Conversa da Noite – 19/8/89 – Sábado . 13 de 13

Conversa da Noite — 19/8/89 — Sábado

O que é o “ver” das graças místicas: cognição natural e graça concomitante; O proceso da mística ordinária * Como esse proceso se realiza continuamente na alma do Senhor Doutor Plinio * Graças no Reino de Maria para sentir essas graças habitualmente * Uma graça especial do Senhor Doutor Plinio de colocar ao alcance de todos os homens esse tipo de sensibilidade à graça; Uma técnica de descrição natural que ajuda a descrever a experiência mística, incluindo o elemento sobrenatural * O thau faz ver tudo isso à luz da luta da Revolução e da Contra-Revolução * Novos padrões de trato humano sobrenatural para o Reino de Maria; Conversas de Sábado à Noite: Chamados a inaugurar um novo tipo de conversa, como modo de agir: uma missão

(Sr. GL: Que graças Nossa Senhora concedeu ao Sr., que união o Sr. tem com Ela, por onde certos véus que Nosso Senhor quis que ficassem cerrados para os homens até agora, são entreabertos para Sr. Isso é um dom que habita no Sr., e que é uma graça extraordinária.)

* Submetimento do Senhor Doutor Plinio ao ensinamento da Igreja em toda a questão mística

É preciso dizer o seguinte. Eu não li uma palavra a respeito dos assuntos das graças ordinárias da via mística. De maneira que o que eu digo a esse respeito são coisas que o João Clá leu para eu ouvir, e das quais eu vou tirando cálculos, conclusões de probabilidade. Mas uma certeza como eu teria se eu visse um documento eclesiástico, sobretudo de um Papa, expondo a questão, eu não teria.

De maneira que o que eu faço, como me parece indispensável especular a respeito disso e eu não tenho tempo de ler, então eu vou especulando à vista do que eu sinto, do que eu vejo, etc., mas com a reserva de que pode ter alguma coisa aí que esteja errada ou qualquer coisa, e que evidentemente me submeto ao ensinamento da Igreja, etc., de bom grado, caso tenha alguma coisa para…

* O que é o “ver” das graças místicas

Quando você falou há pouco de ver, a palavra “ver”… dizer: “Eu vejo na Igreja isso, vejo aquilo”, a palavra “ver” pode ter aí um sentido corrente. Por exemplo: “Eu não vi culpa em fulano”. Não quer dizer só que eu não vi com os meus olhos, mas quer dizer que eu analisando o caso, um juiz que por exemplo lê os autos, conclui dos autos: “Eu não vi culpa nele”. Isso, quer dizer, não é o “eu ver” aqui, é a análise lógica dos autos com o processo, com as provas — concludentes ou não concludentes — etc., que levaram o juiz a concluir que não há culpa. É uma conclusão de caráter intelectual. Ele disse que não viu num sentido metafórico da palavra “não ver”. Sentido muito legítimo, mas todo ele metafórico.

Agora, com essas graças de caráter místico, da mística ordinária, poder-se-á dizer o “ver” nesse sentido que a pessoa é tocada por uma graça sensível, da qual ela tem algum conhecimento que evidentemente não entra pelos olhos, mas é um conhecimento que ela tem. E que é uma como que sensibilidade da alma à ação que Deus exerce nela. E nesse sentido eu tenho impressão que se pode dizer “ver”.

* Exemplo: “ver” uma graça num raio de sol; cognição natural e graça concomitante

Então, por exemplo, dizer: “Eu vejo um raio de luz que passa por um vitral de tal cor, eu vejo uma graça”. Não quer dizer que eu veja com alguma coisa parecida com o ver do olhar, mas é uma coisa diferente. Vendo aquele colorido como é, desperta em mim uma analogia, uma idéia natural de que deve haver uma analogia entre aquilo e Deus. Mas é uma idéia natural.

Agora, junto vem uma graça que se exerce sobre mim, e pela qual eu julgo conhecer algo de Deus — conhecer levemente, à maneira de um traçozinho, de uma coisa muito leve — alguma coisa de Deus que é o modelo de que aquela graça é o elemento secundário. E as duas cognições vêm ao mesmo tempo: a cognição natural, quer dizer, eu olho, vejo o vermelho, gosto vendo o vermelho por essas ou aquelas razões naturais, todo o processo natural; agora, sobre esse processo natural vem uma coisa que é uma graça sensível.

* Exemplo: olhar um crucifixo

Então, poder-se-ia comparar com o seguinte. Uma pessoa, por exemplo, vê um crucifixo — vê como poderia ver qualquer outra coisa, como nós nos vemos aqui na reunião —, então é uma operação inteiramente natural, mas é tocado por uma graça, em função do olhar do crucifixo. Então aí a pessoa percebe que entra uma coisa sobrenatural pequena, discreta, mas muito preciosa, que a toca especialmente na alma, a respeito do sofrimento que Nosso Senhor teve naquele lance, etc.

* Exemplo: a leitura de um livro narrando a conversão de Malco

Aí, às vezes, é até com uma simples narração.

Por exemplo, falando ontem comigo pelo telefone o João Clá está cantando as maravilhas de um livro que ele encontrou lá, diz ele que é todo ele histórico, que não tem nada de elevações meramente piedosas e conjecturais, mas que conta do Evangelho uma porção de conseqüências que os bons teólogos tiram, e que a versão comum não tira.

Então, vejam essa que ele me falou. Disse que aquele tipo que acompanhaba os esbirros que foram prender Nosso Senhor, e de quem então São Pedro cortou uma orelha com a espada, chamava-se Malco. Parece que no Evangelho diz que o nome dele era Malco. Bom, agora, o negócio do Malco vai mais longe.

O Malco foi quem — e diz o João que isto até está na concordância dos Evangelhos, de D. Duarte — que o Malco foi quem deu a Nosso Senhor aquela bofetada, depois de ter sido curado daquele modo maravilhoso, por Ele ter respondido ao Pontífice. Foi ele que deu a bofetada. E que Nosso Senhor naquele momento olhou para ele com tanta superioridade e tanta bondade, que ele ali se converteu.

Quer dizer, eu não sei se vocês ficam, mas eu fico tocadíssimo com o fato.

* Analises do ocorrido com esse exemplo; o proceso da mística ordinária

Bem, mas agora examine-se a si próprio no tocante da coisa. Vamos fazer a análise. Até é interessante que vocês façam essa análise em vocês mesmos também.

Ao serem tocados, não lhes parece que há o seguinte: vocês procuram imaginar ligeiramente, instintivamente a cena. Isso me acontece freqüentemente, quando se ouve descrever uma cena, um pouco a gente recompõe a cena, imagina a cena.

E pensando nessa bondade sem fim de Nosso Senhor, enternecedora realmente, a gente parece ver na imagem que formou de Nosso Senhor, no olhar d’Ele, uma ternura que comove. Bem, esse é o toque da graça.

Eu acho que fica bem diferenciado o que é operação natural e o que é ação sobrenatural. Então não tem como objeto uma cor nem nada, mas é uma narração. Essa narração se acompanhou em nosso espírito de vago delineamento figurativo, e esse delineamento se anima em um ponto. É uma ação da graça. É assim que eu imagino as ações da mística ordinária.

* Como esse proceso se realiza continuamente na alma do Senhor Doutor Plinio

Então, eu posso dizer que, ora mais confusamente, ora menos confusamente, habitualmente as coisas que eu vejo, quando não são contrárias a Deus e que me dão repulsa, sendo algumas coisas que não são neutras também como o calçamento de uma rua, mas têm algo de melhor do que o simplesmente neutro, tem uma ratio bone, uma relação com o bem especial, são próprias a que a Providência se digne de fazer sentir em minha alma nessa linha da graça.

* Como esse processo se realiza em todas as almas, que não sabem senti-lo por ter quebrado a inocência

Agora, eu creio — por isso que eu pedi que os Srs. se examinassem aqui enquanto eu falava a respeito de Malco, etc. — eu creio que isto, eu seria levado a dizer que todo mundo sente. E que é questão de ter o hábito de prestar atenção nisso. Não à maneira de quem se atormenta: “Agora eu não consegui…” Não. isso é feito com calma e sem tormento nenhum, com toda naturalidade, com a toda afabilidade de “uno” para consigo mesmo.

Mas com afabilidade, a pessoa prestando atenção, acaba sentindo um mundo de graças assim que todos os homens têm. Agora, a questão é que a fidelidade à inocência primeva, que é cheia de graças assim, essa fidelidade conserva muito essa graça, e mantém muito o homem numa certa linha, etc. Não preciso completar o resto.

* Graças no Reino de Maria para sentir essas graças habitualmente

O que eu acho é o seguinte. É que faz parte do Reino de Maria uma certa graça pela qual os homens fiquem atentos a isto, e saibam isto. E, portanto, saibam avaliar devidamente esses sentimentos interiores que tem.

E que a isto se acrescentará então uma coisa maior, que eu não sei bem se será uma maior intensidade disso, ou se será… não sei que maravilha a Providência esconde atrás disso. E aí será uma das graças específicas do Reino de Maria.

* O efeito de um quadrinho representando uma cidadezinha tradicional

Veja, por exemplo, o seguinte. É impossível que os Srs. vendo um desses quadrinhos — às vezes há ums pinturinhas assim, até muito sem valor, outras têm mais valor — representando cidades do Brasil colonial. São até mais freqüentes em Minas, eu suponho, porque se conservaram mais cidades assim, etc. Mas às vezes pinturas de coisas européias dão a mesma impressão.

Vendo o traçado um pouco irregular de uma rua, que depois se perde num canto do quadro, a gente tem qualquer coisa de sensação de trabalho humano bom, de caminhar humano sereno do dia a dia, comendo grão por grão cada minuto que passa, sem vontade de correr, sem vontade de devorar, sem vontade de precipitar. E carregando a rotina no que ela tem de pesado e no que ela tem de afável, carregando assim… Fica alguma coisa ali que a gente olha o quadro, eu tenho às vezes uma certa emoção, que eu suspeito — não tenho certeza — que seja da mesma natureza.

De maneira que há certas coisas que são assim, e que a gente nem sabe bem o que é o natural e o que é o sobrenatural.

* Como o Senhor Doutor Plinio degusta num quadro de Veneza toda a Civilização Cristã

Por exemplo, uma coisinha muito comum, e que se encontra em qualquer casa. Aquele quadrinho de Veneza que está ali junto ao meu Mário. Bem, há qualquer coisa ali que o pintor conseguiu pôr no ar, qualquer coisa de diáfano, uma neblina que está acabando, mas que ainda existe o suficiente para brilhar, mas brilhando de um modo tal que ela brilha com a alma brilha no corpo! A gente não pode apontar onde está essa neblina ali, mas é uma nevoazinha toda carregada de sol lá. E o conjunto daqueles coloridos me produzem um efeito pelo qual eu sabendo bem que esse quadro não é uma obra de arte extraordinária, me comprazo muito em olhar para o quadro.

Mas me parece que no fim do meu gostar do quadro — aliás se quiserem podem trazer o quadro aqui para ver — no fim do meu gostar do quadro existe alguma coisa por onde eu exclamaria: “Oh! Civilização Cristã!” E que tem aí, portanto, alguma coisa de sobrenatural na ponta de uma série de impressões naturais, mais ou menos desse gênero. Parecidas, portanto, com a sobrenatural.

* Resumen do exposto

Então, primeiro passo: É verdade ou não que todo mundo mais ou menos sente isso? Em segundo lugar: Será verdade que isto integrava a inocência primeva? Terceiro lugar: Será verdade que quem conservou ao menos parte da inocência primeva, carrega consigo uma acuidade interior, uma delicadeza de alma interior — porque é propriamente essa a palavra — para perceber isso de modo especial? Será verdade que, percebendo isso de modo especial, às vezes se percebe o sobrenatural, em muitas vezes se percebe o sobrenatural? Será verdade, nesse caso, que é nesta linha, mas com requinte ainda não pensado por nós, que os católicos do Reino de Maria terão graças enormes para ver, etc.?

(Sr. GL: Agora, há algo próprio à vocação do Sr. que dá um salto nessa matéria, por onde a visão de Nosso Senhor que nós podemos ter observando o Sr. é muito maior. Esse mesmo quadrinho aí, uma pessoa do passado poderia gostar dele, etc., tanto é que pintaram.)

É, nem ninguém teria comprado.

(Sr. GL: Agora, ver nesse quadro um reflexo de Deus, e fazer apostolado para atrair as pessoas em função desse quadro, e mostrar como Nosso Senhor Jesus Cristo no fundo é consonante com esse quadrinho, esse assunto é muito próprio à missão do Sr.)

Ah, isso é outra coisa. Com isso eu concordo inteiramente.

(Sr. GL: Nós gostaríamos de saber como é isso.)

Mas eu gostaria de completar um pouquinho o que eu disse, para então responder o que você disse. Mas é o seguinte.

* Uma graça especial do Senhor Doutor Plinio de colocar ao alcance de todos os homens esse tipo de sensibilidade à graça

Então se poderia dizer que os outros santos — eu digo outros em função de São Francisco de Sales, em que eu pensava — São Francisco de Sales no primeiro capítulo do seu Tratado do Amor de Deus, tem coisas de tal maneira nessa linha, que se fica impressionado. É curioso que depois, no resto do Tratado, a coisa toma um caráter mais acadêmico. Mas no começo do Tratado, é uma coisa de comover a gente como ele vê isso e apresenta. Depois muda.

Eu tenho impressão que assim muitos santos viram, etc., como nós estamos vendo. Mas uma outra coisa é o falar sobre isso, e tornar essas impressões internas, que são impressões muito pessoais, torná-las um bem social, um bem de vários, e sobre os quais se conversa, sobre os quais há vocabulário para conversar. Porque a impressão que eu tenho é que a maior parte das pessoas não cultivou o hábito de explicitar, que é um hábito difícil, não é fácil, supõe muita análise da coisa, mas supõe um vocabulário, supõe um vocabulário autocriticado severamente, para dar bem exatamente o tom que a gente quer. É toda uma questão.

* Algo na linha da pura beleza metafísica, que começou a ser explicitado na “Belle Epoque”, mesmo por não católicos

[E] por um desígnio qualquer da Providência tudo isso desses imponderáveis os homens sentiram, e de vez em quando, com maior ou menor expressão, eles disseram de passagem alguma coisa assim. Mas então, quando algum conseguia, os outros “Ohhh! Ohhh! Fenomenal!, etc.

Um pintor, por exemplo, que pega um traço, um poeta que diz uma coisa… Aquela poesia do “Albatroz” que nós lemos aqui, eu creio que é do Baudelaire. Ele dá naquilo algum colorido que não tem nada de sobrenatural, mas tem qualquer coisa de metafísico. Bem, e que encanta de fato a gente.

Mas que por um desígnio qualquer da Providência, isto não foi objeto do elaborar do espírito humano, a não ser quando começou… assim, no começo da Belle Époque. Então você pega o Huysmans, por exemplo, ele tem coisas no En route, ele tem umas coisas assim que se vê claramente que ele está aludindo a coisas dessas. E a gente sente alguma coisa que ele diz.

A gente pega um bandido miserável como foi Proust, e o Proust na análise meramente natural das coisas, ele tem um dom de expressão e um poder de pegar as coisas, etc., que é uma coisa do outro mundo! Que abre a clave para que o espírito mais sobrenatural que o dele, que …. de tal maneira que se eu tenho alguma destreza no exprimir esses imponderáveis, eu devo em parte à leitura do Proust.

Veja a coisa curiosa. É um desenvolvimento humano que deu a uma pessoa com espírito sobrenatural a capacidade de pegar certas coisas.

* Um exemplo de Proust; prelibando os salões com só colocar o pé no capacho fora do portão

Então, do Proust. Alguns de vocês vão achar antipático, vão achar o que queiram, mas eu dou como o Proust dá. A mim me parece sentir algum reflexo de alma do gênero que o Proust conta. Ele conta uma coisa mais ou menos assim. Eu vou simplificar a narração, e por isso que eu digo “mais ou menos”.

De quem ele é filho, ele não diz, mas [é] filho de burgueses muito ricos, instalados em Paris no período da Belle Époque, etc. E os pais dele, a avó que morava com os pais, e à qual ele tributava muito respeito, muita veneração, etc., louco pela mãe, grande admirador do pai. Aliás, é preciso dizer: “FMRroso” até o último ponto possível! Eles freqüentavam a boa burguesia de Paris. E a burguesia bem rica.

Mas o quarteirão onde eles estavam parecia que era um quarteirão muito grande. E que, portanto, ficava uma espécie de terreno vago entre todas as casas que davam para aquele quarteirão. Um terreno no meio. E ele da janela do quarto dele, ele via o apartamento, ou a casa — o Hôtel como eles diziam naquele tempo — do Duque e da Duquesa de Gramont, que eram la fleur du poids da sociedade aristocrática do tempo.

E ele então, tanto quanto ele podia fazer, sem ficar mal, ele ficava olhando aquilo tudo, e pegando aquela descrição e bebendo as delícias que se devia ter em ser daquele mundo.

E depois ele começava a sonhar com aquilo. E lia nos jornais mundanos, sociais, as recepções que os Gramont faziam. Então eles tiveram tais e tais e tais, e isso, aquilo e aquilo outro. E ele procurava ver na próxima recepção: está chegando aquele, tá, tá, tá. Bom, e ele sonhava em ser admitido na casa do Duque de Gramont.

Às vezes ele fazia o seguinte. Aqui é um lado incalculável. A Prefeitura de Paris permitia que nesses grandes hotéis, etc. — hotéis no sentido francês daquele tempo: residências particulares apalaciadas — dando diretamente para a rua, a família deixasse sobre a calçada uma dessas coisas… capachos. Mas devia ser de uma qualidade muito melhor do que esses capachos que têm aqui. À noite recolhiam; de manhâ a criada punha do lado de fora.

Agora vem o lado psicológico: ele, para de algum modo prelibar as delícias que ele teria quando alguma vez ele fosse introduzido na casa dos Gramonts, ele quando passava lá, a pé, gostava de pisar devagarinho naquele capacho.

(Sr. GL: Agora, é uma coisa que tem seu…)

Tem sua realidade. Eu acho que isso tem sua realidade. Vocês podem dizer que é um cretino, está delirando, podem dizer o que quiser, a meu ver tem uma certa realidade.

* A sensação de Proust quando entrou num salão: uma profanação!

Bom, depois outra. Ele afinal, desse jeito, daquele ou daquele outro, ele se faz anunciar, se faz ser acolhido numa recepção. A coisa era que ele — ele não diz assim, mas ele deixa ver, bem desavergonhadamente até — que ele era muito, muito inteligente. E que a Duquesa de Gramont, muito bonita, muito inteligente, à força de cerrar de cima com todas as senhoras bonitas do clã dela, ela não tendo mais por onde pisá-las ela resolveu pisar enquanto intalacta. E se meteu a convidar um ou outra intalacta plebeu para a reunião deles, para ter conversas com eles, que as outras não fossem capaz de acompanhar. Para ela então pisar em cima das amigas, das outras duquesas, por causa da conversa que ela sustentava com aquele homem.

Bom, e que então tinha ainda naquele tempo um alabardeiro, com o chapéu bicórnio, com a lança. Chegava uma pessoa, ele avisava: “M. le Duque de tel; M. le Marquise de tel; Son Altesse Sérénissime le Prince tel, etc.” Ele do lado de fora ouvia. Quando ele entrou, ele ouviu gritar: “M. Proust!” Ele achou tão lambido o nome dele, e tão pobre — M. Proust! — que ele teve a impressão que o teto ia desabar! Que ele estava profanando… e depois estava! O pior era isso.

É uma coisa que escritor nenhum descreve cenas sociais assim. O Proust descreve.

* As descrições de Cambray feitas pelo Proust

Ele descreve Cambray, que era a cidadezinha onde a família ia passar férias, tinha uma casa, etc. Ele tinha uma tia doente, que vivia deitada em Cambray. E morava numa espécie de encruzilhada, uma coisa assim. E ela ficava olhando pela janela o movimento que passava. E ela já conhecia um por um todos os habitantes da rua, da cidadezinha. Cambray, aliás, é um nome lindo!

Bem, ela estava deitada, e ele estava embaixo preparando o exame que ele no fim das férias tinha que dar. E ouvia a conversa da tia com uma criada especial para cuidar da tia, que ela tinha lá. Vamos dizer que ela tinha um nome qualquer meio singular: Florinda, uma coisa assim:

- Florinda! Vá a casa número tanto perguntar por que é que Mademoiselle tal passou correndo lá, se tem alguém doente ou se está precisando de alguma coisa.

- Fulana, tome nota que agora passou fulano, que está ficando noivo de sicrana. E passou na hora habitual dele ir para a casa da noiva, mas tomou outra direção. E vá saber se ele rompeu o noivado com ela.

E assim a vidinha da cidadinha passa inteira na conversa da Tia com a Florinda. Em certa hora toca o sino, depois tem o épicier, não sei mais o quê… Todo o miúdo encanto de uma cidadezinha francesa daquele tempo, inclusive a hora em que toca o sino, em que está fazendo um crepúsculo, em que o homem em frente fecha a vitrine, então a luz que ele tinha da vitrine abaixa mais, e concorre para haver mais sono em todas as casas em volta, porque o movimento diminui e os traseuntes passam mais sonolentos por lá, e isso vai besuntando de sono o ar, etc.

* Uma técnica de descrição natural que ajuda a descrever a experiência mística, incluindo o elemento sobrenatural

Tudo isso são coisas que ele tem uma originalidade de descrever, como eu não conheço autor que descreva. Isso, por exemplo, a mim me ajudou muito a fazer descrições dentro das quais eu pudesse inserir também o sobrenatural que me parece notar.

Nesse sentido, para comparar coisas pequenas com coisas imensas, Proust não seria o pagão, não seria o Aristóteles do qual nós, como outros tantos Tomazes de Aquino, tiramos o erro e pegamos a verdade, e elevamos a uma linha mais alta?

(Sr. GL: Eu acho que não, mas enfim…)

Ah, ah, ah!!!

(Sr. GL: O thau e tudo isso…)

Não, o thau… E depois, realmente, eu percebo que por muitas coisas que eu digo… (Vira a Fita)

(Sr. GL: Não é que o Sr. seja uma continuação deles.)

Não. Como São Tomás não é uma continuação de Aristóteles.

(Sr. NF: O Proust pode ter afinado um órgão que o Sr. já tinha.)

É isso, perfeitamente. Agora, quem tem essa espécie de experiência do sobrenatural, tem toda uma outra dimensão das coisas para focalizar, que a técnica proustiana auxilia a exprimir. Mas que os homens anteriores a Proust sentiam e não sabiam dizer. Proust soube dizer o natural; compete-nos a nós saber dizer o natural e o sobrenatural.

* O thau faz ver tudo isso à luz da luta da Revolução e da Contra-Revolução

(Sr. GL: E o thau como entra aí?)

O thau é uma graça que nos faz ver duas coisas: primeiro, a distinção entre a verdade e o erro, o bem e o mal, o pulchro e o feio. Acompanhado de uma coisa que é mais especial, e que é o seguinte: Faz ver isto à luz da Revolução e da Contra-Revolução; ou seja, portanto, à luz de uma certa retidão, por onde as coisas são conformes a Deus ou contrárias a Deus.

(Sr. GL: Mas todas as coisas. Há aí uma amplitude de visão que também é nova.)

É, isso eu admito que a amplitude de visão seja nova.

E esta coisa é antes de tudo uma retidão, mas por cima da retidão é um ver algo de sobrenatural em tudo quanto é verum, bonum, pulchrum, e preternatural em tudo que é o oposto. Que aí entra a tal graça sobrenatural mística comum.

* Relações entra “verum”, “bonum”, “pulchrum” na alma do Senhor Doutor Plinio

(Sr. GL: O pulchrum tem uma carta muito especial na vocação do Sr., e ver nas coisas uma certa luminosidade, ou certa obscuridade quando não são boas. E que há toda uma coisa de jogo realmente luminoso, por onde se vê que o belo, as cores, tudo o que fala de beleza toca ao Sr. enormemente. Agora, qual o santo que fez o apostolado da beleza no passado? Talvez haja, mas… Então, isso não tem muita relação com Nosso Senhor também?)

Mas vamos andar devagar. A questão é a seguinte. Pode-se dizer que a esse respeito tem duas afirmações possíveis. Uma é: o verum e o bonum têm menos papel na minha alma do que o pulchrum. Isso não é verdade. Mas que tem mais papel do que na alma de uma porção de outras pessoas, isso é verdade. Nesse sentido, um papel muito saliente.

* O apostolado do “pulchrum” que o Senhor Doutor Plinio faz

Que o apostolado do pulchrum foi feito, senão pelos comentadores doutrinárias, pelos artistas do passado, é fora de dúvida. E fizeram com intuito apostólico. Mas não tiveram o verbum para isso. Eles não souberam exprimir. Exprimiram pelas obras de arte que fizeram, mas não souberam exprimir.

Por exemplo, vamos dizer, a Torre de Belém para mim tem uma definição do que é ousadia, uma coisa extraordinária. Mas quem fez aquilo estava animado de espírito católico, e tinha uma graça, a inspiração artística que era uma coisa natural, mas muito provavelmente, pelo esplendor do que ficou feito lá, tinha ademais uma coisa sobrenatural, uma espécie de carisma para ver isto.

Bem, eu acho que isto a TFP é chamada a ter em alto grau. O thau já dá algo, e a fidelidade ao thau aumenta isso enormemente. Isso é a coisa assim, posta no…

* Belezas e profundidades ainda não desvendadas

(Sr. GL: Mas isso vai ajudando na compreensão mais ampla de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora. Porque Eles não têm sido apresentandos desse modo. Isso não foi mostrado antes, pode ser que não por culpa, mas que essa visão do Sr. é um passo para frente.)

Um passo para frente.

(Sr. GL: É fruto do quê, isso?)

Eu acho que é fruto de nossa vocação, que é um passo a mais que se desenrola na história do espírito humano, e que tem um papel novo também na própria espiritualidade humana, portanto. Que entra na linha de são Luiz Grignion de Montfort, etc.

Eu gostaria de dizer que quando se lê ou medita coisa do Sagrado Coração de Jesus, isto aparece assim, umas coisas mais ou menos desse gênero, fugazes.

(Sr. GL: Aparece mais na linha da bondade, da majestade…)

Exatamente. Uma bondade majestosa, mais do que uma majestade boa. Em Nosso Senhor Jesus Cristo as duas coisas existem: uma bondade majestosa e uma majestade boa. Há uma porção de aspectos d’Ele que ainda não foram desvendados. E que, por exemplo, o Santo Sudário revela.

(Sr. GL: Mas que na ordem das cogitações, na TFP se vê muito mais. Isso parecer ser uma coisa do Reino de Maria.)

Coisa do Reino de Maria.

* Novos padrões de trato humano sobrenatural

Agora, aqui também com um cuidado para calibrar uma coisa. O que nós conhecemos de auge de civilização é uma civilização de salão dos cem ans anteriores à Revolução Francesa, ou cento e cinqüenta anos, que foi um auge, e que não teria existido se não fosse a influência católica. Mas na qual se misturou um certo mundanismo que nós não podemos imaginar nas relações de Nossa Senhora com Santa Isabel.

Então aí apareceria uma matriz de cortesia, de dignidade, de alto trato, etc., escovado desse aspecto mundano e capaz de suscitar padrões de cortesia ainda muito maiores; Padrões de afeto, padrões de trato humano, vamos dizer: padrões humanos sobrenaturais, de outríssimo porte! (…)

* Imaginando o trato humano de Nosso Senhor

E se você quiser sentir o super trato humano, perfeito, monárquico e bondoso de Nosso Senhor, pode considerar, por exemplo, o episódio de Malco. Como foi o olhar d’Ele para Malco?

* Os descansos de Nosso Senhor na casa de Lázaro

Assim outras coisas. Por exemplo, Nosso Senhor ir descansar na casa de Lázaro, Maria e Marta. Como era o descanso d’Ele?

Por exemplo, para mim, a impressão que eu tenho é que o descanso d’Ele era assim: propriamente ele estava cansado, mas o cansaço não era só o cansaço porque andou muito — entrava em linha de conta: andou muito, está cansado —, mas é o cansaço de todo o inóspito das viagens daquele tempo, daquilo que o Evangelho chama muito bem: pondus diei et estus — “o peso do dia e o calor”, como coisas próprias a fazer cansaço. Eu acho muito saboroso. Você está vendo em que sentido o calor aumenta o peso, não é? É uma coisa evidente.

Mas era também cansado de sofrer, de só ter diante dos olhos d’Ele coisas que traziam tristeza, ingratidões, perversidades, etc. E Ele entrava num lugar onde Ele era amado. Então, evidentemente Ele acudia, Ele se sentia adorado, etc. Isso refazia n’Ele mil contusões que o trato comum ocasionava. E estava como que — o que eu vou dizer agora não é correto — mas como que… Eu vou dizer de outra maneira, que fica correto.

Um de nós que passasse por essa situação, teria a sua axiologia reforçada com isso. Porque depois de tudo, tudo, tudo, Ele encontrar gente que toma diante d’Ele a posição que deve tomar, um de nós se sentiria com a sua axiologia reforçada. Algo disso havia com Ele, e era o descanso d’Ele.

* Um ambiênte da inocência do celibato

Agora, mais delicado é o seguinte. É que eu tenho impressão de que a casa de Lázaro, que eu imagino como uma coisa meio apalaciada, como um hôtel, para as condições daquele tempo, etc., que a casa de Lázaro tinha flutuando pelo ar — não numa dessas categorias de deixar a gente delirando, mas assim de uma nobre a abundante categoria — flutuava uma atmosfera de inocência na casa de Lázaro. Que vinha do convívio daqueles três irmãos, os três já então observando o celibato absoluto, o pranto de Maria Madalena acentuando ainda a beleza da atitude de Lázaro e de Marta que tinham sido sempre fiéis.

E que aquilo tudo era muito digno, muito tranquilo, sem muitos móveis, sem muitas coisas enfeitando as paredes, etc., com uma espécie de tranquilidade ornamental, que…

* Nosso Senhor abrindo a alma… 

Bom, e que soprava uma viração, uma brisa contínua ali dentro. E que havia uma coisa à maneira de uma chaise-longue onde Ele se recostava, aquelas camas onde eles comiam. E Ele ali começava a ter o prazer do convívio daquelas almas; e então a alma d’Ele ia se abrindo, e todos os tesouros da alma d’Ele que os outros tinham recusado, esses tesouros começarem a se manifestar, começarem a se desdobrar para os três, cada vez mais encantados.

Mas, no fundo, Ele era para aqueles como um artista que toca um instrumento é para a partitura que ele toca. Porque Ele, pela graça, levantava neles as disposições que Ele queria ouvir. E Ele, portanto, fazia ressoar na alma d’Ele as suas próprias melodias.

E que por detrás de tudo, inclusive das apreensões que iam se acumulando e das quais eles tratavam — eu creio — às vezes, por detrás disso havia uma espécie de promessa e de prelibação da Ressurreição, que era a única coisa que tornava possível que naquele ambiente borrascoso fosse possível haver esse descanso.

Bem, não sei se os Srs. sentem isso mais ou menos assim… como sentem ou não sentem? Eu imagino isso assim.

* Porque o Senhor Doutor Plinio escolheu uns e não outros para as Conversas de Sábado à Noite; para quando a ânfora for aberta isso se espalhe

Mas, por exemplo, essa nossa conversa de sábado à noite tem uma coisa singular. Por que é que são esses e não são outros? Por que é que Nossa Senhora chamou esses e não outros? Eu convidei, porque achava que havia alguma coisa que proporcionaria um ambiente especial que não é o ambiente comum do Grupo, mas que seria como uma ânfora a ser depois aberta, ou quebrada, para que o perfume se espalhasse depois por todo o Grupo. Quer dizer, eu chamei para uma obra! Chamei para que isso fosse até a Índia! Mas fiz com uma intenção determinada.

Por que esses? Dirá: “O Sr. está dizendo, o Sr. viu”. Mas, se não é uma ilusão minha, por que é que eu vi? São essas coisas da Providência muito bonitas, muito especiais, que têm qualquer coisa de misterioso. Indicam um intuito que Ela tem com essas almas, e que nós devemos atravessar todas as tempestades para chegar do outro lado, para que essas almas dêem a floração que devem dar.

Agora, por que é que Ela escolheu esses? Eu também não sei. Ela é que sabe.

(Sr. Poli: Só essas palavras do Sr. já seriam de converter até um Malco.)

Queira Deus! Mas quando algum dia… (…)

* Chamados a inaugurar um novo tipo de conversa, como modo de agir: uma missão

prende-se a isso, com a idéia de uma conversa no Reino de Maria, prende-se a isso uma outra coisa. É, segundo as nossas concepções, o papel fundamental da conversa no tocar a vida. Então a gente compreende bem porque é que cada um dos Srs. foi chamado. É uma obra!

(Sr. NF: Não compreendi. O papel da conversa…)

Os Srs. foram chamados para inaugurar esse tipo de conversa.

(Sr. NF: Para depois a difusão, etc.)

E daí para o Reino de Maria. Agora, vejam bem: Como uma obra, hem?

(Sr. NF: Porque se não pensássemos que fosse uma obra, poderíamos pensar que fosse o quê? Um passatempo?)

Não. Uma mera coisa de vida espiritual, ou de aprimoramento cultural próprio. De fato é muito mais do que isso: é uma missão. A palavra “obra” não é tão precisa quanto a palavra “missão”. Uma vocação dentro da vocação.

Vejam uma coisa curiosa, o seguinte: vários dos Srs., talvez todos, freqüentam — todos, o Coronel não quer ir, não sei porquê — freqüentam as reuniões de domingo à tarde da Comissão Médica. O ambiente é muito bom, mas não é esse ambiente. (…)

* O ambiênte de uma igreja depois de uma cerimonia: Huysmans na vida do Senhor Doutor Plinio

resta aquele incenso, depois o coro da Igreja está ensaiando uns pedaços de música em cima, você ouve então o organista e o coro tocarem alguma coisa. E você vê três ou quatro velhas esparsas por alguns altares laterais, e rezando ainda. E o sacristão agitando a chave para entender que é para irem embora, e ninguém vai. É uma coisa especial!

(Sr. AT: Isso o Proust não era capaz de descrever!)

Olha, o Huysmans tem coisas assim magníficas! O Huysmans, ele se converteu pela música sacra, na igreja, senão me engano, de Saint-Germain-l’Auxerrois, entende?

A coisa começou assim: ele passou em frente da Igreja Saint-Germain-l’Auxerrois, andando por Paris. A igreja já estava vazia, mas ele teve curiosidade de entrar para ver como era aquilo lá dentro. Entrou, e o órgão estava tocando, alguém estava afinando o órgão.

Então ele descreve o subir das notas, mais ou menos como seres imaginários que dão saltos de dança pelo ar. Mas daí passa para uma seriedade e uma profundidade daquilo, uma coisa estupenda.

O Huysmans me ajudou, aliás, muito. E antes do Proust.

* Os descansos do Senhor Doutor Plinio: ver almas fiéis

Bem, meus caros, eu não quero fazer o papel de sacristão que agita as chaves, mas vamos andando! (…)

A mim me descansa. Se uma pessoa me privasse dessa conversa de sábado à noite para eu descansar, faria um erro! A pessoa não entenderia nada!

(Sr. GL: Mas se tivéssemos as almas mais bem preparadas, o Sr. descansaria mais.)

Ah, isso não tem dúvida nenhuma. E gosto muito de ouvir o que você disse.

[Oração da Restauração.]

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