Conversa
de Sábado à Noite (Alagoas, 1º andar) –
4/4/92 – Sábado – p.
Conversa de Sábado à Noite (Alagoas, 1º andar) — 4/4/92 — Sábado
Na vida espiritual tem-se uma porção de impressões, que são graças da místicas ordinária, e a pessoa fica desejosa de agradecer essas impressões reduzindo-as a raciocínios * O ambiente que havia nas igrejas, antes do progressismo * A presença de Nossa Senhora sempre com compaixão, com muita pena, muito perdão, muita bondade, com a disposição a perdoar mais uma vez * Impressões que teve o SDP quando, na primeira vez que foi a Aparecida, se hospedou no convento dos redentoristas * Analogias dessas impressões com outras a respeito de tal aspecto da família, da São Paulinho, do destacamento da Força Pública que passava tocando, etc. * Sobre essas impressões, constroem-se depois as afinidades e começam a aparecer os significados: essa é a explicitação * Algumas impressões que estão na origem dos “Ambientes e Costumes” * A inocência é a mão que segura Deus, que toca na pessoa. É por onde se toca a Deus * De algum modo todos foram visitados por coisas dessas. Mas quando não prestam atenção, forma uma espécie de catarata na alma que impede a pessoa de ver
…há quem pergunta algo?
(Sr. Paulo Henrique: A pergunta está com o sr. Gonzalo.)
σ, meu coronel, me diga uma coisa, você melhorou?
(Cel. Poli: Diz o dr. Edwaldo que eu posso estar aqui.)
Está bom, graças a Deus! Sente aí.
Então, quem é que abre as hostilidades?
(Sr. Gonzalo: […] Durante a refeição dos eremitas estavam lendo um trecho do padre Alonso Rodriguez…)
É famoso.
(Sr. Gonzalo: [Conta a passagem do Evangelho em que Nosso Senhor pergunta “quem tocou em mim, porque uma virtude saiu de mim”, e os comentários do pe. Alonso Rodriguez sobre isso] Ele explica o que é isso, e qual a diferença entre essa mulher e os outros. É que ela tocou por princípio, ela viveu de princípio, ela viu quem Ele era e agiu coerentemente de acordo com o que ela viu. E os outros viviam de impressões, de consolações passageiras, e isso não vale nada.)
Perfeitamente, de primeira ordem.
(Sr. Gonzalo: De onde nossa vida tem que ser baseada em razões, movidas pela fé, e inabalavelmente coerentes; isso toca a Cristo.)
Acho esplêndido!
(Sr. Gonzalo: […] O Grand-Retour deve ser uma graça por onde Nossa Senhora dará algumas graças para que nós vejamos algumas coisas da vocação e toquemos na vocação de algum modo. Mas como tocar na vocação? […] A gente considerando a pessoa do senhor, a gente vê que o senhor, durante toda sua vida, tocou em Nossa Senhora e em Deus, e que a vida do senhor foi esse tocar contínuo de onde Nossa Senhora não dá para o senhor uma virtude d’Ela, mas Ela dá o que Ela tem de melhor que é o Reino de Maria. E isso move propriamente a Deus, esse tocar contínuo. Como é esse relacionamento do senhor com Nossa Senhora pelo qual o senhor toca continuamente em Nossa Senhora e daí vem o espírito d’Ela que baixa para o senhor e para a Contra-Revolução? E depois o senhor uma vez vendo isso, o que é propriamente “tocar no senhor”? Há uma necessidade para o Grand-Retour, para o estado em que a TFP toda está, de tibieza em que nós todos estamos, de tocar em pontos de Nossa Senhora que o senhor sempre toca e pelo qual o espírito d’Ela vem. Não sei se a pergunta está clara?)
Para mim está muito clara.
* Na vida espiritual tem-se uma porção de impressões, que são graças da místicas ordinária, e a pessoa fica desejosa de agradecer essas impressões reduzindo-as a raciocínios
Quer dizer, eu tenho a impressão, na minha vida pessoal, eu não sei se com todo mundo é assim, mas na minha vida pessoal é.
O raciocínio é composto das premissas e da conclusão. E as primeiras premissas, as iniciais numa longa concatenação de raciocínios não são lógicas, são de observação. E a partir dessas observações a pessoa vai construindo as conclusões. Então entra a lógica.
Bem, na vida espiritual há uma porção de impressões que a gente tem que são as tais graças da místicas ordinária que as pessoas recebem mais abundantemente ou menos abundantemente, conforme Nossa Senhora queira, conforme Ela destina toda graça etc., mas também conforme um ponto inicial que eu vou descrever daqui a pouco. E recebendo essas impressões a pessoa fica desejosa de agradecer essas impressões reduzindo-as a raciocínios. Quer dizer, explicitando as premissas e depois tirando os raciocínios.
Então, há um trabalho de explicitação e depois um trabalho de raciocinar. Sem explicitação, não existe possibilidade de construir raciocínios porque fica aquela impressão vaga e se eu não sei ao que corresponde aquela impressão, se eu não tratei de definir para mim a impressão que eu recebi, não adianta nada.
* O ambiente que em geral havia nas igrejas, antes do progressismo; o papel das penumbras e do colorido dos vitrais
Então, você imagina — infelizmente isso se tornou muito menos freqüente depois da invasão do progressismo nas igrejas, mas antigamente vocês todos têm que ter passado por isto. Em certos dias, quando a gente menos espera, vai a uma igreja, em geral comigo dava-se muito menos quando as igrejas estavam cheias para missas, etc., etc., dava-se muito menos do que quando as igrejas estavam numa penumbra e vazias. Ou penumbra da luz elétrica, quer dizer pouca luz elétrica numa igreja grande e com sombras — aí a igreja podia ficar muito sugestiva — ou a penumbra do dia. Às vezes era uma forma de penumbra, era o sol no seu pináculo, todos os vitrais resplandecendo mas não entrando a luz do dia propriamente a não ser através dos vitrais. Há muitas vezes sacristãos despreocupados desses efeitos, abrem os vitrais para entrar o ar, e pouco se lhes dá de saber se aquilo deixa ver o cordão da luz elétrica, deixa ver o alto do posto com aqueles copinhos de vidro onde amarram os fios, aquelas coisas; ou uma casa medonha em frente, ou até uma casa fassura, pouco incomoda, abre ali, abre ali, está acabado e vai embora.
Mas, quando pelas circunstâncias dispostas pela Providência, ou quando o sacristão recebia diretrizes do padre, um padre zeloso desse, a gente entrando e vendo por exemplo a parte central da igreja ao meio dia, com uma luz que é o encontro de todas as luzes, de todos os vitrais que se difundem e confundem no meio da igreja formando uma certa cor no ar que a gente nem sabe bem qual é, mas enfim, por aí a gente tem a impressão que as imagens se comunicam mais, que os ecos dos barulhos produzidos na igreja têm mais sacralidade, que os altares são mais hieráticos, etc., que tudo aquilo que os artistas quiseram exprimir, mas por falta de competência ou qualquer coisa exprimiram à meias, que aquilo tudo tende a tomar ares que tendem a realizar a idéia que a gente vê que o artista tinha.
Mas no fundo não é isso, é a graça de Deus que faz-nos ver nesta policromia e nesta polimorfia, nos faz ver o que Deus quer que a gente veja naquilo. A intenção do artista entra em algo, Deus sugeriu o artista a querer certa coisa, mas não deu ao artista mais do que aquela capacidade para exprimir. Mas depois ele faz a pessoa entrever mais ou menos.
* O contraste entre o ambiente da Igreja com o ambiente da rua. Na igreja, tinha-se a impressão de estar em casa de Nosso Senhor Jesus Cristo, convivendo com Ele
Bom, a gente sai da igreja e passa para a rua. A mim me chocava muito eu entrar da rua para a igreja, aquele recolhimento! É o contrário do choque, me chamava muito atenção, mas me agradava muito. Me desagradava muito sair da igreja para a rua. Então, os bondes, os ônibus, e tudo passando, e depois o pessoal todo com trajes modernos — ainda não imorais, mas já modernos —, enfim tudo mais, toda a Revolução andando pela rua.
Agora, estas impressões que se tinha na igreja, essas impressões ficavam demorando indefinidamente na alma, mas a pessoa tinha uma coisa que grosso modo dizia o seguinte: “Jesus Cristo, Homem-Deus, se exprime aqui, esta é a casa d’Ele, Ele está presente aqui, e se tem uma noção d’Ele. Isso é assim, de tal maneira que o Jesus Cristo que a gente lendo o Evangelho ou lendo a História Sagrada imaginou, se Ele aparecesse aqui, o ambiente criado era o ambiente que a gente imagina que Ele criaria e Ele estaria in Domus sua, na Sua casa. E, portanto, eu estou aqui na casa d’Ele, estou como se convivesse com Ele, não O estou vendo, mas estou tendo todo efeito da presença d’Ele. Nossa Senhora também mas de um modo diferente.
* A presença de Nossa Senhora sempre com compaixão, com muita pena, muito perdão, muita bondade, com a disposição a perdoar mais uma vez, e quase que pegando a gente e suspendendo
Eu não teria a impressão — tem na Aparecida, mas não teria impressão em qualquer lugar — que Nossa Senhora estava enchendo a igreja toda como Nosso Senhor Jesus Cristo enche. Mas que havia uma espécie de janelazinha aberta para um céu de especial misericórdia d’Ela, e que através disto se filtrava um sorriso d’Ela, uma compaixão d’Ela, mas sempre a idéia de uma compaixão. Muita pena, muito perdão, muita bondade, a disposição a perdoar mais uma vez, etc., mas uma coisa indefinida, e quase que pegando a gente e suspendendo. Mas pelo mero carinho e pelo mero… não de é ver nada, mas é uma impressão.
E essa impressão acentuado — naturalmente em se tratando de Nossa Senhora não podia deixar de ser — um carinho muito purificante de todas as coisas. Por exemplo, a ambição, a concupiscência, a preguiça, mil coisas que há dentro de nós, que aquilo é como se Ela tocasse, mas tocasse não com os dedos, Ela tocou com o olhar, Ela nos viu. Ela muito mais nos via e nós nos sentíamos vistos, do que A víamos. E só de sentir que o olhar d’Ela pousava em nós, aquilo mudava. Mudava algo que ficava.
De maneira que, por exemplo, mesmo antes de eu ler São Luís Grignion de Montfort, que depois estruturou tudo isso e deu explicação e tudo, antes de ler São Luís Grignion de Montfort, eu indo a uma igreja ia ao altar de Nossa Senhora — eu acho que vocês provavelmente fazem a mesma coisa — ia ao altar de Nossa Senhora, rezava para Ela o quanto quisesse, depois ia ao Santíssimo Sacramento. Sempre me pareceu mais correto — eu compreendo que é uma coisa que se pode ver de outra maneira — a gente pode ver assim: “Eu entro na casa, vou saudar o dono da casa. O dono da casa é o Santíssimo Sacramento, portanto, minha primeira homenagem vai a Ele. Depois vou a Nossa Senhora, porque é a Mãe do dono da casa e merece uma reverência especial”. Pode-se ver assim. Mas pode-se ver de outra maneira.
- “Eu não sou digno de ir ao dono da casa, eu vou passar pela Mãe d’Ele pedir que Ela me apronte, que Ela me limpe, que Ela me arranje para eu poder chegar ao Dono da casa”. Eu sempre vi isto assim.
Ia lá, depois rezava diante do Santíssimo Sacramento, depois, se alguma imagem especial de um santo me atraía, eu ia também. Mas eu não era, por exemplo, dessas pessoas de chegarem na igreja e rezar só num ponto e ir embora, mas normalmente eu era muito itinerante dentro da igreja: vou para cá, para lá, para acolá. É como me comprazia de fazer.
* Nessas impressões, vinha uma convicção experimental da fé católica como verdadeira, mas como uma evidência
Agora, nessas coisas todas vinha uma convicção experimental da fé católica como verdadeira, mas então como uma evidência: “a Igreja Católica é uma Igreja verdadeira porque eu tive a experiência disto dentro da Igreja. Eu fiquei sabendo que ela é uma Igreja verdadeira.”
Eu me lembro que na igreja Santa Cecília, atrás do altar, tem pintado uma série de quadros de um pintor nacional, que entre os nacionais era bom, mas não era um grande pintor: Benedito Calisto, pai do engenheiro que construiu a desastrosa basílica lá de Nossa Senhora Aparecida. Mas esse Benedito Calisto pintou vários episódios da vida de Santa Cecília que é a padroeira. E num dos episódios tinha que São fulano de tal batizou-a ubi Petrus baptizabat, onde São Pedro batizava: na catacumba.
Então tem um Santo e as cenas das catacumbas. O Santo batizando Santa Cecília ou o marido dela que se chamava se não me engano Aureliano, ou o irmão do marido dela que também se converteu e que chamava não me lembro como, e que eu acho que ficou santo também.
Mas o fato concreto é que eu olhava aquilo: “Baptizabat ubi Petrus baptizabat”. Me dava uma impressão de uma sacralidade: batizar onde Pedro batizava!… A gente tem vontade de oscular o chão, de levar um pedrinha do chão onde Pedro talvez tivesse pisado. Pedro batizando ali é uma coisa fabulosa!
Bem, sai de lá um protestante e diz: “Eu acho que Pedro não esteve em Roma”.
- Vá embora!
- Não porque tem Mateus tanto que combina com Marcos, que não sei o quê…
- Vá embora e vá já. E se você insistir leva um pontapé.
Por quê? Porque está afirmando uma coisa que é evidente que não foi assim — é evidente por essa evidência, mas essa é uma evidência válida — e depois está insistindo de má fé. Porque se eu vi, todo o mundo vê e esse cachorro vê também. E ele agora vem com essa história? Fora!
E eu acho que está bem raciocinado, está perfeitamente bem raciocinado. Está perfeitamente bem raciocinado.
Isto é, vamos dizer, uma primeira coleta geral de impressões. Vocês não podem imaginar — eu estou um pouco tagarela demais — vocês não podem imaginar a primeira noite que eu fui a Aparecida, mas ainda era aquela antiga basílica. E Aparecida era a devoção da gentinha, do povinho, mas era Nossa Senhora! E atraindo um povinho colossal, e um lugar onde tudo estava impregnado da graça — hoje já não é —, mas uma coisa extraordinária!
(Sr. Paulo Henrique: Só no ano passado foram 4 milhões e 300 mil pessoas em peregrinação a Aparecida.)
Você faça idéia.
(Sr. Paulo Henrique: Mas gentinha.)
Gentinha. Você faça idéia que na proporção daquele tempo se ainda não era muito maior do que agora. População muito menor, isso era lá por 1928, 29, 30; a população era muito menor. Depois cresceu muito. Os meios de comunicação facilitaram muito o acesso, etc., etc. Você pode imaginar o que é que era naquele tempo. Uma coisa fantástica.
* Impressões que teve o SDP quando, na primeira vez que foi a Aparecida, se hospedou no convento dos redentoristas
Bem, com surpresa para mim, eu vinha no automóvel — ia de São Paulo ao Rio de Janeiro — com mons. Pedrosa, futuro D. Pedrosa, e Svend Coch, futuro D. Teodoro Coch, depois D. Beda Coch, trapista. E paramos com o automóvel em frente ao convento dos redentorista em Aparecida, estava tudo fechado, e eu pensei: onde é que vamos dormir? Mas não quis levantar a pergunta.
O mons. Pedrosa mandou o chauffeur tocar a campainha e apareceu um porteiro. Mons. Pedrosa disse:
- “Eu sou Mons. Pedrosa, vigário de Santa Cecília em São Paulo e queria pedir uma hospedagem por uma noite, etc.”
O porteiro vendo que era um padre disse desde logo — a gente vê que eles hospedavam correntemente padres — “Ah, pois não, etc., etc.
Ele disse: “Mas olha, eu estou com dois companheiros de viagem que gostariam muito também de hospedar-se no convento.
Eu exultei! E entramos no convento, e eu tinha a impressão que eu estava andando no céu, naquele convento de redentoristas. Me deram uma cama a mais pechisbeque, uma cama assim que tem o colchão feito de palha e em cima de um tecido de arame enrolado. Eu não sei bem descrever como é. A gente deita a cabeça fica nos alto, os pés no alto também, e o corpo afunda naquilo. Não sei se conhecem? É horrível! Mas deitei-me naquilo como se fosse na cama de Luís XIV.
Por quê? Porque eu estou num convento, quer dizer num prédio pertencente à Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana, toda uma bênção me envolve inteiramente aí, e é a bênção da congregação dos redentoristas que Santo Afonso Ligório — eu sabia disso — fundou, etc., etc.
De manhã levantei cedinho e comece a andar pelo corredor que ia de ponta a ponta, de um lado para outro do convento, e com gravuras representando Gerais do convento dos redentoristas. E olhando, e vendo aquelas caras de homens de Deus, julgava eu, que isto, que aquilo, que aquilo outro. Eu estava literalmente no céu.
Mas eu tenho certeza que eram graças, eram graças, e que essas graças me manifestavam de algum modo que eu estava sendo objeto de uma ação que era a ação de Deus na minha alma, e que essa ação de Deus, eu queria isso mesmo, eu estava lá para isso e queria isso.
Agora, você pode imaginar quando eu entrei depois na igreja e que o D. Pedrosa celebrou missa, etc., etc., a impressão que isso causou.
Mas — assim são feitas as criaturas — voltamos da igreja para o convento para tomar café da manhã, porque naquele tempo havia jejum eucarístico muito estrito desde a meia-noite, e eu pensei comigo: “D. Pedrosa, porque razão não terá ido num dos botecos? É que esse convento com certeza tem coisas melhores.”
E apareceu o mesmo irmão e disse: “Olha, está preparado para os senhores um lanche da manhã, está preparado embaixo e tal. Os senhores o que é que querem? Querem café com leite ou querem cerveja fabricada na nossa casa? Em todo caso eu posso lhes garantir que a manteiga é excelente, é uma manteiga de leite de cabra.”
Quando ele falou em manteiga de leite de cabra, a minha miséria exultou, está compreendendo, porque no meu modo de entender a manteiga de leite de cabra raras vezes dá bem, mas quando dá é coisa excelente.
Você chegou a provar?
(Sr. Gonzalo: Não senhor.)
Você também não, meu filho?
É coisa excelente, excelentíssima.
Um pão muito bom…
Eu disse: “Eu estou em casa!”
Mas, eu não exerci vigilância e todas aquelas graças baixaram de um certo nível porque deitei a minha atenção, e eu sou muito truculento, assim como eu apreciei as graças truculentamente, sorvi tanto quanto pude, apareceu a manteiga, apareceu o pão, uuuh! Bom, mas eu senti que aquelas graças um pouco tinham baixado.
Tomamos o automóvel — a cerveja eu não quis tomar, achei que não dava uma boa cerveja; eu gostava muito de cerveja, mas não tomei —, um automóvel bonzinho, uma marca que acho que desapareceu hoje, chamada Chrysler, e fomos até o Rio.
Chegamos ao Rio, nos hospedamos num hotel muito bom, Palace Hotel, e aí as delícias de hotéis bons. Uma coisa se acumulou por cima da outra, mas não numa desordem que me levasse a esquecer o que eu tinha visto. A tal ponto que os senhores estão vendo que passado muito mais de meio século eu estou me lembrando como se fossem ontem.
Mas essas coisas depois é preciso a gente saber… Eu poderia, se eu prestasse atenção, eu poderia descrever tanto quanto essas coisas se descrevem, eu poderia descrever o que eu senti.
* Era um primeiro ser tocado e tocar em Deus, quer dizer: “eu aceito, aceito por inteiro, quero inteiramente, admiro inteiramente, adoro inteiramente”
Isso é um primeiro ser tocado e tocar em Deus.
Diga, meu filho.
(Sr. Guerreiro: O senhor acabou de dizer que isso é um primeiro ser tocado e tocar em Deus. Mas o que o senhor está descrevendo é muito mais Deus tocando no senhor do que o senhor tocando em Deus.)
É, mas é simultâneo, Ele toca em mim e eu nEle. São ações distintas e é muito mais Ele do que o pobre de mim. Mas há algo de mim também.
(Sr. Paulo Henrique: O que depende do senhor é a explicitação das impressões que Ele proporcionava ao senhor?)
Não, o tocar nEle, era eu tomando contato com o que Ele me tornava presente, eu inteiramente aceitar como uma truculência adorativa. Quer dizer: “Está bom, eu aceito, aceito por inteiro, quero inteiramente, admiro inteiramente, adoro inteiramente”.
Quer dizer, é ser tocado, mas querer ser tocado a minha parte de tocar…
Eu estou me exprimindo bem, meu filho?
Querer deixar-me tocar, fazer questão… Você está vendo que eu me detive em cada coisa, foi para ser tocado, mas no ato em que eu queria ser tocado, eu tocava. Me parece normal razoável.
Bem, eu não tinha nada que dizer para Ele, Ele que dizia tudo para mim. Mas eu dizia sim, e veementemente. Mas não com perda de paz, sem inquietação nenhuma, paz completa.
* Analogias dessas impressões com outras a respeito de tal aspecto da família, da São Paulinho, do destacamento da Força Pública que passava tocando, etc.
Agora, qual é a conclusão que brotava daí?
A conclusão era: essa sensação como eu tive agora, confere com tal outra sensação que eu tive em tal outra ocasião vendo tal outra coisa da Igreja Católica e com tal outra assim, e com tal outra assim. E confere com tal impressão que tal aspecto da vida de família me deu, ou tal aspecto da São Paulinho, por exemplo o palácio do governo era perto de nossa casa, e às vezes um destacamentozinho da polícia militar — chamava-se Força Pública naquele tempo — passava a uns dois ou três quarteirões de casa, mas tocando clarim, corneta, sei lá o quê que tocavam, e eu ouvia de longe. Estava numa sala, numa espécie de living da casa e eu via aquilo passar e era ouvido por todo o mundo, mas todo o mundo continuava a conversar indiferente àquilo, não lhes causava a menor impressão. A mim causava uma impressão de heroísmo épico, de sacrifício da vida, mas ao mesmo tempo o gosto de estar derrubando o Mal, de estar proclamando o Bem, ou seja o Reino de Cristo, e pisando satanás.
Eu não comentava com ninguém, mas para usar a expressão francesa je dressais l’oreille. Orientava o ouvido para ouvir melhor aquilo. E quando aquilo passava, eu ainda ficava durante algum tempo — eles falando… (…)
* Uma impressão de épico que causava a marcha da “Aida” de Verdi; “ainda era Deus me tocava por um fenômeno natural, mas de longe, porque é natural”
… eu nunca tinha ouvido a “Aida” e eu não gosto de Verdi, mas aquela vez foi a primeira vez que eu vi um toque da “Aida” que é no trecho da “Aida” em que entra o faraó com a “Aida” dentro do Palco levado por uns carros puxados por bois. Então… [o Senhor Doutor Plinio cantarola] Sol, do, ré-do-ré-mi; mi-fa-do-mi, ré-do, ré, mi-mi-ré-do, ré, mi-mi, ré, mi-mi, ré-mi-ré-do. Depois continua.
Eu ouvi aquilo pela primeira vez, je dressais les deux oreille, porque aquilo me parecia épico! Depois viver é isso!
Mas ainda era Deus que me tocava. Deus me tocava por um fenômeno natural, mas de longe, porque é natural, mas Ele é autor da natureza.
(Sr. Gonzalo: E as carruagens de Versailles…)
É, as carruagens de Versailles é característico. Ali só faltou eu entrar dentro da carruagem.
* Sobre essas impressões, constroem-se depois as afinidades e começam a aparecer os significados: essa é a explicitação
Mas [sobre] essas impressões, a gente constrói depois as afinidades, e começam a aparecer os significados. Essa é a explicitação.
Por exemplo, nessa bandinha da Força Pública, eu acho que ninguém que estava tocando aquilo entendia o que é que aquilo queria dizer, mas aquilo para mim, era afim com uma imagem de Santo Espedito vestido de legionário romano e brandindo uma cruz que há na igreja de Santa Cecília, com mais outras coisas assim: idéia de Cruzada, Carlos Magno, Roland, e a “Aida”, formavam um mesmo veio. E assim, classificando e interpretando essas coisas, começava a aparecer o sentido profundo delas. Um sentido profundo, capaz de ser depois transposto para termos doutrinários.
* Como nascia o princípio? O princípio era a conclusão
Agora, como é que nascia o princípio?
O princípio era a conclusão: tata-tatá, tatá, doutrinariamente, teoricamente… mas esse doutrinariamente, teoricamente vinha embebido de impressões, embebidos de realidades concretas. Então por exemplo, o heroísmo é o pináculo da vida humana, é o pináculo da alma humana, a prestação do serviço de guerra, na guerra religiosa a favor da Igreja é o pináculo da atitude de adoração. E portanto, eu entregando-me à essa emoção, eu encontro ali a realização de minha alma, ela fica sendo como eu quero.
Mas aí, eu não sei se vocês vêem, nasceu o princípio, então, todo teórico! De maneira tal que se algum dia o tempo ou a memória relapsa fizesse esquecer a impressão, o princípio ficava.
Isso é o que o padre Afonso Rodriguez disse.
Diga, meu filho.
(Sr. Guerreiro: O senhor ia fazer mais algum comentário?)
Não, não, eu estava terminando.
(Sr. Guerreiro: Qual é o elemento que nesta consideração que o senhor acabou de fazer e na hipótese da memória ficar relapsa e ela deixar de ter a sugestibilidade que a impressão primeira deixou na alma, proporcionou à alma, fica o princípio. Mas a pergunta é a seguinte: uma vez que a inteligência descobre o princípio, ajuda a ela fixar na inteligência e fazer com que ela fica uma estrela acesa na alma, de tal modo que ela tenha uma força capaz de empurrar a personalidade daquela pessoa na direção que ela aponta. Não sei se consigo explicar o problema. Qual é o adesivo — a palavra é um pouco prosaica — que esse princípio tem no fundo da inteligência para continuar tão imperioso e tão governativo?)
* Tem-se dois amores ao princípio: um é o da lógica que estabeleceu o silogismo e chegou à conclusão; outro é o relacionar esses princípios com toda uma cadeia de impressões harmônicas
A coisa vem do seguinte: é que o princípio… Vamos dizer dessa maneira: quando se diz que a memória faz esquecer aquilo, não é bem verdade, à memória faz esquecer muitos aspectos daquilo, mas fica um resíduo do qual a gente não esquece, e que esse resíduo dá uma espécie de vida ao princípio abstrato.
(Sr. Guerreiro: Quer dizer, não é a fogueira cintilante, mas é uma brasa que continua incandescente.)
Isso. E essa brasa…
(Sr. Guerreiro: Produz um calor na inteligência do homem.)
Exatamente. Que dá o amor ao princípio.
(Sr. Guerreiro: Quer dizer o princípio nunca esfria por…)]
Nunca esfria. Então, há dois amores que a gente tem ao princípio: um é o da lógica que estabeleceu o silogismo e chegou à conclusão. Mas outro é o desse sentido da alma que nos faz relacionar esses princípios com toda cadeia de impressões harmônicas entre si das quais ele nasceu como um lírio.
(Sr. Guerreiro: E que é um sentido da alma portanto.)
Seria isso.
(Sr. Paulo Henrique: E a partir daí move a vontade.)
Move a vontade, muito mais facilmente do que uma coisa seca.
(Sr. P. Roberto: O Grand-Retour, seria o retour a isso?)
O Grand-Retour seria o retour a isto — eu agora trato de outra coisa e eu me torno mais claro. Para ver qual é o retour a isso, você precisa, meu filho, tomar em consideração qual foi a saída disso para a gente compreender qual é o retour.
Acontece que na formação dessas impressões há um seletivo que nos faz aceitar todas as impressões congêneres, afins, e aceitar numa escala e numa disposição inteiramente ordenados, de maneira que pode bem acontecer, por exemplo eu me lembro acontecer concretamente o seguinte:
* Algumas impressões que estão na origem dos “Ambientes e Costumes”
Há um lugar que hoje se tornou comum em Santos, era uma ilha — estou dizendo porque talvez você tenha conhecido, não sei — Ilha Porchat.
Era uma espécie de península, mas que se tornava ilha porque quando a maré subia cortava o istmo, e quando a maré baixava o istmo aparecia. E era em São Vicente, mas ficava colocada num lugar que era realmente muito bonito. Era uma montanha, e havia uma estrada que dava volta à montanha. E nas tarde bonitas, de inverno, onde Santos é particularmente bonita — Santos de hoje já não é, mas era muito bonita — nessas tardes de inverno havia num lugar ou noutro, uns restaurantezinhos muito ordinarinhos, vendiam uma bebidas gasosas, umas coisas assim, e eu ia com aquele meu primo, às vezes, passear lá.
A gente se sentava num ponto ou noutro, e eu tinha a sensação de grandeza, mas grandeza régia, imperial, majestosa, que fazia reviver alguma coisa das cortes antigas, reviver alguma coisa da corte medieval, uma coisa assim, com um pouquinho de uma corte de Ancien Régime, etc., e tinha umas máquinas de tocar música, que não sei se vocês chegaram a conhecer. Uns discos metálicos que giravam e tocavam música. Mas enormes assim. E a gente punha uma moeda e o disco começava a tocar. Mas coisa muito ordinária! Mas eu punha a moeda e em geral eram músicas grandiloqüentes que iam bem com a grandeza do lugar. E eu ficava olhando para aquilo e imaginando mil coisas. Mas se acontecesse de, por exemplo, eu ter que vir para São Paulo naquele dia, e à noite eu ter que ir — eu ia porque queria — num bar suíço famoso que tinha aqui chamado [Ruklir?] pequenininho, e que descia vários — eu não sei porquê, se o terreno era inclinado, não si o que é. A gente entrava, tinha uma saleta, depois no fundo, descia um degrau tinha uma saleta mais baixa, no fundo, do fundo, havia uma última saleta que era a mais saborosamente européia, mais suíça. E ali eu mandava vir salsichas com batata, mas uma batata preparada à alemã, chamada kartofen glass, pão preto, manteiga fresca e cerveja.
Bem, eu estava longe da ilha Porchat, estava longe da igreja do Embaré, de Santos, onde eu podia ter comungado de manhã. Mas são impressões de várias naturezas, mas todas arranjadas harmonicamente na minha alma, de maneira que eu percebia por onde o que uma dizia… [vira a fita]
… e de que resultou toda teoria de Ambientes Costumes e essas coisas todas.
Bom, de tal maneira que se por exemplo… Eu sou comilão, e portanto, as impressões degustativas ocupam um lugar muito saliente no que eu estou dizendo; você não me ouviu até agora falar de cheirar uma flor, vocês já me ouviram falar de comida várias vezes: eram as comidas redentoristas, é tal bar, é tal lugar, come assim, noutro lugar vende bebida ordinária… Mas o paladar está sempre presente nessas minhas memórias. Eu não vejo nisso um pecado, eu sou feito assim. Desde que eu não me desmande, é natural.
Como é meu filho?
(Sr. Guerreiro: O senhor nunca foi apreciador de flores não é?)
Há uma flores de que eu gosto muito, por exemplo há uma flor chamada Angélica, com um cheiro fortíssimo, mas é verdadeiramente angelical e que se presta muito aos altares de Nossa Senhora. Há uma outra flor que eu gosto muito, policrômica, que é a flor do cactos. Certas rosas exímias me dizem algo.
(Sr. Guerreiro: Orquídeas não?)
Algumas orquídeas. Você precisava ver. Você viu e o coronel deve ter visto também, uma orquídeas brancas que havia no salão de Amparo, não sei se prestaram atenção. É um branco eclatant, eclatant, você seria quase levado a pôr óculos escuros para ver a orquídea ouviu? Aí eu gosto muito. Mas é pouco, eu não sou muito disso não.
Bem, eu perdi um pouco o fio…
(Sr. P. Roberto: O senhor estava falando da harmonia…)
Bom, mas por detrás há uma seletivo moral. O que não coubesse com aquela coisa, “ubi Petrus baptizabat”, por exemplo; ou a sensação que eu tinha vendo o vitral da igreja de São Bento que representa a morte de São Bento doutrinando para um grupo de beneditinos, e ele em pé, falando e meio desmaiando, e os beneditinos todos amparando e a alma dele subindo para o céu, essas coisas assim que dão umas impressões profundas e que não tivessem em harmonia com isso, estava excluído. E era o que no fundo, no fundo, dominava tudo.
Bom, no fundo, em cima e de todo lado, Nosso Senhor Jesus Cristo. É o centro, centríssimo, como tem que ser evidentemente.
Bem, mas eu não sei se eu torno claro a vocês, como isso ajuda a tornar não árida a devoção, e como uma vida toda voltada para a doutrina, toda voltada para a Contra-Revolução, se explica dentro disso. Explica-se.
* A inocência é a mão que segura Deus, que toca na pessoa. É por onde se toca a Deus
(Sr. Gonzalo: Como pressuposto de tudo isso a inocência.)
Mas qual é o papel da inocência aí? A inocência é a mão que segura Deus, que toca na pessoa. É por onde se toca a Deus.
(Sr. Gonzalo: É por onde se toca a Deus também.)
É por onde se toca a Deus.
(Sr. Gonzalo: Muita gente que estava com o senhor, por exemplo esses 4 padres, podiam ver todas essas coisas. Tanta gente viu isso, mas não amou isso, e não aderiu porque a inocência não estava preservada e não havia esse movimento de amor que o senhor descreveu no começo.)
Basta ter um entusiasmo imaginando-se num transatlântico europeu que vai entrando pela Bahia de Hudson adentro e vendo Nova York, e vendo a estátua de liberdade, que isso foi de água abaixo.
(Sr. Gonzalo: Há uma coisa primeira que é fundamental, é essa preservação que aumenta a inocência e vai cultivando essas impressões…)
Isso. E as impressões cultivam isso.
(Sr. Gonzalo: Que é inteiramente excludente de qualquer música que não esteja nesse diapasão.)
Completamente.
(Sr. Gonzalo: Se noutra reunião o senhor pudesse tratar de que modo isso toca em Nossa Senhora, e dá o Reino de Maria na terra por causa dessa fidelidade. A gente vê que no senhor a envergadura da questão é imensamente grande, tudo que seja bom…)
É bom!
(Sr. Gonzalo: E o senhor viu, aderiu e colocou no devido lugar na sua alma. […] Numa outra reunião explicar o papel dessa totalidade em Nossa Senhora.)
Sim.
(Sr. Gonzalo: Porque isso nos ajuda muito a saber o que é tocar no senhor. […] Há toda problemática da transmissão de espírito que o senhor poderia tratar noutra reunião.)
* De algum modo todos foram visitados por coisas dessas. Mas quando não prestam atenção, forma uma espécie de catarata na alma que impede a pessoa de ver
É, eu acho o seguinte: que por exemplo no que eu estou falando agora, eu nunca tive ocasião de expor assim. Nunca tive porque nunca houve uma oportunidade. Talvez tenha havido uma graça especial para essa reunião, qualquer coisa assim. Mas eu estou certo que todos que estão aqui, de um modo ou doutro, talvez a propósito de outros objetos também, etc., há umas variantes pessoais dentro disso. Por exemplo, flor… Há aqui uma senhora tocadíssima por flores de toda ordem, etc.
Mas seja como for e de que jeito for, acaba sendo que todos, de algum modo, foram visitados por coisas dessas. Mas, quando não prestaram atenção — olharam, até gostaram, mas não prestaram atenção, esqueceram — forma uma espécie de calosidade na alma, que às vezes toma em certos espíritos uma saliência tremenda, uma catarata. E nessa calosidade pode voltar a graça, mas o calo ou a catarata impede de ver.
E então vocês encontram isso aí, gente com essa catarata, mas não sei em que quantidade.
(Sr. Gonzalo: Não precisa ir muito longe não.)
(Sr. Guerreiro: Não precisamos sair dessa sala infelizmente.)
Mas é assim. Quer dizer, não pega.
(Sr. Gonzalo: Hoje, na Reunião de Recortes, o senhor descrevendo a Igreja, como se elege um Papa, é um flash, uma coisa que se vê que a alma do senhor se voltou toda para lá, que é una, que desposou com a Igreja, é impossível transmitir isso que o senhor transmitiu. A pessoa pode aprender de cor, o que quiser…. […])
Aula de declamação!
(Sr. Gonzalo: Foi uma coisa muito tocante na Reunião de Recortes. […] A espinha dorsal da pessoa fica gelada vendo a divindade da Igreja…)
É uma coisa fabulosa, fabulosa. Mas por exemplo aquilo; me interessa muito mais saber aquilo do que saber que o cardeal Oddi, por exemplo, falou a meu respeito. Falou ou não falou o que é que me importa ele?
(Sr. P. Roberto: […] Isso me parece que era a essência da “Sempre Viva”.)
Foi isso sim.
(…)
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