Conversa da Noite – 2/9/89 – Sábado – p. 3 de 11

Conversa de Sábado à Noite — 2/9/89 — Sábado

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A sensação de estar expulso da grandeza é das que mais servem a Revolução * Impostação certa: o inocênte que admira sem pensar na vantagem, esse participa realmente de todos os esplendores que contempla * Uma relação não de igualdade, mas de nexo, por amor a Deus * Quem tem amor de Deus sente‑se filho de rei, e tem continuidade e nexo com todas as coisas * Porquê a riqueza da Revolução Industrial não educa as gerações * Noções de desapego e bonomia que a mundo revolucionário fez perder * O desejo de transmitir esse estado de espírito, leva ao Senhor Doutor Plinio a transmiti‑lo em todas as ocasiões

(Sr. NF: … O que é esse estado de alma do Sr., o que é a condição de uma pessoa assim, que nos dá a idéia de um unum com esta luz superior, e que faz com que o Sr. não se deixe tocar pelas coisas, e dá ao Sr. uma autoridade que a gente sente, uma autoridade de Direito Divino sobre todas as coisas dessa terra? Então, o que é essa condição humana, o que é esse estado de alma?)

Ah, ah, ah!!!

(Sr. NF: Depois vem o II da pergunta, que se liga com a Reunião de Recortes.)

Ah, você vai formular depois? [Sim.] Bom, eu vou dizer o seguinte. Eu não vou concordar em que eu seja um tal homem. Mas como é que eu explicaria um homem assim? Çà va comme çà, não é?

(Sr. GD: Embora o Sr. não se considere um homem assim, o Sr. poderia explicar o que é que causa em nós essa impressão…)

Bem, é verdade, eu vejo que vocês têm a generosidade de achar isso, mas você precisa notar o seguinte: É que o thau, sem nunca nos enganar, às vezes nos dá uma ocasião de ver muito mais umas coisas do que outras numa pessoa. E, portanto…

(Sr. GL: Mas sem mentir.)

Sem mentir!

(Sr. GL: É por falta de thau que não vê as outras coisas, mas as que vê, vê certo…)

Bem, então eu vou dizer o seguinte: não me caçem, não me façam caçada! E vamos tratar do assunto!

Eu, por expansão, por mera expansão, eu vou dizer uma coisa. Quantos estão aqui nessa sala? [Dez.] Um segredo para dez pessoas não é segredo… Numa sala onde há três egrégios mineiros, não preciso insistir a esse respeito. Mas enfim, vamos ao caso. Eu peço para guardarem segredo… (…)


Ficha:

(Csn, 02/09/1989 - Cap. 1)

(Vol. X - considerações sobre o luxo)


1 - * Impostação de alma errada diante do luxo: como faria o Senhor Doutor Plinio no “Regina” e no “Ritz”, em Paris

Eu tentaria explicar da seguinte maneira. Nas impostações erradas que as pessoas tomam em face do luxo e de outras coisas grandes da vida — posições, casas, honrarias e outras coisas do gênero — em face de tudo isso há um sentimento que é muito freqüente, que é o seguinte.

Por exemplo, vamos dizer que eu estivesse hospedado no meu antigo hotel em Paris, Regina. Que é um hotel bom, bem bom, distinto, fino, etc., mas não tem o luxo do Ritz. Bem, e eu tivesse um amigo hospedado no Ritz.

Uma reação freqüente seria a seguinte: quando eu fosse visitar o meu amigo, eu saísse do Ritz e voltasse para o Regina, chegando ao Regina eu me sentiria como que meio expulso do Ritz, como se aquelas lantejoulas todas do Ritz se recusassem a mim, e que aquilo fosse uma espécie de paraíso que me enxota, e que não quer ter nada de comum comigo.

Donde um certo ressentimento com o meu primo que está no Ritz, como se ele participasse da ordem de expulsão que eu recebi.

Eu chegando ao Hotel Regina, comparar aquilo tudo — que eu acho bom, onde eu me sinto perfeitamente bem — comparar com o que eu acabo de ver. E dizer: “Amanhã vem meu primo, vem meu amigo, vem meu sócio, qualquer coisa, falar comigo aqui. O que ele vai achar estando aqui? E vai achar isso de mim também! Ora, é injusto, porque eu tenho tal qualidade, ele não tem; eu sou isso, ele não é, etc., etc.” E me poria numa espécie de duelo com ele.



Ficha:

(Csn, 02/09/1989 - Cap. 2 a 5)

(Vol. X - Grandeza e ódio da revolução)


2 - * A sensação de estar expulso da grandeza é das que mais servem a Revolução

E isso é uma das coisas que mais servem à Revolução, é essa sensação de que o indívudo é expulso das grandezas que ele não tem, ou daquelas que ele não freqüenta, etc.

Mas, também, dá um apego mais desesperado, porque sentindo‑se expulso, o sujeito diz: “Eu agarro isso! E ainda vou fazer disso uma coisa minha!”

Essa descrição desse estado de espírito lhes parece justa, objetiva? [Muito.]Agora, você imagine uma pessoa que tenha desde pequeno, por uma graça especial, amado muito tudo quanto é verum, bonum, pulchrum. Mas amado de um modo tal, por causa do verum, bonum, pulchrum, mas não por causa de uma vantagem que aquilo traz para si, mas é porque aquilo é aquilo, e me agrada que aquilo seja assim, eu amo aquilo! No fundo estou amando a Deus através daquilo, vamos imaginar isso.

3 - * Esse participa realmente de todos os esplendores que contempla

Então, uma pessoa assim se sente de algum modo, seja ela quem for, meio partícipe e meio herdeira de todos os esplendores que ela contempla. E nunca se sente expulsa de nenhuma coisa. E nem se sente cortada e amputada de nenhuma coisa. Porque basta ter aquela forma de esplendor, e a alma do homem ou da criança ter compreendido e amado aquilo, para que ele seja daquilo, e aquilo de algum modo seja dele.

4 - * Exemplo: as duas atitudes de alma visitando Chambord

De maneira tal que, por exemplo, visitando Chambord, eu tenho impressão de que haveria gente que teria essa reação: “Está vendo isso aqui? Esses homens faziam isso. Agora eu, colocado aqui dentro, sou uma pulga! Sou indigno de estar aqui dentro! As minhas maneiras não estão a essa altura, o meu modo de ser não está a essa altura, minha pessoa não está a essa altura, eu iria fazer aqui gafes! Passaria perto de mim uma marquesa qualquer e me faria uma saudação, eu responderia de um modo sul‑americano (para me exprimir assim). Bem, ela diria: “Que sale homme celle‑lá”, e eu ficaria com raiva, e diria: “Cala a boca papagaia! Não quero saber dessa sua conversa!”

Não. É uma coisa diferente. Um homem como esse que eu estou imaginando, em primeiro lugar acharia que, pela intensa participação que ele tem com Chambord, ele não estaria ridículo assim lá, por mais que ele fosse pobre, por mais que ele estivesse mal vestido, por mais que ele ignorasse as etiquetas próprias a Chambord, ele saberia tratar daquilo de algum modo como um filho da casa! Pelo amor desinteressado que ele tem àquilo.

(Sr. GL: Incluso a marquesa.)

Bem, e portanto a marquesa também.

E depois a marquesa, a menos que fosse uma marquesa revolucionária, ela não o trataria assim. Ela compreenderia que ele tem um nexo com aquilo que ela talvez não tenha. E que o trataria como um homem que não é da categoria dela, não tem dúvida, mas não como um homem que não devia estar ali. Quer dizer, um homem que está na sua posição ali, que é a dele, que não pretende ser mais do que a dele, não é menos que a dele. Não se envergonha nem se orgulha.

5 - * Uma relação não de igualdade, mas de nexo, por amor a Deus

Por quê? Porque ele tem alguma coisa de comum com aquilo em Deus, que o põe nessa posição — não de igualdade, mas de nexo com tudo o que existe.

Eu acho que essa é uma preliminar da coisa.

E por causa disso, também com uma outra idéia. É que o magnífico, por mais magnífico que seja, tem um nexo com tudo o que é bom. Por mais que esse bom, na ordem do bom, seja modesto.

Ficha: 1

(Csn, 02/09/1989 - Cap. 6, 7)

(Vol. VIII - Cap. 3


6 - * Exemplo, o Senhor Doutor Plinio durmindo no “Le Prieuré”

Então, vamos dizer, por exemplo, estou hospedado no Ritz. Estou muito cansado, não quero voltar a Paris, quero dormir num bom alojamento que haja pelo caminho. Então resolvo parar.

E foi o que aconteceu na volta de… como chama aquela cidade onde tinha aquele castelo… Lanjeais! Lanjeais. Eu resolvo parar num lugar onde tinha um hotelzinho, chamado Le Prieuré. Dava a impressão meio navrante de que era um antigo priorado, porque era um parque com muitos pavilhõezinhos, etc., e que esse priorado tivesse sido transformado em hotel.

Bem, mas cheguei lá, era um pavilhão só para mim, com uma cama excelente! Mas excelente! Talvez mais confortável do que a do Ritz. Com condições de hospedagem as mais satisfatórias. Não tinha o luxo do Ritz, mas tinha continuidade com o Ritz. Embora estivesse, numa rampa, o Ritz muito mais alto, aquilo muito mais baixo, tinha continuidade. E se eu fosse dizer: “Que estranheza! Eu agora estou habituado ao Ritz, e estou chocado com Le Prieuré”, eu tinha vontade de dizer a um homem que me dissesse isso, dizer: “Asno, cale a boca! Você não está entendendo o que você fala!” Porque não é verdade. Há uma continuidade.

7 - * Assim são os nexos entre os santos no céu

Mais ou menos como pode haver no céu entre um grande santo, vamos supor São José — eu não ouso me referir a Nossa Senhora, porque Nossa Senhora é super‑dulia, é enfim tudo o que se possa imaginar — mas vamos dizer São José.

Você pode imaginar que grande santo foi São José! Bem, São José e uma alminha vagula, blandula, que a duras penas acabou de expirar em estado de graça, que passou 50 anos no purgatório, e que agora está subindo ao céu. Ela entra no céu como uma bolha que sobe do fundo de um lago, e eclode em cima! Modesta! Ela apenas abre uma… ela levanta um pouco a superfície da água, e se perde no ar! Assim entra uma almazinha assim no céu.

Ela tem continuidade com São José! E não tem razão para estar envergonhada de estar diante de São José.

E eu tenho certeza que o “Regina” tem essa continuidade. E, portanto, não tem nada. Eu estou no “Regina”, outro está no “Ritz”, são hotéis que têm essa continuidade. Eu estou esplendidamente no “Regina”!

Não que eu não prefira estar no “Ritz”. Prefiro. Mas eu estou no “Regina” muito bem.

(Sr. GL: E sem nenhuma vergonha.)

Não, nenhuma. Toda a naturalidade do mundo. Por quê? Porque está no direito do meu ser.



Ficha:

(Csn, 02/09/1989 - Cap. 8)

(Vol. X - continuidade da educação no burguês)


8 - * Como deveria ser essa reação num filho da burguesia enriquecida

(Sr. GD: Se o Sr. fosse filho de uma família de industriais enriquecidos há duas gerações, o Sr. não teria tanta facilidade de compreender isso, não é?)

Você veja. A pergunta que você me fez, era normal que eu já me tivesse feito. E nem fiz essa pergunta para mim mesmo. Tal é a minha despreocupação na matéria, que eu nem me fiz essa pergunta. Mas eu vou pensar um instantinho para responder.

(Sr. GD: É um parênteses.)

Não, não. Eu vou me fazer essa pergunta, porque ela merece ser considerada aqui.

Se eu fosse… Veja com são as coisas. Existe na França, mas eu acho que existe na Espanha, existe no mundo inteiro, o que se chama la bonne bourgeoisie: a boa burguesia. Que é gente que descende de alta burguesia há algumas gerações, e não são nobres, nem visam ser nobres.

Se eu fosse da bonne bourgeoisie, e tivesse que entrar em contato com nobres, a primeira coisa que eu faria era dizer, com naturalidade, na primeira ocasião que se apresentasse, que eu era da bonne bourgeoisie. E travar com eles um contato em que eles sentissem o respeito que eu tinha por eles, mas eles soubessem quem eu sou. E punha as nossas relações numa clave onde o que tem que ser respeitado em mim seria respeitado, mas eles sentissem continuamente o meu respeito para com eles.

Havia uma descontinuidade. Mas essa descontinuidade era afetuosa, era cheia de cordialidade, de respeito, etc. E creio que por mais tontos que eles fossem, eles acabariam tendo que compreender que isso era assim.

Portanto, não é propriamente do fato de um indivíduo ser da nobreza ou da burguesia, mas é uma outra coisa: se a educação do indivíduo o torna capaz disso por causa de uma longa continuidade. A coisa é diferente.



Ficha:

(Csn, 02/09/1989 - Cap. 9, 10)

(Vol. X - considerações sobre a industrialização)


9 - * Porquê a riqueza da Revolução Industrial não educa as gerações?

(Sr. GL: É o que disse o Sr. Guerreiro. No caso do Sr. houve uma longa continuidade, que não tem a Revolução Industrial, nas duas últimas gerações.)

Eu ouvi mal a pergunta dele…

(Sr. GL: A Revolução Industrial fez essa gente rica, novos ricos, etc. Se o Sr. fosse um parvenu desses, o Sr. não teria essa reação. O Sr. a tem, porque o Sr. é filho de família tradicional.)

É, isso é verdade. Eu pensei que ele perguntasse a diferença entre nobre e não nobre. Eu não ouvi bem o que ele disse. Aí é verdade.

Mas aí tem o seguinte. É um ponto que eu não sei responder, o que eu vou dizer agora. Por que razão é que as finanças e a indústria têm esse efeito corrosivo, que faz com que o indíviduo possa descender de dez gerações de industriais ou de financeiros, que ele não fica à altura desse estado de espírito? Quando duas ou três gerações — é curioso isso — de uma muito grande situação agrícola já pode dar isso? Porque é assim.

É por causa de um ficar à margem, uma mentalidade falseada pelo gosto do lucro, que a agricultura não dá assim. O agricultor não é um pateta que trabalha para não ganhar. Ele quer ganhar. Mas não é assim. Ele não conta o dinheiro dessa maneira. A posição dele perante o dinheiro é outra.

Um homem de uma profissão liberal não é assim. Por exemplo, vamos dizer um grande advogado, um grande médico, um grande engenheiro que não seja o financiador de sua própria engenharia, ele não é assim. Ele conta o dinheiro de um modo diferente, num ritmo diferente, uma coisa diferente.

10 - * Precariedade das fortunas industriáis e comerciáis, o medo de perdé‑las

E há aí uma coisa qualquer que está baseada — eu desconfio — está relacionada com o seguinte. É que há uma precariedade na indústria, no comércio, pela qual a qualquer momento o sujeito pode perder a fortuna. E aquela sensação da expulsão eventual deixa a ele muito sobressaltado, por mais rico que ele seja. Então, perpetuamente querer agarrar‑se e ficar ressentido, porque ele sabe que se ele perder, ele não é nada! Enquanto outro sabe que se ele perder, ele é o ex‑fulano! E o “ex‑fulano” é sempre um cargo! Eu acho que aí é que está a questão!

A sensação do poder perder, de ser expulso pelas coisas, ele que ganhou, que fez… Depois, ele trabalhou, é outro. Ele tem desprezo de quem não trabalha inumanamente. Porque como ele é uma espécie de viciado no trabalho, ele tem desprezo de quem não tem o vício dele. Ele pensa que isso é capacidade de trabalhar. Isso não é. É capacidade de depredar‑se! A capacidade de trabalhar é uma coisa diferente!



Ficha:

(Csn, 02/09/1989 - Cap. 11 a 13)

(Vol. X - continuidade da educação no peq. Nobre)


11 - * O Barão de Fregnie, um nobre “de fraîche date”

Eu vou me alongar um pouco, mas eu estou lendo as “Memórias” de um Barão de Fregnie. Mas era um Barão de fraîche date. De fato eles tinham… Eu vou te dizer o que era o pai dele, vocês têm idéia do que é.

Ele tinha… É das coisas antigas, que a gente não tem idéia, mas assim como os estados modernos têm cartórios que eles dão de presente para um e para outro, por um concursinho assim, mais ou menos pechisbeque, eles dão o cartório. O sujeito fica dono do cartório. Assim, o manuseio das finanças reais era feita cartorialmente. Então, se você ganhasse, por exemplo, o caráter de Fermier Général — que pelo que eu julgo ter entendido, era o que dirige as finanças do rei numa província — você ficava dono, e seu filho, seu neto, seu bisneto! Era como uma casa que você ganhou! E eram cargos muito enriquecedores. Como é em medida muito mais modesta um cartório de notas aqui, um cartório de protestos em outro lugar. O cartório do Barradas é muito melhor que um cartório de notas. Porque no cartório de protestos tem que ir protestar ali, naquele cartório! Ele fica detrás do guichet, olhando os commis dele trabalharem, e se abanando!

12 - * Continuidade e firmeza num título, no entanto, pequeno

Bem, mas esse Barão de Fregnie, o pai dele tinha esse cargo. E ele era da alta Finança! E ele descrevendo os salões que ele frequentava, tanto tinha os salões da nobreza, quanto tinha os salões da finança, que não se misturavam. E ele como era barão, frequentava uns e outros.

A gente via que esse pessoal que cuidava das finanças do rei, o pai dele cuidava só das jóias do rei. Mas eram jóias… eram aquelas coisas do outro mundo! Depois, todas as jóias dos príncipes da Casa Real entravam também sob a fiscalização dele. Pode imaginar o que é que esse homem cuidava, não é? E quando uma jóia ficava meio désuète, ele que vendia. Você pode imaginar uma venda de uma jóia como é… É todo um caso, não é?

Bem, a segurança desse homem como Fermier Général, é uma coisa prodigiosa. Ele sabia que não era um barão de primeira ordem. Era um barãozinho assim não feito de ouro nem de prata, mas de tampinha de garrafa Caxambú. Mas, sem embargo, ele era ele! E se eu tivesse aqui a meu alcance, eu mostraria a vocês a carinha dele na capa do livro, ouviu? Ultras! Ultra realista…

Quer dizer, eu tenho impressão que a continuidade, a solidez e a continuidade da fortuna enobrecem. E que a fragilidade, o súbito da aquisição, pelo contrário, impedem o enobrecimento. Porque no dinheiro, propriamente, a gente só o aprecia quando tem em vista o risco de perdê‑lo. Fora disso é a coisa mais natural do mundo a gente ter aquilo.

13 - * Quem tem amor de Deus sente‑se filho de rei, e tem continuidade e nexo com todas as coisas

Então, meu filho, não sei se eu respondi bem a sua pergunta? Então creio que está explicado que um homem, como você o figurou, seria um homem que teria um amor de Deus que o fizesse ver nessas coisas a Deus Nosso Senhor, e o fizesse ver com essa sensação — é uma coisa curiosa — de filho de Deus, e portanto filho do rei. E de continuidade com tudo o que existe.

(Sr. GL: Nexo e continuidade.)

Nexo e continuidade com tudo quanto existe. Na Europa há algumas casas, em Roma sobretudo — Nelson, Paulo Henrique devem ter conhecido casasa assim — que não têm escada, mas têm assim, em caracol, [uma] rampa que chega até em cima. E que era para o sujeito poder subir a cavalo até o último andar!

(Sr. PP: Como “La Giralda”, de Sevilha.)

Exatamente, é isso. Assim também o amor de Deus nos faz conceber as hierarquias assim, a la escada da Giralda. E, portanto, nexos, continuidades e proporções [conjuntas].

E é curioso o seguinte. A unidade de vocação de algum lado faz a coisa assim entre nós. (…)

Ficha: 58

(Csn, 02/09/1989 - Cap. 14 a 16)

(Vol. I - Cap. 1, f)


14 - * Noções de desapego e bonomia que a mundo revolucionário fez perder

uma falsa sonoridade que a palavra “desapego” produz, que é de uma pessoa que não tem apego por nada. Não é. É uma outra forma de apego, que não é para si, mas é por causa da coisa em si, e por causa de Deus.

(Sr. GL: Ou é por isso, ou o Sr. corta o nexo.)

Corta o nexo. No caso da saúde é uma outra coisa… (…)

15 - * O negrinho que ficou cego no engenho do Dr. João Paulo

Por exemplo, papai contar coisas lá do Nordeste. Então aqueles engenhos, aquela vida de engenho. Ele foi criado num engenho desses, o pai dele era senhor de engenho, e tal. E contava às vezes algumas coisas incalculáveis. Vocês façam idéia, uma era essa.

Havia um dos irmãos dele fazendo caçada, o irmão mais velho dele, fazendo caçada lá pelo engenho — eu não sei que bichos ele encontrava para matar, porque me pareceu que era uma natureza muito rala quando eu estive lá — ele caçava alguma coisa lá. Fazia caçada com chumbo. E metendo chumbo uma vez, teve a infelicidade que um chumbo escapou, e bateu com o chumbo, cegou um pretinho lá.

E eles socorreram, fizeram o possível, etc. De um olho o pretinho ficou cego. E daí a pouco andou o Bispo por lá, andou crismando gente, e o pretinho veio pedir para o meu tio que o cegou, que ficasse o padrinho dele! Meu tio entendeu que era se candidatar a uma espécie de pensãozinha, pelo fato dele ter ficado com a validade dele diminuída. Mas achou uma coisa natural, topou a parada. No dia foi lá, depois deu presente para ele, etc.

Disse que durante o ano se perdiam de vista. Mas quando chegava o aniversário dele, ele ia sempre visitar meu tio. E para o meu tio não se esquecer de quem era, ele se aproximava assim: “Meu padrinho! Boa tarde!” Assim! Era uma coisa meio impertinente, não é? Mas nem o meu tio tomava assim, nem o meu pai tomava assim. Davam risada, achavam graça! A gente vê que ele favorecia o pretinho.

Era um modo de considerar com uma espécie de bonomia sorridente o que estava para o lado de lá da barreira, onde até umas certas faltas de respeito — porque é uma certa falta de respeito — entretanto passava como uma coisa engraçada, que se via com bonomia.

Isto o espírito revolucionário extinguiu completamente!

16 - * Os dois irmãos cegos do Dr. João Paulo

Uma outra coisa também, é numa outra ordem de idéias, completamente. Mas papai, por causa do excessivo entrelaçamento dos casamentos de antrepassados dele, tudo primo, primo, primo, até onde perder de vista, começaram a aparecer defeitos na família: uma pessoa da família nasceu sem esse dedo, horrores assim. Então eles fizeram cessar esses casamentos assim. Mas ainda meu avô era primo de minha avó. Aliás, nos dois lados.

E o resultado é que o meu pai teve dois irmãos cegos de nascença. Uma coisa horrorosa! Bom, se diria que é uma coisa melancólica, não é? Você ter dois irmãos cegos morando numa fazenda.

Papai contando — papai gostava muito de contar coisas engraçadas — contava assim, entre outras coisas, que ele e os outros irmãos iam passeando pelo campo, e que encontrava um ou outro dos dois cegos tentando passear sozinho lá. E que às vezes eles já levavam um pano e uma bengala de casa, porque um desses cegos alguma coisa via. E imitavam vagamente os chifres de um boi, e faziam de conta que o boi estava querendo investir contra o cego. E o cego dizia: “Ohhh! Ohhh”, etc., e fazia sinais. Depois o pessoal caía na gargalhada! E eram os que estavam mexendo com ele.

Sabe qual era a resposta? Ele achava engraçado também, e iam todos juntos para casa.

Você não consideraria… Eu fiquei, quando ele contou isso, ele tomava com tanta naturalidade, que eu não fiz nenhuma observação. Mas entre irmãos daqui, isso dava um ressentimento mortal, uma vez que saísse uma brincadeira dessas! Mas uma vez!



Ficha: 59

(Csn, 02/09/1989 - Cap. 17)

(Vol. I - Cap. 1, g)


17 - * A Senhora Dona Lucilia em Recife esperando o navio

Bem, Mamãe era uma pessoa cheia de tactos. Ela passou uma temporada, a lua‑de‑mel dela, ela foi passar em Pernambuco para conhecer a família do meu pai. Depois ela voltou para Recife, e estavam esperando encostar o navio para voltar para São Paulo. E um dos cunhados cegos estava sentado ao lado dela. E uma moça atravessou a sala do hotel onde eles estavam, e o cego ouviu o barulho dos pés dela no chão. E voltou para Mamãe e disse: “Que bonita moça, hem Lucilia?”

Mamãe fez essa pergunta incrível para ele, porque ela já estava metida no ambiente da família de meu pai: “Amaro, como é que você sabe se ela é bonita ou é feia?” Que é uma pergunta que um de nós não faria para um cego, nunca! Mas é aquele ambiente de bonomia!

Ela tinha aqui um primo cego, primo longe nosso, cego, porque o médico foi tratar dele em moço, em menino, quando ele ainda não tinha uso da razão ainda, e pingou nitrato de prata em quantidade nos olhos dele, para curar uma oftalmiazinha… E ele ficou com os olhos brancos! Não tinha remédio!

Bom, nunca vi Mamãe fazer uma brincadeira dessas com o primo dela! Mas lá, naquele ambiente, com o cunhado dela, ela fez essa brincadeira. O homem achou graça, e disse: “Você não faz idéia, mas pelo passo eu percebo se a pessoa é bonita ou é feia”. Não é de todo impossível que seja, hem? Mas você vê uma certa bonomia… que no total a gente compreende. Tudo é um velho tempo que acabou. Acabou completamente.

O Guerreiro está rindo, vá ver que andando pela Bahia encontrou coisas assim, hem meu filho?

(Sr. GD: No Nordeste essas coisas são levadas a um tal ponto, que um sulista às vezes fica reticente.)

É, exatamente. Mas no fundo não tem esse lado de bonomia dentro disso?

(Sr. Poli: E muito afeto também.)

Pois é. Mas no fundo é uma tradição de amor de Deus. Você pode fazer idéia que segurança um menino cego tem que ter de que ele é respeitado pelos outros, para ele não ficar ofendido com uma brincadeira dessas! Quer dizer, não passava pela cabeça dele de ficar sentido. Era uma prova de confiança, de respeito do ambiente para com ele, que é impensável por nós. Quando papai contou isso, para usar a expressão francesa, eu fiquei sidéré com o negócio! Mas depois, pensando, disse: “Não… Ele que tem razão.”

São coisas que passaram, que… Outros mundos! Outros mundos!

(Sr. GL: Agora, com o Sr. e a com a SDL nós temos muitos elementos para perceber como isso é.)

Ah, Mamãe era profundamente assim! Mamãe era profundamente assim.


Ficha: 60

(Csn, 02/09/1989 - Cap. 18)

(Vol. I - Cap. 1, c)


18 - * As conversa de Da. Gabriela com a escrava preta

Eu já disse a vocês que minha avó era assim, com todo aquele jeito imponente dela. Eu me lembro dela sentada naquela cadeira que eu tenho no escritório, ao lado estava uma cadeira de balanço em outro estilo, mas congênere — que foi parar nas mãos de D. Mayer — e nessa cadeira de balanço estava sentada uma preta velha, escrava de uma amiga dela! Mas que aparecia em casa às vezes para conversar, e as duas estavam conversando sobre Pirassununga antiga! As cadeiras balançando, “quén, quén, quén”, e as duas conversando sobre isso. A Grand‑Dame e a preta velha!

(Sr. GD: Era a douceur de vivre.)

Douceur de vivre! Uma coisa que hoje não se tem idéia mais.

(Sr. Poli: Agora, um argentário não poderia ter uma preta ao lado, que ele se sentia diminuído.)

Depois também, você precisa ver bem, assim como o meu tio cego tinha muita noção do respeito que se inspirava a ele, também a minha avó, você vê a noção que ela tinha da superioridade dela, para poder fazer uma coisa dessas. Porque também entra isso em linha de conta. Ela se sabia respeitada a fundo. E aliás era com Mamãe também. Mamãe se sentia respeitada a fundo. E se fazia respeitar. É um outro mundo! Quer dizer, não se pode ter idéia do que isso foi. É só quem conheceu.

Não sei meus caros… Meu Nelson, a sua pergunta ficou claramente respondida? (Vira a Fita)


Ficha:

(Csn, 02/09/1989 - Cap. 19 a 21)

(Vol. X - Modo do SDP transmitir seu espírito)


19 - * Como o Senhor Doutor Plinio quer transmitir e transmite esse estado de espírito

(Sr. NF: A transmissão do espírito do Sr., um espírito tão elevado assim, é, segundo a explicação de São Luiz Grignion de Montfort, um caminho muito fácil, muito rápido… Eu pergunto se é assim, e por que é assim? A impressão é que esse espírito diz: “Aquele que me vê, aquele que me olha, me possui”.)

É isso. Não é, portanto, o contrário: “Fique sabendo que eu faço isso e você não faz. E, portanto, você não me possui!” Mas é o contrário. É um convite: “Se você olhar, pode possuir. Eu faço, portanto, um à vontade diante de você. É um oferecimento.” E para uma coisa muito mais católica, naturalmente.

Agora, o que é que tem isso? É o seguinte. É que se pessoa olha isto com amor pela coisa em si que está vendo, a coisa nasce nela. Não tem conversa. Nasce nela. Ainda que nasça a seu modo, de seu jeito, etc., nasce nela.

Isso vai tão forte, que quando isto é visível por uma pessoa que não tem continuidade com a gente, a pessoa adapta aquilo sem perceber ao tom que lhe é próprio, e se eleva dentro da sua própria condição naquilo.

Nesse sentido, a linha tradicional dos grandes lacaios, dos grandes empregados de grandes casas, era a versão do duque para o estado servil.

20 - * O desejo de transmitir do Senhor Doutor Plinio o leva a transmitir isso em todas as ocasiões

(Sr. NF: Nessa perspectiva, o esforço que o Sr. faz para que nós tenhamos esse espírito, é feito como? Não se trata sobretudo de uma ascese. Se trata de quê?)

Trata‑se do seguinte. É a preocupação de fazer a coisa — mas é uma coisa instintiva, um empenho instintivo: assim como a gente instintivamente pode receber alguém com amabilidade, sem fazer uma ascese, assim também se tem um desejo de transmitir isso instintivamente.

Agora, esse desejo leva ao fato de a pessoa ter muito cuidado de fazer a coisa de maneira a tornar a coisa explicável. E evitar os equívocos evitáveis — alguns equívocos são inevitáveis — mas evitar os equívocos evitáveis. Primeiro ponto.

Agora, segundo ponto: é fazer de um modo tal que os lados dignos de amor da coisa estejam presentes para quem queira notar. Para quem não queira notar, não podemos furar os olhos de quem não quer notar. Mas, para quem queira notar, esteja presente.

21 - * Um exemplo: o Santo do Dia de hoje

Por exemplo, na ordem de coisas, agora à noite no Auditório São Miguel, houve uma coisa muito interessante, tocando nessas coisas todas. E é o seguinte. Na penúltima reunião eu falei com eles sobre perguntas, que eles faziam muito poucas perguntas nas reuniões, etc. Então disse: “Vocês — eu não digo “vocês”, eu digo “senhores” para eles em conjunto — os Srs. estiveram inúmeras vezes na Sede do Reino de Maria. E nunca lhes passou pela cabeça de me fazer uma pergunta sobre a Sede. Vão lá olhando o quê, para fazer o quê lá dentro? Aquilo não lhes quer dizer nada?”

Bom, quando eu desci aqui de automóvel, o Fernando me informou que eles durante a semana foram à Sede do Reino de Maria para preparar perguntas. E que saiu uma barulheira de discussão entre eles. Porque tem o pessoal da Saúde — a Saúde é quase uma nação… (…)

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