brasil, as coisas francesas, etc., ela fez-se chamar de Mme., e começou o estilo de criadas, etc., etc., chamarem as donas de casa de madame. Os fornecedores, etc., etc., chamarem de madame. E as sinhás desaparecerem. Sinhás representava a época portuguesa com restos de colonialismo, e a madame representava a época francesa, da brasileira independente de Portugal que ficava riquíssima e que não ia para Lisboa para perder o tempo em Lisboa, ia diretamente para o Bois de Bologne em Paris.
O que e que você pensou meu Guerreiro? Qualquer coisa aí você não gostou, o que é que foi?
(Sr. Guerreiro: Eu gostei muito sim. Essa conversa tem um conteúdo que a história de uma nação que vai se formando… […inaudível] e episódios como esse que o senhor está contando são impressionantes.)
Ah são.
(Sr. Guerreiro: E depois tudo isso concorrendo para formar a mentalidade do senhor, a visão do universo do senhor.)
Sim. Ah, é todo o mundo. Para mim, um dos bonitos estudos que se possa fazer é esse. É muito bonito.
Mas então essas pessoas como por exemplo a Dona Veridiana, ela foi quem construiu — você pode imaginar isso uns trinta ou quarenta anos antes da proclamação da república — construiu aquela casa onde hoje é o Clube São Paulo, na esquina da rua dona Veridiana com a rua Higienópolis. Você pode imaginar o que é que era aquilo para a São Paulo daquele tempo.
(Cel. Poli: Foi a primeira desse gênero ou já tinha algumas?)
Tinha algumas casas, poucas, mas tinha algumas. Mas daquele mesmo ambiente dos Prados.
(Sr. Guerreiro: Com aquelas proporções eu acho que não houve nenhuma não é?)
Não, não, uma houve que foi o palácio Campos Elíseos, que era de um primo dela, aliás.
* Descrição das viagens de Dona Veridiana a Paris
Agora, a coisa punha-se assim, que ela por exemplo ia a Paris, e levava vários — porque ela tinha muitos filhos — levava vários filhos. Mas alguns desses filhos famosos pela inteligência. Um era o Eduardo Prado, líder monarquista e católico de São Paulo. E outro era o Caio Prado que não era esse comunista, é parente do comunista, mas era um esquerdista para o tempo, tremendo. E ela achava interessante, picante, ter um filho esquerdista e um filho monarquista-católico…
(Sr. Horácio: Que absurdo.)
É absurdo.
E que se polemizavam pelos jornais, etc., e a Sãopaulinho prestando uma atenção enorme nesse negócio.
(Sr. Guerreiro: Pelo menos era mais interessante do que esse horror da briga dos irmãos Collor.)
Oh! Nossa Senhora! É outro mundo!
Bem, mas ela ia para a Europa com essa gente, e lá as senhoras entravam em contatos com as grandes casas de modas e de móveis, etc., etc., sob as diretrizes dela. E os filhos entravam em contato com os grandes homens.
E por exemplo, era freqüente dona Veridiana indo a Paris, mandar uma carta pelo Eduardo Prado ao Eça de Queiroz avisando que ela ia para Paris e que teria gosto em encontrá-lo lá. E ele ia como um cachorrinho. E para você ter idéia de como eram as coisas. Ele tem um capítulo de um livro dele, em que ele descreve a viagem de dona Veridiana de volta para São Paulo.
Então entre outras coisas ela tinha — porque não havia estradas de rodagem, viajava-se muito de trem — e então ela levava um trem inteiro para ela, a família e todos os móveis, quadros, e roupas, etc., etc., que a família tinha comprado. Tudo vinha para São Paulo. E o Eça de Queiroz vinha no meio da bagagem conversando com os filhos, etc., e distraindo… E acho que entrava dinheiro.
(Sr. Gonzalo: A carta a Frederique Mendes…)
Fradique Mendes…
(Sr. Gonzalo: Era para os filhos…)
É.
Mas você compreende, a chegada do navio onde vinha dona Veridiana, e vinha toda a carga de um trem no navio, e depois a encrenca com a alfândega porque tinha que pagar imposto. Mas havia um truque que consistia no seguinte:
As famílias boas faziam assim. Mandavam as coisas e chegavam aí na alfândega, a alfândega cobrava um imposto louco; eles então declaravam que se desinteressavam da mercadoria e que a alfândega podia vender em leilão pelo preço que entendesse.
E então ia para leilão. Mas eles tinham funcionários que compravam no leilão. Então, sem pagar imposto, compravam no leilão as mercadorias que eles tinham mandado vir.
Bom, e o negócio dava no seguinte; que depois subia trens na São Paulo-Santos com mercadorias da dona Veridiana, por exemplo, ou desses, daquele, daquele outro e vinha para São Paulo. E aí se instalavam nas casas, etc., e era a grande vida. Era o sistema.
* A inauguração da casa de dona Veridiana e a presença da Senhora Dona Lucilia
Mamãe assistiu a inauguração dessa casa aqui na rua… da casa de dona Veridiana. Ela dizia que… Ela tinha assim uns treze anos a quatorze e que a dona Veridiana quis absolutamente que ela fosse assistir a festa da inauguração. E minha avó que era muito [colé monté?], quer dizer, fazia muito questão de moralidade, essas coisas assim, achou que minha mãe era muito pequena e que não podia ir a essa festa. E por outro lado, minha avó estava doente qualquer coisa assim e não podia levar a minha mãe.
Então dona Veridiana disse à minha avó o seguinte: “Dona Gabriela, eu prometo à senhora que eu não largo a mão da Lucilia um só minuto durante a festa…
(Sr. Gonzalo: Aí é o capítulo seguinte, que é a família Ribeiro dos Santos nesse assunto.)
Daqui a pouco eu conto a você umas coisas assim desse gênero, na medida em que tudo isso continue a interessar.
Então, levaram mamãe lá, a Veridiana pegou mamãe e realmente segurou como quem segura um pacote, pela mão o tempo inteiro. E minha mãe achava cacete de morte, porque a dona Veridiana tinha que atender uma pessoa, outra, era dona da casa, etc., e não podia prestar atenção na minha mãe, ela apenas tinha a sensação precisa de que a mão de minha mãe estava dentro da mão dela. Minha mãe não entendia nada daquilo e estava cansadíssima, e em certo momento, ela disse para dona Veridiana: “olhe, eu não agüento mais, a senhora não quer arranjar uma cama para eu dormir?”
A dona Veridiana: “sim, eu arranjo para você uma cama num quarto lindo, porque tem um pintura no teto representando o dia que nasce”. E levou mamãe e deitou lá na cama, etc. E mamãe acordou de manhã e a primeira coisa que ela viu quando acordou foi que o dia já tinha nascido e é uma pintura… Era uma pintura mitológica que eles gostavam muito, e que acho horrorosíssima.
Mas o que tinha lá naquele jardim, era um lago muito grande, com gôndolas e todo iluminado com potezinhos de lâmpadas com essência, assim, e as gôndolas levavam as pessoas de um lado para outro, etc., etc., e os gondoleiros, etc., e tal, e isso minha mãe — era menina — achou uma beleza, uma coisa fenomenal. E conservou essa recordação a vida inteira. Ela, uma vez ou outra contava isso.
Dá um pouco a vocês a idéia da…
* As três características que favoreciam a família Ribeiro dos Santos
(Sr. Gonzalo: E como era a relação com família Ribeiro dos Santos?)
É certo que o Prados tinham muito mais dinheiro e portanto tinham também muito mais prestígio social do que a família Ribeiro dos Santos, mas três coisas militavam a favor da família Ribeiro dos Santos: primeiro é que tinha um bom nome de família e uma boa situação. Mas em segundo lugar, é que minha avó era muitíssimo bonita, de maneira que a presença dela numa festa, dava brilho à festa, e era portanto muito desejada. E por fim, meu avô era dos melhores advogados de São Paulo, e como ele não tinha tempo suficiente para tratar de todos clientes que se apresentavam — ele não gostava muito de ter vários advogados trabalhando com ele, ele era desconfiado a achava que não dava certo — ele escolhia os melhores clientes e os outros ele dizia que lamentava mas não podia cuidar do caso.
Mas como ele era muito, muito bom advogado, sobretudo ele tinha a arte de fazer contratos, e todo o mundo dizia que um contrato feito por ele ninguém destruía, as pessoas ricas julgavam uma vantagem muito grande agradar a ele para, em conseqüência, ele aceitar de advogar para elas. De maneira que eram circunstâncias que elevavam, que projetavam…
* Como a Senhora Dona Lucilia contava o baile branco, dado pelo Conde Penteado para inauguração de sua casa
Em frente a casa da dona Veridiana, era a casa do Conde Penteado. E esse Conde Penteado deu numa ocasião, um baile branco para celebrar, creio que foi a inauguração da casa, qualquer coisa assim, e então mandou para todo pessoal que fosse de primeira categoria de São Paulo, convites, mas especificando no convite que as senhoras deveriam apresentar-se vestidas de branco, e os homens deveriam levar — eles usavam casaca — deveriam levar na casaca uma flor branca.
E mamãe contava isso com suspense, o que eu vou dizer agora.
Que os bailes naquele tempo eram diferentes do que se tornaram depois na São Paulo de meu tempo. Começava com um baile, mas relativamente cedo, oito, oito e meia da noite começava o baile. Ia a dança mais ou menos até às dez. Às dez, parava a dança, e tinha preparada, numa outra parte das casa, mesas para as pessoas comerem. Então servindo uma lautíssima refeição. E depois, terminada a refeição, voltavam para o baile e ia até de madrugada. Por isso que também esses bailes eram sempre nas vésperas de feriados, etc., para os homens não precisarem trabalhar no dia seguinte.
E então o momento de sensação, era o momento em que terminada a primeira parte do baile, e no momento em que as pessoas iam passar para a sala de refeições, o dono da casa ia convidar para ir com ele numa mesa, a senhora que ele quisesse mais distinguir.
Você pode imaginar, sendo o Conde Penteado um homem riquíssimo, como era honroso receber uma [inaudível] dessas.
E mamãe contava que esse baile [era] particularmente brilhante, bababá, que foi um suspense quem é que o Conde Penteado ia convidar. E que ele atravessou a sala devagar, mas não com ar de quem está escolhendo, é com ar de quem não tem pressa, mas à medida que ele ia andando, o suspense ia se acentuando. Foi, inclinou-se diante de vovó e ofereceu o braço dele para vovó. E vovó levantou-se e com ar de muita naturalidade foi conversando com ele pelo braço, atravessando salões, etc., etc., enquanto os outros pares se organizavam para ir para….
Nessa…
(…)
… para evitar de degringolar e passar para o outro lado do muro. Porque a minha avó tinha um filho mais velho no qual ela depositava toda confiança.
(…)
* Como o Senhor Doutor Plinio comprou o sofá do hall de entrada do primeiro andar
… gosta muito dessa cadeira, e comprei, você não sabem por quanto, eu passei diante do tintureiro e disse: “você me vende essa cadeira?”
Ele deu risada e disse: “mas o senhor quer comprar essa cadeira?”
Eu dei risada também e disse: “quero! Quanto é que você pede por isso.
Ele disse: “ah!”
E disse assim: “esses moços — tem uma palavra assim… eu nunca fui grã-fino em minha vida, mas uma coisa assim — têm uns modos de jogar dinheiro fora, que eu não sei o que é que é. Bom, eu peço para o senhor dez mil réis por essa cadeira.”
Dez mil réis não era nada. E eu comprei essa cadeira.
E aquele sofá na entrada do hall é um sofá que eu comprei fazendo uma excussão na Bertioga em Santos.
Nós estávamos numa lancha — os da rua Pará também — e andando por canais, etc., etc., um passeio muito bonito. Quando, de repente — era um domingo — encontramos uma fazenda de cana com dois times de rapazes jogando futebol, mas jogando com um ardor muito grande. Nós achamos aquilo curioso e descemos para falar e para ver um pouco o que era, etc. E era uma família de caipiras que todo o mundo que morava ali era parente, nunca saíam de lá, nem sequer para ir para Santos para se divertir, eles faziam as diversões ali naquela coisa deles. E andando assim por aquilo de um lado para outro, o Pacheco me disse baixinho:
“Vá no galinheiro que você vai ver um bonito móvel”.
Eu disfarcei, fui lá e olhei e aquele móvel [que] é tido como móvel império, muito bom. E eu perguntei por quanto é que queriam me vender.
— Vinte mil réis.
Então eu mandei pôr na nossa lancha e trouxe para São Paulo essa cadeira e aquela história.
Agora, depois me nasceu um problema de consciência que era o seguinte: eu tinha comprado essas coisas por um preço vil, aproveitando a ignorância desses sujeitos. Eu não era obrigado a entrar com um dinheiro para pagar por isso o que valia?
Eu tinha toda impressão que…
(…)
* O arquiduque Otto recomenda ao Senhor Doutor Plinio relacionar-se com um cardeal armênio
… Europa, eu tive com o arquiduque Otto de Habsburgo e falávamos uma coisa e outra, e ele me disse:
“Professor, se o senhor quer ter boas relações com o futuro papa, o senhor procure o cardeal armênio [Agajânia?] que é um homem, isto, aquilo, aquilo outro, e que será o futuro papa.”
Quando chegou aqui no Brasil, daí a pouco o Congresso Eucarístico e o cardeal [Agajânia?] aparece aqui para o Congresso Eucarístico. E eu expus essa coisa a d. Mayer e disse a d. Mayer: olha aqui, vamos na casa do turco tal assim, onde está hospedado o cardeal [Agajânia] e vamos fazer uma visita ao cardeal com um pretexto qualquer. Porque se de fato ele ficar futuro papa, nós somos uns brasileiros que ele já conhece, e pode ser uma coisa muito interessante.
* Visitando o cardeal armênio que estava hospedado em casa de outro armênio, o SDP recebe deste último, uma “vingança” dos Pangelas!
[Era] um parque lindo, com uma casa grande, meio cafajeste, mas rica, desse armênio que estava hospedando o cardeal. E o cardeal apareceu, um homem aliás, muito imponente, assim… Ele poderia ser uns dos reis magos do presépio de Natal. E o turco ficou também na sala. E começamos a conversar normalmente, e em certo momento, ele introduziu o turco na conversa, e eu me voltei para ele, e disse:
“O senhor é de São Paulo ou é do Rio?”
Ele disse: “Eu sou de São Paulo. Vim morar no Rio porque não posso suportar aquela tirania daquelas famílias antigas de São Paulo, que maltratam, que esmigalham as pessoas novas que vêem carregando novos destinos para a nação — novos destinos para a nação, vocês sabem o que é que são, não é? — e é preciso dizer ao senhor que eu não suporto nem de pensar naquela gente de São Paulo”.
Por onde eu percebi que ele estava me reconhecendo e que ele estava dizendo uma série de desaforos porque via que a situação era propícia para desabafar o ódio dele.
Mas se eu brigasse com ele, eu poderia ficar mal com o futuro papa, engoli completamente tudo, fingindo que não entendia que era comigo, e levando a conversa de um jeito que o cardeal não entendesse o que é que o compatriota dele estava falando. Demoramos algum tempo e saímos. Depois o que eles falaram eu não sei.
Era a vingança dos “Pangelas”.
Então, meu Mario, o que é que você me conta? Você está vindo da onde?
(Sr. M. Navarro: Eu estou chegando do Rio, senhor.)
Quer dizer, você não foi a Aparecida?
(Sr. M. Navarro: Passamos agora à noite só.)
Ah, quer dizer, você não assistiu a missa, etc.?
(Sr. M. Navarro: Não.)
Você veio com quem?
(Sr. M. Navarro: Com o sr. Patrício, o sr. Julio Loredo e o sr. Dufaur.)
E saíram do Rio a que horas?
(Sr. M. Navarro: Por volta das cinco e meia.)
Por volta das cinco e meia é? Você deve ter navegado bem, e deve estar cansado, é? E qual é o desfecho daquele negócio? Ainda continua?
(Sr. M. Navarro: Praticamente terminou. Três americanos ainda estão lá, mas amanhã viajam.)
Mas quer dizer, que o seu ônus está liqüidado?
(Sr. M. Navarro: Graças a Nossa Senhora.)
Felizmente.
(Cel. Poli: Não está muito entusiasmado, o sr. Mario.)
Não, nada, nada, ele está louco para dormir. Não vamos retê-lo não. Nós estávamos nos preparando para sair, ouviu?
Bem, vamos rezar três Aves Marias…
Ave Maria…
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