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Conversa de Sábado à Noite — 23/5/92 — Sábado

As minhas reações contra o mundo de hoje, são de repúdio marcado pelo nojo, porque há certa ordem de coisas que não irritam, enojam * Lendo livros sobre a Europa, o SDP tinha muito a idéia de qual era o estado de espírito dominante nos vários povos europeus * Apesar das várias decepções, no total, o espírito, a alma, o maravilhoso de cada povo, o SDP notava que tinha pego bem * O SDP gostava de freqüentar, em São Paulo, o bar Rütli * Nas conversas com o Reizinho, comendo caviar Romanov, o SDP ia recompondo o ambiente que o Paleologue descrevia sobre a Rússia * Na admiração dos povos, o SDP construía o ideal de homem que era o homem da Civilização Cristã * O SDP fazia de uma noite no Rütli, uma noite de vida espiritual, uma noite de penitência * Já muito de longe, o “Em Defesa” ia se delineando no espírito do SDP * Qual foi a revolução do automóvel e o porquê o SDP não olhava para os automóveis * A cultura do efêmero em oposição à Tradição * Foi do alto das arquetipias que eu elaborei em menino, que se estabeleceram as críticas de tudo quanto veio depois

tendo ocasião de ler um autor brasileiro de que eu creio que poucos ouviram falar; quem é de vocês que ouviu falar de Carlos de Laet?

* O Senhor Doutor Plinio faz suas primeiras leituras de Carlos de Laet

(Sr. Gonzalo: Todos.)

(Sr. Guerreiro: Ouvi por causa do senhor.)

Merizalde, você não prefere aquela cadeira lá que é mais cômoda?

(Sr. Merizalde: Aqui está bem.)

Foi só por mim que ouviram falar?

(Sr. Gonzalo: Sim, senhor.)

Vocês brasileiros, Mario por exemplo, já tinha ouvido falar de Carlos de Laet, certamente não é?

(Sr. M. Navarro: Provavelmente.)

Mas não se lembrava disso?

(Sr. M. Navarro: De tal modo eu ouvi no Grupo, que já não me lembro se eu tinha ouvido antes ou não.)

Era um escritor católico e monarquista do século passado, mas que tinha o dom apreciadíssimo dos meus conterrâneos, de fazer rir. Ele até fazia um pouco pensar, mas fazia muito mais rir do que pensar. E como em geral os que riem não estão do lado da Igreja nem da monarquia, ele produzia devastações no campo adversário, porque ele atraía gente que habitualmente não estava do lado dele. Mas eu ouvi em menino, porque o meu tempo de menino coincidiu com o fim do apogeu dele. Eu ouvi em menino muitos elogios dele, etc., etc., e pela primeira vez agora, me caíram livros dele na mão.

(Sr. Gonzalo: Pela primeira vez?)

Pela primeira vez. E eu estava folheando um elogio fúnebre do general Osório…

(Sr. Guerreiro: Que era um republicano, não é?)

Osório era um republicano velado.

Ele põe o Osório no mundo da lua, mas com um pernosticismo, com uma… Ele tem bons achados, é assim, ele tem umas jóias no meio do pedregulho, mas o pedregulho é enorme, e eu estou até desabafando para poder falar de outra coisa. Vamos falar de outra coisa.

* As minhas reações contra o mundo de hoje, são de repúdio marcado pelo nojo, porque há certa ordem de coisas que não irritam, enojam

O que é que me dizem? Contam? Falam? Perguntam?

(Sr. Gonzalo: [Resumo das outras reuniões anteriores] O senhor nos mostrou que o senhor estava muito trabalhado por esses flashs, dessa ordem de coisas, que o senhor tinha muita afinidade com a igreja do Sagrado Coração de Jesus, então foi por aí que o senhor viu que isso tem um valor religioso. Agora, normalmente quando se trata dessas coisas a respeito do senhor, as pessoas vêem separado do amor de Deus e da própria vida interior e da vocação do senhor.)

É, esse é o erro.

(Sr. Gonzalo: E como esse erro está muito expandido, o resultado é que foram muito corretivos para nós o fato que o senhor trate disse mostrando o valor religioso para a formação que isso tem.)

(Sr. Guerreiro: De forma contra-revolucionária.)

É, de formação contra-revolucionária.

(Sr. Guerreiro: O senhor entra no âmago de como foi a sua formação.)

É bem o ponto.

(Sr. Gonzalo: O pedido era que o senhor continue tratando de exemplos ainda, para depois o senhor mostrar a importância que isso tem do ponto de vista da Revolução. Se for possível não reduzir isso só ao tempo de menino, porque isso continua agora…)

Ah, claro!

(Sr. Gonzalo: Não sei se está claro?)

Está claríssimo, está muito bem exposto. Mas quanto ao dia de hoje, é preciso ponderar o seguinte: é que as condições de hoje não têm quase nada que eleve, de maneira que as reações são necessariamente de um repúdio, mas já não é nem sequer de um repúdio horrorizado, e de um repúdio assim, vamos dizer, marcado pela rejeição, pela cólera, pela indignação, mas um repúdio marcado pelo nojo, porque há certa ordem de coisas que não irritam, enojam.

Você se lembra daquela verso do Dante não é? [Diz o verso em italiano] Quer dizer, aquilo fica de lado, não se pensa naquilo.

Bem, assim quase tudo hoje. De maneira que eu sou obrigado a tomar o tempo mais remoto porque não encontro hoje.

* Lendo livros sobre a Europa, o SDP tinha muito idéia de qual era o estado de espírito dominante dos vários povos europeus

Mas pegam uma coisa assim, folheando muito, revistas sobre a Europa, lendo livros sobre Europa, não livros de guide, guide bleau essas coisas, mas lendo livros que com cenas históricas ou de outra natureza, que se passavam neste ou naquele país da Europa, sobretudo no século passado — as que eram mais objeto dessa transposição para modelos ideais, eram as coisas do século passado rumo Ancien Régime e depois Idade Média — eu tinha muito idéia de qual era o estado de espírito dominante nos vários povos da Europa, que eu conhecia sem nunca ter estado lá a não ser com 4 ou 5 anos, o que equivale a nada; eu conhecia como se conhecia individualmente a uma pessoa.

De maneira que, por exemplo, Bélgica, Holanda, Itália, Suíça, Espanha, Portugal, para não falar dos dois países príncipes: Alemanha e França. Não muito a Inglaterra. Enfim, eu conheci o ambiente, a psicologia daquilo, como se eu estivesse estado lá. A tal ponto que quando visitei a Europa, quase que tive um certo desapontamento. Não por ser ela inferior ao ao eu imaginava, mas porque o que eu imaginava era idêntico a ela.

Vamos dizer por exemplo, o Arco do Triunfo, de Napoleão. Aquele Arco do Triunfo não é muito napoleônico, foi construído por ele, mas não é muito napoleônico, porque tem uma porção de atenuantes que… A primeira nota não napoleônica do Arco do Triunfo de Napoleão, é que olhando a gente não se lembra dele. Ele está nos Invalides onde eu nunca fui vê-lo.

* A primeira noite do Senhor Doutor Plinio em Paris

Bem, eu me lembro a primeira noite que eu estive em Paris, eu cheguei a horas tantas ou quantas, nem me lembro bem, mas fomos ao hotel, nos arranjamos, lavamos, bababá, e já estava na hora do jantar. Naquele tempo não se comungava à tarde, de maneira que com a viagem tínhamos a comunhão, e fomos então jantar. E escolhemos um restaurantezinho, que os meus companheiros, com exceção do Paulo, [mais] rico do que eu, que não sou rico. Mas muito mais econômicos do que eu, eu entendia a chegada a Paris forçosamente assim:

Se era para a hora do jantar, era forçosamente ir a um restaurante onde, sem ser um dos restaurantes assim, mais fabulosos, mais elegantes, se comesse a verdadeira e autêntica comida francesa à vontade, sem pressa. Seria meu primeiro encontro com Paris. Encontro reverente, faminto e desejoso de ver tudo.

Mas, meus amigos não entendiam isso assim, e fizeram questão de jantar perto do Arco do Triunfo, mas com uma idéia por onde ficávamos nas tais mesinhas situadas na calçada — coisa que eu acho extremamente pitoresca, porque é todo espetáculo da vida que passa. A vida do país se vê numa calçada.

No Rio de Janeiro tinha, antigamente, na Av. Rio Branco, eu não sei se você alcançou. Paulo Roberto deve ter alcançado, não é meu filho?

(Sr. Gonzalo: O senhor acha a mesinha interessante para jantar fora, ou para tomar chá ou coisas desse tipo?)

Também para jantar fora. Ela é muito mais adequada para o chá. Mas também se janta fora muito bem. Ainda mais no verão quente da Europa, se janta muito bem.

Mas eles inventaram um restaurante que descobriram que era mais barato, e que por causa disso não era na av. principal onde se via o Arco do Triunfo, mas vê-se o lado do Arco do Triunfo. Exatamente um dos defeitos do Arco do Triunfo é que ele é muito assim roda de pavão para quem vê de frente, mas ele desaponta para quem vê de lado. Porque ele tem pouco fundo. E ali se estabeleceram meus amigos, certos de que eles estavam apreciando o Arco do Triunfo.

Eu não disse nada, apenas notei naturalmente que me faltava conversa. Mas resignadamente comi os escargots que… o jantar seria escargot com vinho tinto. Eu não gosto de vinho tinto — não gosto de nenhum vinho — e faço pouca questão de escargot. Mas eles se regalaram só porque era escargot que não se come habitualmente aqui, porque estavam em Paris, e porque estavam olhando o Arco do Triunfo.

Para mim era o “arco da decepção”. Mas eu olhava aquilo desapontado, pensando: esta é a Europa real, mas vista do ângulo por onde eu não devia ver. Porque era o ângulo a partir do qual não se pega os grandes panoramas a que aquilo conduz.

* Apesar das várias decepções, no total, o espírito, a alma, o maravilhoso de cada povo, o Senhor Doutor Plinio notava que tinha pego bem

No dia seguinte fomos almoçar na Tour Eiffel. Almoçar na Torre Eiffel — era naquele tempo, não sei hoje — era mais ou menos como jantar numa estação de trem. É uma coisa…

Lá também a gente pega outras realidades. A torre Eiffel comemorativa do centenário da Revolução Francesa, coisa que nenhum de nós sabia, se eu soubesse eu não teria ido. A torre Eiffel, a gente vê de longe, ela tem uma silhueta muito elegante, o tal Eiffel com tanta ferragem, e tantos pregos, soube fazer uma coisa que vista de fundo assim é meio azulada e [contextura?] muito elegante. Mas quando a gente janta na torre, é um mundo de ferros que trançam brutalmente, você sente mais ou menos sentado no terraço de uma prisão que depois vai ser murada. Com aquela coisa horrorosa.

Assim várias decepções. Mas no total, o espírito, a alma, o maravilhoso de cada povo, eu notava que tinha pego bem.

Isso faz compreender a vocês, o que eu vou dizer agora.

* O Senhor Doutor Plinio gostava de freqüentar, em São Paulo, o bar Rütli

É que havia aqui em São Paulo, que já não era a Sãopaulinho, era a São Paulo do meu tempo de moço — mas ainda não era a Sãopaulaça que está aí — tinha ainda muita coisa de europeu autêntico, de gente vinda da Europa que abria aqui casas com doces, com isto, com aquilo e com aquilo, formando um comércio autenticamente estrangeiro, porque o protecionismo que o Getúlio concedeu às indústrias mais ordinárias para servir o povo qualquer porcaria, desde que não saísse dinheiro para a Europa, e desde que, no fundo a cultura européia fosse afastada da mentalidade do povo para ser americanizada a la Hollywood, ou ser trivializada, ser degradada, que foi o que ele fez. Eu estou falando do tempo portanto anterior a isso, que havia muito disso ainda, havia algumas confeitarias, e alguns restaurantes, etc., etc., que eu freqüentava com verdadeiro gosto, pela coisa que dava.

Então, por exemplo, nós íamos muito a um barzinho que eu já tenho falado aqui, chamado Rütli, que era um barzinho suíço, de donos suíço.

(Sr. Guerreiro: Qual era o nome?)

Rütli. Deve ser algum lugarzinho da Suíça de que era originário o dono do bar, eu suponho. Poderia ser, talvez, um nome de uma família, qualquer coisa.

Mas tinha uma porção de coisas pitorescamente rudes, saborosamente rudes, que eram diferentes do ambiente de São Paulo.

O Rütli era assim em três lances, ele tinha uma entrada que tinha, talvez, a largura dessa sala assim — vocês estão vendo, é uma coisa pequena — com um balcão grande, e aquilo relativamente fundo, em comparação com o que vinha atrás. E relativamente ornado, mas ornado a la maneira comercial, não ornado à maneira de querer fazer arte. Umas vitrines, umas coisas bem arranjadas etc.

* O prato de que o Senhor Doutor Plinio mais gostava de comer no Rütli

E o étalage de comida saborosíssima, das quais para mim, a mais saborosa era um pedaço de carne de vaca, assim cumprido, que se chama lagarto, ou coisa assim. Não sei se vocês identificam isso. Mas estava num ponto sempre excelente. Era cozinhado de tal maneira que sem grande esforço de mastigação, o suco lhe vinha às ondadas dentro da boca.

Depois, aquilo era carne já, às vezes, um pouquinho… podia ser mais nova, mas parece que tinha tomado o tempo para deitar todo o seu gosto. Servida muito simplesmente com pão preto que tinha todos os sabores rudes, gostosos, do pão preto. Sentido pelo meio da massa as sementes, não sei bem do quê. Mas eram umas sementes que a gente mastigava, e aquilo supunha uma certa força, o pão supunha força também, e o prato era muito simplesmente de pão, aquele pão. Pilhas de manteiga cheirando a ervas que davam para as vacas comerem, e estavam muito gostosas, e por cima, mostarda. Mas boa mostarda estrangeira.

Você comia dois ou três pedaços desses, era um jantar. E tomava uma das poucas bebidas alcoólicas de que eu gostava, tomava [Kumel?] que era uma bebida que vocês devem conhecer, que está em garrafas revestidas por dentro, de cristais, de álcool. [Kumer] é uma semente preta e muito gostosa.

* O Senhor Doutor Plinio gostava de comer caviar Romanov e pão preto

Bem, aquilo não era bom tomar no primeiro compartimento, porque o primeiro compartimento não era bastante suíço. O segundo era melhor e o terceiro era excelente. Porque à medida que os três compartimentos iam se estreitando, descia um degrau, e o do mais do fundo, parece que continha os odores e os sabores mais caracteristicamente do lugar. Nem tinha cadeiras, era uma espécie de bancos pregados na própria parede — cômodos, mas pregados na própria parede — com mesa simples e onde a gente comia as coisas mais saborosas, e também mais cara, [que] não era lagarto, mas era caviar Romanov; servido também — o que eu acho que hoje se consideraria uma gaffe — servido também com o tal pão preto, que era de todas as minhas predileções.

O caviar Romanov, é um caviar diferente desse caviar beluga que se come hoje, um caviar claro, delicadíssimo e delicioso. Ele era um caviar de um verde muito escuro, dado a preto, formando bolinhas, ovas, eram ovas do peixe, mas para caberem na latinha, eram meio comprimidas lá dentro, e comprimidas no próprio molho, e formava uma espécie de geléia em volta do caviar. A gente abria a latinha, que tinha naturalmente, em cima a água bicéfala dos Romanovs, e chamava caviar marca Romanov. Se chamasse marca Lenin, ninguém comeria e eu jogaria fora. E ia brigar com o suíço; como é que punha uma porcaria daquela à venda. Mas coisa deliciosa para tomar ou com o [Kumer] ou com cerveja bem gelada. Pode ser gaffe de menu, era gaffe de mocinho dos 18, 19 anos que queria emoções fortes, varonis, não muito sofisticadas, não muito alcandoradas, mas coisas que eram mesmo. E para saúdes fortes, porque aquilo era preciso comer violências, beber violências e ir dormir como criança. Não interromper o sono nem uma vez durante a noite.

Mas às vezes não era caviar nem era nada disso, mas eram salsichas excelentes.

(Sr. Gonzalo: Também importadas?)

Também importadas. Sempre presente o pão preto. Eu tinha loucuras por aquele pão preto, era o melhor de São Paulo a meu ver. Devia ser um pouco velho, pão preto muito novo não era indicado. O bom é quando ele está começando a ficar um pouco seco, aqui que está no ponto dele. Cheira mais forte também, etc.

* No Rütli, um ambiente de artificialidade deliciosa

E eles lá entendiam que nós entendíamos, porque éramos servidos… E dávamos boa gorjeta apesar de termos pouco dinheiro. Chegávamos lá no fundo, meu primo e eu…

No restaurante não tinha ninguém de brasileiro, ouvia-se falar alguma das três línguas da Suíça misturada ali dentro. Gente que fumava, e formava um ambiente de uma artificialidade deliciosa. Você não se sentia na rua Barão de Itapetininga, você não sentia nada, você se sentia num ambiente turístico, universal, artificial, onde eu reconheci, anos depois, estando na Suíça, é um certo gosto de viver — não estranhem em eu dizer, mas é uma coisa que por exemplo encontro naquela princesa que era alemã [parece se referir ao quadro de uma bisavó de D. Luís que está no salão azul] — um certo gosto de viver que tem algo de muito bom como qualidade, mas onde os prazeres vegetativos não estão excluídos. Então era uma boa comida, uma boa cadeira, uma boa bebida, e você sentia seu corpo bem tratado um pouquinho como no céu empíreo, servindo como ponto de partida para elucubrações da alma.

* Nas conversas com Reizinho, comendo caviar Romanov, o Senhor Doutor Plinio ia recompondo o ambiente que o Paleologue descrevia sobre a Rússia

Por exemplo, eu me lembro comer caviar — caviar era bem caro, uma latinha assim, se o meu primo comece duas latas e eu duas numa noite, nosso fim de semana estava arrebentado. Mas às vezes acontecia que se fazia.

Eu conversava com ele sobre as coisas que interessavam a ele, mas eu estava lendo naquele tempo, Maurice Paleologue, “La Russie des Tzar”, e eu recompunha o ambiente que o Paleologue descreve superiormente bem, eu recompunha comendo aquele caviar.

Há alguma coisa que tem nexo entre a mentalidade de um grão-duque cujo nome me esqueci — talvez Mario se lembre do nome dele — altão, com uma barba pontada assim e uma espécie de herói saindo dos Urais.

(Sr. Gonzalo: Nicolai?)

Eu acho que Nicolai Nicolaievich, se não me engano.

Mas que me parecia o tipo do russo descido dos urais que eu sabia que não são bem russo, mas que fazem o quadro da Rússia, e comendo aquilo. Um sabor também forte, um sabor que faria com que mocinha achasse ruim, porque é ácido, porque não sei o quê… mas é bom, é gostoso. E que pode haver de forte em uma porção de coisas da Europa, com variantes, da Suíça para a Rússia, toda espécie de variantes, passando pela Alemanha. Mas aquilo tudo me vinha ao espírito da degustação de uma fortaleza ideal que seria muito diferente de um lugar, por exemplo, onde tudo fosse mole, onde tudo fosse aprazível, fácil e com aquela moleza das coisas já em estado de deterioração, e que não me agradava absolutamente.

* Na admiração dos povos, o Senhor Doutor Plinio construía o ideal de homem que era o homem da Civilização Cristã

Mas não me agradavam por quê?

Porque eu sentia a verdadeira necessidade de ter firmeza de princípios, e se é verdade que hoje em dia, graças a Nossa Senhora, eu consegui essa firmeza, e firmeza de caráter, por meu natural eu, por alguns lados tinha, mas por alguns lados eu tinha o contrário disso, eu era o arquétipo do mole, do pirão, do entregadão e eu sentia a necessidade de reagir contra isso. E ao admirar esses povos e esses valores, eu construía diante de mim, a idéia de um ideal de homem, que era o homem da Civilização Cristã, eu podia ir a um catecismo e encontrava ali a confirmação de tudo quanto eu estava [vendo] nesse sentido. E para mim isso era capital, porque se tratava de ser como a Igreja. Aqui está a questão.

* O Senhor Doutor Plinio fazia de uma noite no Rütli, uma noite de vida espiritual, uma noite de penitência

Mas de outro lado, eu encontrava ali também alguma coisa que atraía e — aqui está um outro ponto importante — para mim o ponto importante era fazer penitência, mas fazer a penitência que consistia em procurar ser bom, ser como a Igreja quer que a pessoa seja. Que é uma rude penitência. Procurar ser seriamente direito, seriamente católico, seriamente bom, é rude! Mas muito mais rude do que qualquer cilício. Porque quando a gente se coloca seriamente dentro dessa tarefa, a admira, tem entusiasmo por ela, quer fazê-la, a gente é obrigado a se segurar a si mesmo com mão de ferro.

E, portanto, tudo isto, que poderia parecer para qualquer outro uma distração, para mim era uma vida espiritual.

Não sei se está claro?



Eu teria exultado se eu tivesse encontrado um modelo de santo que tivesse tido esses problemas como eu, em que eu visse preceder-me nessa escola procurando desta maneira elevar-se até onde a Igreja manda. Mas eu não conhecia. As vidas de santos que eu via aí, eram as que vocês conhecem, que ocultam o que possa aparecer na vida de um santo, nesse sentido.

E então, eu fazia de uma noite de Rütli, mas de quase tudo que eu via, o Rütli é um exemplo que eu estou dando para me tornar inteligível, eu fazia uma noite de vida espiritual.

Coisa que meu primo não percebia porque as cogitações dele eram outras, e as vias também. Mas íamos tocando o barco. Algo filtrava do que eu pensava e ele gostava…

(…)

* Andando de bonde, na neblina de São Paulo, vinha ao Senhor Doutor Plinio a idéia de que, um dia viria em que a Contra-Revolução progrediria, que ela faria progressos no meio das brumas

mas não era só. São Paulo, naquele tempo já não era mais a São Paulo da garoa, mas ainda era a São Paulo da neblina, e uma neblina muito bonita, prateada, que vinha lá da vargem do Carmo, do parque D. Pedro II, etc., e que, tocada pelos ventos, não sei por que fenômenos, chegava até o Anhangabaú. Na Várzea do Carmo eu não ia nunca. O Anhangabaú era, para o viaduto de chá, ponto de passagem obrigatória.

Mas me lembro, por exemplo, de um noite atravessar de bonde o viaduto do Chá, mas já era tarde da noite. Eu ia para o Centro. E eu via a neblina que estava sobre o viaduto tão densa, que a gente tinha a impressão falsa de que o bonde ia se descarrilhar a qualquer hora, a qualquer momento. De fato o condutor andava um pouco mais devagar, e aquele blen-blen, uma espécie de… uma coisa que ele tinha no pé para tocar o sino, uma advertência. Ele tocava mais insistentemente de medo que houvesse algum bêbado, alguma coisa deitada no leito do bonde, para a pessoa ter tempo de fugir.

Era, portanto, um trajeto um pouquinho mais longo do que o de costume, e naquela neblina, foco de luz, para aquele tempo muito intenso e que davam àquela neblina uma consistência curiosa porque a gente não via o foco de luz a não ser dentro do pastoso, luminoso da neblina. Mas uma neblina que é curiosa, porque era uma neblina seca, ela depois não deixava a roupa molhada, nem sequer as mãos molhadas. Mas dava a impressão da gente estar andando dentro de uma espécie de futuro grandioso e radioso dentro do qual a gente teria que caminhar um dia. E toda idéia de que um dia viria em que a Contra-Revolução progrediria, que ela faria progressos no meio de brumas, mas que essas brumas seriam iluminadas por dentro por um ideal argénteo e que isto era o futuro para o qual eu tinha que caminhar, me enchiam a alma de esperanças, de confiança na Providência, etc., etc. De maneira que era outra forma de exercício espiritual no fundo.

Agora, não sei se é o gênero disso que os senhores querem ouvir?

(Sr. Gonzalo: É exatamente isso.)

Depois chegava ao centro. O Centro era constituído de edifícios muito mais altos do que os anteriores, porque como toda cidade, há várias São Paulos que foram se sucedendo… destrói uma, constrói outra, destrói uma, constrói outra. Mas muito menos altos do que os de hoje, mas que para mim pareciam edifícios altos. E muito ornados porque eram edifícios antigos. Eles estavam para ser varridos pela nova onda marcada pelo edifício Martinelli na ladeira São João. E por causa disso, eu entrava no Centro inteiramente só, via aqueles edifícios sós, as ruas praticamente sem ninguém, iluminadas como na hora do comércio, mas praticamente sem ninguém, os anúncios, depois nos toldos das casas comerciais pintado os títulos das casas com algum símbolo da casa, uma espécie de coisa comercial representando a casa, etc., etc.

E eu tinha a impressão curiosa, que as solidões me causam muito, e que é a diferença que há entre o que os homens construíram e pintaram, e os homens que construíram e pintaram aquilo, e que durante o dia andavam no meio daquilo. A rua tomava um aspecto muito melhor do que durante o dia.

(Sr. Guerreiro: Essas impressões que a noite causam dão uma espécie de embriaguez, mas uma embriaguez que colocam a pessoa num estado de mais excelência.)

É isso exatamente.

E então compreendendo qual era o mundo ideal que andava na cabeça daquelas pessoas — que copiavam aquilo tudo de modelos europeus — qual era o mundo real que aquela gente vivia, deformada por circunstâncias locais e pelo maldito cinema de Hollywood. Quer dizer, uma defasagem, um rumo que começou a ser tomado e rejeitado, e as pessoas iam olhando para aquilo que tinham querido, mas afastando-se lentamente. E a gente percebia que em certo momento aquilo ia ser destruído, e iam fazer o horror para o qual eles estavam caminhando. Foi feito.

Eu me lembro por exemplo uma casa chamada… Veja se você encontra em um lugar do Brasil hoje, uma casa que tenha esse nome, era uma floricultura. Chamava-se “La Rose de France”. E tinha uma vitrine grande, seria talvez do tamanho desse arco, portanto para a semi-Sãopaulinho, mas a gente percebia do lado de lá da vitragem, que eu acho que ainda não era essa infame matéria plástica, era vidro, a gente percebia as flores que eles expunham. Mas eu tenho impressão que o comerciante lá julgava que faltava umidade no ar para as flores durante a noite não secarem, porque a água escorria continuamente ao longo daquele vidro, mas tão bem disposto que ela não chovia, ela escorregava ao longo do vidro, perpendicularmente e um tanto devagar. Eu não sei como é que ele conseguia fazer isso. Com certeza devia entrar numa valeta, uma coisa qualquer e sumia, porque o chão não ficava molhado em nada.

E — isto que é o lado interessante — eles tinham conseguido fazer com que a água descesse formando assim, babados, assim… [vira a fita]

mas a coisa muito bem feita, e por detrás tinha flores bonitas, mas flor é flor, não eram maravilhas, eram flores bonitas. Mas para mim o bonito não era a flor, era o jogo d’água. Agora, você ficar diante daquilo olhando à noite… suponho que houvesse um guarda lá para dentro, porque de repente alguém metia um pontapé e roubava a flor. Também não sei se a flor valia a vitrine, também não sei nada. Mas na rua vazia, o espetáculo para o que ninguém olhava, mas que pacientemente se repetia pela noite inteira na solidão, fazendo-me lembrar de uma triste solidão em que emergiam coisas do passado que não deixavam de ter sua beleza e que representavam o afundar no passado, de toda civilização.

Não sei se eu estou…

(Claríssimo)

* Ver emergir no passado uma série de coisas, levava o Senhor Doutor Plinio a fazer uma meditação de caráter histórico

Por exemplo, também — agora, eu me desloco, é durante o dia — na Praça Ramos de Azevedo, aquelas figuras todas, aquelas pedras, aqueles vitrais do Teatro Municipal, quando foram feitos, eu me lembro ainda de mamãe e papai, minha avó e outras pessoas de minha família preparados para irem à inauguração do Teatro Municipal. Era tido como uma grandíssima coisa, importantíssima coisa.

As pessoas olhavam com muita reverência para o teatro municipal e prestavam atenção, havia uma espécie de… todos se sentiam flatés que em São Paulo houvesse esse teatro municipal. Não é nada tão grande assim, não tem nada de tão extraordinário, mas naquele tempo repercutia daquela maneira.

Eu olhando ficava muito entusiasmado e gostava muito. Mas eu ia percebendo, à medida que a cidade ia enchendo, o comércio ia passando do centro velho, sem abandoná-lo, e ia se estendendo pela rua Barão de Itapetininga e passava pela praça Ramos de Azevedo. E que o mundo comercial com as suas preocupações, com os seus clacksons de automóvel, seus anunciantes com os seus vendedores de pipocas caipiras no meio daquilo tudo, com seus mendigos pedindo esmolas, porque naquele tempo ainda era lícito os mendigos pedirem esmolas em praça pública e uma série de coisas assim, formavam um outro mundo que não só ignorava aquele teatro, mas aos poucos ia se tornando incapaz de compreendê-lo e afinal acabariam tomando birra dele. E que viria o dia — e virá — em que o teatro vai ser reformado.

(Sr. Guerreiro: Já foi.)

(Sr. Gonzalo: Ele foi restaurado, é reformado no sentido de desfigurar.)

Não, e depois não é só isso, às vezes fazem uma restauração que é um pródromo da demolição.

(Sr. Guerreiro: Parece que internamente…)

(Sr. Gonzalo: Ficou mais feio do que era. Eu estive outro dia lá…)

Eu preferia não ver de novo. Para mim, para quê?…

Mas então ver emergir no passado uma série de coisas, me fazia uma meditação de caráter histórico, sentir o pungente do crime que estava sendo feito, que tudo ia assim afundando, mas que a principal coisa que afundava era a Igreja, que a Igreja estava sempre cheia, tinha gente comungando, mas que no espírito daquela gente o que eu entendia como Igreja existia um pouco, mas ia se apagando cada vez mais, e que entre a letra dos ensinamentos, e dos espíritos das pessoas, ia se fazendo uma decalagem. E que haveria de vir o momento em que o espírito novo ia tentar transformar a letra.

Não sei se estou claro?

* Já muito de longe, o “Em Defesa” ia se delineando no espírito do Senhor Doutor Plinio

E que eu ia presenciar isto. E muito de longe era o “Em Defesa” que vinha se delineando no meu espírito.

Mas você está vendo que essa reflexão religiosa, não só porque se reportava à religião, mas era uma reflexão estritamente religiosa porque o padrão era a Igreja, como Ela é, é como se deve ser. Ela não é só perfeita, e em certo sentido literário da expressão, Ela é a própria perfeição. E se tem que ser como Ela, e o que se afasta desse padrão é perdição, é crime, é pecado e vai para o inferno. É rejeitável, é odioso porque é a Revolução que é a anti-Igreja levantada contra a Igreja. E eu percebia perfeitamente que este afundar no passado, era no fundo a Igreja que se afundava.

O que era tanto mais pungente para mim, que eu conversando com pessoas piedosas, ou seja, senhoras, porque naquele tempo não havia homem piedoso, ao menos eu não conhecia, elas falavam sobre coisas de religião, mas falavam coisas de uma preocupação religiosa já filantrópica. É a Liga das senhoras Católicas que está montando uma casa para velhos, está montando um orfanato, está montando não sei o quê, etc., etc., e chamando atenção continuamente para um problema para o qual Ela devia chamar atenção, estava direito, que era o problema da pobreza. Mas não em termos de evitar que a contemplação da pobreza redundasse numa compaixão igualitária, numa espécie de remorso de ter dinheiro, remorso de ser rico, a idéia de que se eles fossem bem fiéis à Igreja Católica, eles fariam uma espécie de comunismo católico.

Eu não sei se vocês…

(Sr. Gonzalo: Eu peguei isso também.)

Você pegou não é?

(Sr. P. Roberto: Peguei sim.)

Vocês pegaram alguma coisa disso? Na nossa Colômbia?

(Sr. Merizalde. Também.)

(Sr. Guerreiro: Que terrível operação de empobrecimento das almas…)

Colossal, colossal.

(Sr. Guerreiro: E para isso nenhuma compaixão, mas para a pobreza material, xodós e preocupação.)

Isso. Para o isolamento em que eu estava nenhuma compaixão! Pelo contrário, uma ferocidade inquisitorial, polida, mas inquisitorial como quem diz: “você, seu esquisitão, fique de lado, e curta seu infortúnio, porque você o procurou, não faltou quem lhe avisasse: não seja assim. Você é. Pague essa pena e não nos perturbe no nosso deleite da vida”.

(Sr. Guerreiro: A gente vê o que é que foi o espírito burguês da Revolução Francesa que foi se alastrando…)

É.

(Sr. Guerreiro: É a ruptura com todo esse mundo que estava simbolicamente no teatro municipal, para o interesse imediato.)

Só. Donde as idéias de decoro, de honra, de beleza, virtude, tudo quanto é valor espiritual ia desaparecendo para dar lugar ao gáudio puramente sensitivo.

* Porquê o Senhor Doutor Plinio não olhava para os automóveis

Nesse sentido, exatamente, uma coisa que eu evitava de olhar — eu vou fazer uma comparação muito exagerada, mas é como um homem puro evita de olhar o que não deve; está exagerado, mas é nessa linha — eram os automóveis. Porque o que me chamava atenção nos automóveis era o seguinte:

Eu tinha conhecido na minha primeira fase, os automóveis que eram sobretudo limousines. Mas uma limousine completamente diferente dessas limousines onde eu me faço arrastar hoje em dia. Eram altas, a pessoa não estava convidada a se desfazer numa série de acolchoados da limousine, mas eram salõezinhos e exigiam da pessoa, pela construção da limousine, uma posição ereta e distinta, em que a pessoa se mostrava e se fazia respeitar em virtude do dinheiro, da função e da importância social, do status que a limousine representava. Então as menores coisas de uma limousine eram muito cuidadas.

Por exemplo, havia à esquerda ou à direita de quem andava atrás, que é evidentemente a parte importante da limousine era atrás e não era na frente com o chauffeur. O dono do automóvel nunca guiava o automóvel, iam na frente dois chauffeurs, um para guiar e outro para abrir a porta.

Mas ia atrás para ajudar segurar naqueles solavancos de automóveis ainda insuficientemente regulados, iam cordões de seda. Conforme a cor interna da limousine que era sempre de uma cor clara, mas discreta, ia por exemplo gris pérle, ou outra coisa assim, de seda transada, e embaixo um pompom. E a pessoa ia segurando naquilo.

A janela da limousine alta, de maneira que dava para ver a pessoa até o busto, e formava dentro uma saletinha, porque tinha dois lugares atrás — a limousine era espaçosa atrás — dois lugares atrás, depois em cada porta um lugar, e na frente um banquinho de levantar e abaixar em que podiam caber três crianças. Era um automóvel feito para família numerosa em que ia a criançada com o pai e a mãe ou com o avô e a avó. E o homem para abrir a porta era indispensável, porque não podia abrir aquilo que a criançada toda se jogava. Então a criançada ficava obrigada a esperar que o chauffeur abrisse do lado de fora e que saíssem sem correr.

Saia sem correr! Saia sem correr!

As crianças saíam com distância psíquica e começava a andar.

Na frente, o chauffeur e o outro com uma casquete com uma história assim, como os soldados, assim, para proteger a vista contra o excesso de luz e o chauffeur guiando. O outro ao lado, olhando para frente. Não olhando para os lados, ou olhando assim, porque era falta de categoria. Olhando para frente até o automóvel parar. Quando o automóvel parava, imediatamente o ajudante descia, tirava o chapéu, e com o chapéu na mão abria a porta. Se uma senhora fosse descer com dificuldade, muito velha, etc., ele discretamente apoiava a senhora aqui, mas era só em caso de extrema necessidade. Mas o que ele fazia era pegar os pacotes que ela tinha e que às vezes eram numerosos, porque aquela gente comprava muito, e ele punha aquilo e tal, depois ia e abria o portão da casa para a senhora. Era todo um cerimonial.

E aí todo o mundo subia e o caso do automóvel estava resolvido.

Mas correlatamente com isso, vocês estão vendo que o automóvel se destinava a produzir uma porção de efeitos relativos a quem ia dentro.

Isso era o automóvel tipo europeu.

* Qual foi a revolução do automóvel

Agora, qual foi a Revolução do automóvel?

Vocês alguma coisa dessa podem ter pego. Duvido, mas podem ser que tenham pego.

É a seguinte: é entrar um automóvel que chamava muito mais atenção sobre si do que sobre quem ia dentro. O aspecto do que ia dentro era secundário, a coisa importante era o automóvel. Baixo, soi disant para ter mais facilidade de correr, porque mais alto encontrava mais oposição do vento, e mais baixo ele corre mais. Portanto, dando a impressão que os donos estavam sentados a uma pequena distância do chão da rua, e que se media o dono não pela atitude dele, nem pela categoria dele, mas pelo automóvel caro que era aquele. Então, categoria, tom, educação, classe, ia baixando de valor como critérios de valor. Mas a máquina e a carroceria tomando a importância, porque representava o dinheiro. O dinheiro e o mundo da pura sensação. Porque apareciam aqueles automóveis revestidos com aquela cor reluzente que os automóveis mais recentes para aquele tempo, os novos, iam tomando, e cores que pareciam pedras preciosas: verdes lindos, vermelhos muito bonitos, um certo creme muito bonito. Em geral cores lindas. E aquele metal liso que era uma verdadeira beleza, deslumbrando — agora notem bem — deslumbrando pela pura sensação física, sem mais nada.

Então, você via passar um automóvel daqueles e você sentia verde, ou você sentia creme, ou qualquer outra cor. E era a pura sensação deliciosa daquele colorido, daquela máquina que voa aparentemente em toda facilidade, com os pneumáticos cujas qualidades foram modificando muito e ficando cada vez mais lisos, cada vez mais fácies, etc., etc. Clakson imperativo. Os clacksons antigos pareciam ter resfriado, eram anasalados. Os clacksons novos… fooon! Ou então: fonfooom! Imperativos como quem diz: “moleques saiam da minha frente porque eu sou o dinheiro, eu sou a sensação, eu mando porque eu tenho, e eu tenho porque eu fiz. Eu não herdei, eu sou um self-made man. E atrás vinha o homem que tinha vencido na vida.

Eu não sei se eu consigo tornar claro?

(Sr. Guerreiro: Esse ponto que o senhor salientou que é a sensação física…)

Física! Sem reflexão, não permitindo reflexão. Tomava tão fortemente todo o aparelho sensitivo que não permitia reflexões.

Por exemplo, eu não me lembro de ter visto conversa sobre se gostava mais do vermelho ou de verde para cor de automóvel. Passa o automóvel: “eu sou o verde!” E o outro automóvel passa e dirá: “eu sou o cor de vinho, ou sou preto”. Porque o preto também é…

(Sr. Guerreiro: Cadillac.)

Cadillac exatamente.

Os nomes dos automóveis eram nomes assim bonitos, nomes americanos meio europeizados, etc. Tudo isto tinha… ainda não era a proletarização, mas era um emburguesamento violento, caminhando para a proletarização.

* Ao mesmo tempo que se dava a revolução dos automóveis, dava-se a revolução dos vestidos, a revolução das cortinas, etc.

E ao mesmo tempo que se dava assim a revolução dos automóveis, a revolução dos vestidos, a revolução das cortinas, a revolução… todas essas revoluções iam se formando. Por exemplo, desapareceu o papel de parede.

As paredes antigas, das casas… Não sei na Colômbia e no Chile, mas aqui no Brasil eram papéis de parede… Mas a questão é que havia papéis de paredes caríssimos e muito bonitos, de primeira categoria, até meio aveludados, etc. De repente acabou o papel de parede, mande arrancar e pinte com esta cor.

(Sr. Guerreiro: Latex.)

Latex. E você não pode nem sequer pôr uma risca.

(Sr. Gonzalo: E depois falam de democracia.)

E depois falam de democracia. É uma ditadura absoluta, total. E você não podia dizer uma palavra contra, porque formava contra si uma roda. E depois não dava vontade de falar, porque se uma pessoa não tinha os pontos de referência que eu tinha, ela procurava amoldar-se.

(Sr. Gonzalo: O senhor disse que o senhor nem olhava os carros.)

Não, porque eu sentia… Quer dizer eu não me permitia um olhar detido e admirativo, eu olhava assim… Mas um olhar detido e admirativo não, porque dava para admirar. Eu acho que faria um jogo sujo, eu não diria a verdade, se eu fosse dizer que essas cores eram feias, etc. E eu vou dizer, minha crítica perderia a garra se ela fosse assim.

Aqui a tal política da verdade prepondera sobre tudo. Descreva a verdade como ela é inclusive se o demônio pintou de dourado as garras, digam que estavam douradas. É assim que se pega o demônio. E, portanto, se os recursos da Revolução tinham um quê de bonito, diga! Sobretudo não faça o erro de não dizer, contanto que diga todo o mal do negócio

Diga meu filho.

* A admiração pelo automóvel introduzia o indivíduo no mundo das meras impressões físicas que o bom gosto de outrora evitava

(Sr. Guerreiro: Esse sacrifício que o senhor fez de não olhar e não deixar uma admiração penetrar na sua alma vendo os automóveis não é?)

Porque vicia.

(Sr. Guerreiro: Dir-se-ia: não isso é uma bobagem, afinal de contas o que é que tem?)

Um automóvel!

(Sr. Guerreiro: Agora, o pior é o seguinte, que decorrido um certo tempo que todo esse desejo de automóvel ficou ultrapassado, que hoje a gente percebe que um automóvel dura dois, três anos de prestígio e depois precisa ser mudado tudo porque houve um cansaço do público com relação àquele desenho e àquela impressão física que ele produz.)

Mas que vai introduzindo, meu filho, o indivíduo no mundo das meras impressões físicas que o bom gosto de outrora evitava.

Eu vou parecer a você, talvez, maníaco. Mas, mais ou menos nessa época aparece o suco de tomate em lata, mas que era servido bem gelado em copos grandes. A cor daquele suco de tomate era parecido com a cor de certos automóveis. E beber aquele suco de tomate, que muitas vezes era gostoso, quando o suco era bem feito, etc., era gostoso. Beber bem gelado num dia muito quente, era uma coisa agradável, mas que você olhando te produzia o deleite ligeiramente hipnótico daquela pancada: “pronto! vermelho!”, que dá uma inibição à sua análise.

(Sr. P. Roberto: E tem algo de místico nisso.)

Tem.

(Sr. P. Roberto: De demônio que atrai a pessoa para aderir aquilo meio inexplicavelmente.)

Inexplicavelmente, mas que faz parecer o raciocínio uma coisa por demais elaborada, por demais complicada, quando você tem a sensação da vida na coisa monocrômica, deliciosa, e que você tem…

Quer dizer, é passar com 40 ou 50 anos de diferença, começar a passar para a civilização da imagem.

(Sr. P. Roberto: As pessoas ficam meio imbecilizadas.)

É, meio imbecilizadas. E entra qualquer coisa do demônio nisso.

Agora, se você está dizendo isso, é porque alguma coisa alcançou. Você mesmo pode ser testemunha do riso a que se exporia alguém se fossem dizer isto.

(Sr. Gonzalo: Se não elogiasse já apanhavam.)

É.

* A Revolução não quer saber de razão, quer saber de vítima. Quem se opuser a ela é uma vítima, precisa ser trucidado

Eu conheci uma senhora muito bonita, muito antiga — não era vovó, era uma amiga de vovó — que tinha todas essas coisas, mas que usou um automóvel europeu, francês, marca Renault, porque ela mandava vir regularmente da França, porque era riquíssima, e que ela usou mesmo quando saiu de moda. Ela era uma senhora comum, todo o mundo… Ela adquiriu um apedrejamento como senhora orgulhosa, como senhora impossível de tratar porque ela usava aquele automóvel quando os outros não usavam mais.

Sua reação mostra que você acha que isso podia perfeitamente acontecer no Chile.

(Sr. Gonzalo: Ou está com a moda, ou está excomungado.)

Não tem conversa.

Essa senhora a partir de certa idade começou a explicar que não estranhassem de ela não cumprimentar ninguém na rua, porque ela estava com a vista muito caída, e naquele tempo uma senhora usar óculos era a mesma coisa do que… não sei, por exemplo, um homem usar sapatos de calceteiro de rua para concertar aquelas pedras da rua, qualquer assim. Era plebeizante uma senhora usar óculos. Então ela via mal.

Eu vi várias pessoas dizerem: “encontrei hoje no automóvel dona fulana, cumprimentei e ela não me respondeu, com aquela [morbi?] insuportável dela.

Ela explicava, eu ouvi ela explicar. Tratei com ela assim na vida comum, e vi que ela fazia uma aplicação difícil da vista para perceber certas coisas. Não adiantava: “é orgulhosa”.

Porque a Revolução e assim. Dizer: “mas ela apresentava uma boa razão.”

A Revolução não quer saber de razão, quer saber de vítima. Quem se opuser a ela é uma vítima, precisa ser trucidado.

* A cultura do efêmero em oposição à Tradição

(Sr. Guerreiro: O senhor poderia para a nossa formação, distinguir ainda mais como eram as coisas do passado e essas impressões tinham muito diverso dessas coisas modernas estilo Hollywood que o senhor acabou de descrever. […] A gente percebe que houve muitas coisas do passado que despertavam uma imensa admiração nas pessoas…)

Sim, mas era fruto da análise.

(Sr. Guerreiro: Mas por exemplo, um grande traje social dos bons tempos ainda de uma senhora, aquilo era de produzir uma imensa impressão…)

Era, mas era uma sensação resultante da análise.

Se você quiser, você tome o trabalho de levantar-se e olhar para aqueles dois bibelozinhos que estão ali. Se você fosse encontrar na rua dois negrinhos — não são bem negrinhos, são mouros — transportando flores como aqueles, você acharia muito engraçadinhos, achava encanador, etc., etc. Mas você vai ver é o resultado de uma coisa composta com uma sinfonia, e que produz esse entusiasmo. Mas aí é justo. É o produto da análise, é o produto da composição feita com o jogo combinado na razão e do sentimento, e que produz o seu fruto equilibrado, direito. Está certo.

(Sr. Guerreiro: Entra uma riqueza de valores e uma harmonia na apresentação desses valores que não se vê mais no automóvel vermelho.)

Não! No automóvel é assim… “Vermelho!” Passou, também não se lembre mais dele, porque só o que está produzindo no momento a sensação fugaz, é que vale. Se essa sensação for duradoura já não revolucionária, porque é preciso que nada dure, que tudo passe para que a tradição acabe.

O efêmero… Se eu quisesse olhar a coisa do outro lado, a cultura do efêmero. Quando o duradouro — o duradouro de categoria — era objeto de procura anteriormente, é que o duradouro traz consigo a tradição. O efêmero é o que passou, é o que a razão não deteve, porque a razão não funciona mais, é o que não fica, porque não tem razão para se justificar. Os sentimentos da civilização da imagem também são passageiros e tudo passa, tudo passa, tudo passa.

(Sr. Guerreiro: E essa formulação que o senhor deu agora, a “cultura do efêmero” é uma formulação… é uma moeda cunhada de primeira ordem para essa problemática. É a cultura de efêmero em oposição…)

À cultura do estável, que era a cultura da tradição.

(Sr. Guerreiro: E nessa cultura do efêmero a preocupação primeira é a impressão estonteante e fugaz.)

E que dá aos sentidos muito mais do que à inteligência. Porque a inteligência leva algum tempo para trabalhar, e o resultado é que o fruto dela leva tempo para passar. Se opõe à cultura do efêmero.

* Foi do alto das arquetipias que eu elaborei em menino, que se estabeleceram as críticas de tudo quanto veio depois

Agora, você pode imaginar, meu filho, o martírio que é a pessoa ir acumulando todas essas coisas na sua cabeça, e por exemplo hoje, pela primeira vez na vida, aos 83 anos e meio fazer uma reunião sobre isso.

(…)

(Sr. Gonzalo: Está um pouco tarde para o senhor…)

Não, não, eu descanso dizendo essas coisas.

(Sr. Gonzalo: Por nós, passamos toda a noite…)

Não, vamos até às três e quinze. Aproveitamos mais uns minutinhos.

Você ia dizer alguma coisa, meu filho?

(Sr. P. Roberto: Eu queria perguntar ao senhor… As pessoas que viam isso, as que reagiam, tinham uma reação que parava num determinado estágio, enquanto a do senhor não, era uma coisa que o senhor via o estágio anterior da Revolução mas o senhor via algo de ideal por trás daquilo que…)

É bem exatamente isso. Para mim, estava na cabeça, por exemplo, como ideal, a carruagem de Versailles.

(Sr. P. Roberto: O que eles viam era de uma maneira meio mofada…)

Vamos dizer assim, com as cores meio como seria um quadro a óleo sobre o qual se derramou água.

(Sr. P. Roberto: Ao passo que o senhor não, o senhor via o oposto daquilo mas na sua integridade.)

Você fala aí do meu ideal ou do fato que se passava.

(Sr. P. Roberto: Do fato que se passava. Por exemplo, naquele carro que o senhor mostrava havia algo de decadência também…)

Também.



(Sr. P. Roberto: E que o senhor notava.)

Notava.

(Sr. P. Roberto: Mas as pessoas que gostavam daquilo, gostavam pelo lado decadente…)

Você chama decadente o revolucionário ou o antigo?

(Sr. P. Roberto: O antigo.)

Gostavam um pouco do lado antigo e muito do lado revolucionário que estava vindo.

Neles, o monarquista que dorme, às vezes abria um pouco os olhos e dizia: “que bom!” Mas fechava logo depois, e o republicano que estava acordado se preparava para qualquer coisa que viesse.

(Sr. P. Roberto: E no senhor isso remontava às raízes…)

É verdade, meu filho, remontava aos padrões que no tempo de menino eu tinha conhecido e que eu não tinha aceito, eu tinha procurado subir até o mundo arquetípico. Foi do alto das arquetipias que eu elaborei em menino, que se estabeleceram as críticas de tudo quanto veio depois.

Quer dizer, toda a minha narração é portanto lógica. Eu desejaria que ela fosse compreensível…

(Sr. Gonzalo: Nós estamos em silêncio de admirados…)

Agora, a questão é que você poderia pegar naquele tempo, qualquer coisa, mas qualquer coisa. E depois não é só naquele tempo, e em todos os tempos. Tudo dá nisso.

Quer dizer, eu já contei a vocês uma inspecção que o departamento de menores fez na Saúde e a conclusão que chegou não é? Que estava tudo muito bem, muito bem arranjado, etc., merecia louvores, mas que duas coisas eram estranhas: que os rapazes lá, todos, sem exceção, usavam sapatos de couro e não sapatos de tênis e que ademais usavam jaqueta, ou qualquer coisa desse gênero, e que isto merecia que um técnico fosse fazer uma investigação […inaudível].

(Sr. Gonzalo: Já a roupa que usam é de lo último…)

É ultra concessivo. Ultra concessiva.

(…)

com essas exemplificações, ou preferiam mudar de tema. O que é que preferem.

(Sr. Gonzalo: Eu prefiro continuar… Não se fala nisso na TFP…

Não, não pode falar!

(Sr. Gonzalo: É um tema proibido. […] Aqui está todo o processo humano do senhor.)

Mas que devia ser o de todos nós.

(Sr. Gonzalo: Mas nós ouvindo o senhor…)

Facilita. Não tem dúvida.

E você meu Paulo Roberto, preferia continuar…

(Sr. P. Roberto: Prefiro continuar.)

E você meu filho?

(Sr. Guerreiro: Continuar.)

Meu Merizalde?

(Sr. Merizalde: Continuar também.)

Mas meu filho, você que não segue todas as nossas reuniões, não fica muito estrambótico tudo isso.

(Sr. Merizalde: Estou sendo atualizado.)

Está bem. E você, meu filho.

(Cel. Poli: Seria pena mudar.)

E você meu Mario.

(Sr. M. Navarro: Idem, idem.)

Bom, se Deus quiser vamos continuando até… assim a esmo.

Eu preciso dizer o seguinte, eu não preparo essas reuniões, porque a coisa improvisada tem mais sabor do que a coisa… se eu fosse pensar antes… e por isso vocês estão vendo que eu vou pegando as matérias assim de dentro de minhas recordações a esmo, porque eu tenho impressão que é melhor. Não é portanto por descaso ou por falta de tempo, qualquer coisa, mas é….

(Cel. Poli: Isso não passa pela cabeça de ninguém.)

Então vamos andando.

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