Conversa da Noite – 3/6/89 – Sábado . 12 de 12

Conversa de Sábado à Noite — 3/6/89 — Sábado

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No amor à sacralidade estão os fundamentos do Ambientes-Costumes e da Arte Real — O amor à sacralidade no Senhor Doutor Plinio menino — O sentimento da sacralidade do carinho da Senhora Dona Lucilia — A Igreja acrescenta um “lumem gratiae” sacral àquilo que tinha certa beleza natural — Diferença entre imagem de Deus (mera natureza) e participação da vida de Deus (a graça) — Diferença entre a graça divina que há na coisa, e a graça que há na pessoa que percebe a graça da coisa — Como todo batizado sente a graça dentro de si — Graças ou carismas, conexos com o profetismo?

(Sr. GD: O Sr. não poderia comentar um pouco mais, como é que os objetos culturais, ou as graças, ou os ambientes diretamente religiosos e sacrais, como é que esses vários aspectos tocam naquele ponto da alma do Sr. — a que o Sr. se referiu na reunião anterior — por onde eles desencadeiam os movimentos de arquetipia na alma do Sr.?)

* A conservação da inocência, no Senhor Doutor Plinio, deu precocidade no desenvolvimento dos movimentos de alma

De si, eu tenho impressão que eu fui muito favorecido pela Providência, pelo fato de ser muito precoce, e conservar a inocência num período em que, para estes efeitos, a minha alma já estava bem mais desenvolvida do que a de um menino de minha idade. De maneira que eu tinha considerações, tendências, movimentos de alma, etc., que eram muito intensos — não diria como de um homem adulto, de nenhum modo, mas muito mais intensos —, correspondendo aos de um mocinho, quando eu era um menino de menos de dez anos.

Aquele episódio que eu contei de Versailles, por exemplo, indica bem isso. Eu, menino, com quatro, cinco anos, querendo comprar o Palácio com uma libra esterlina; depois me agarrando à carruagem, aquela coisa toda, indicava uma precocidade muito grande, nesta linha precisamente.

Agora, nesta linha, eu acho que havia alguma coisa de natural em mim, alguma coisa da natureza, mas da natureza inocente, evidentemente concebida no pecado original, com todas as limitações decorrentes daí, mas uma natureza inocente, de uma criança que ainda não pecou. Eu acho que a inocência assim, com este grau, muito poucos homens a conservam até uma idade, vamos dizer, de onze, doze anos, nesse grau.

Eu acho que em mim — isso vai parecer a vocês um exagero ridículo mas, enfim, é o que eu acho — havia movimentos de alma, não a minha alma toda, mas movimentos de alma de uma precocidade de menino de doze anos ou mais, numa criança de quatro, cinco anos.

* Quase toda a vida passava-se em cogitações dessa natureza, já desde os quatro anos de idade

Eu não era, portanto, um menino nenhum pouco prodígio, desses meninos que sabem, que aprendem, que não sei o quê — não era. Era um menino comum, inteligentizinho. Mas, neste campo das coisas, naturalmente falando, muitíssimo dotado! Mas muitíssimo dotado! E pela precocidade, desenvolvendo esse dote, de maneira que quase toda a minha vida, à maneira de criança, se passava já em congitações dessa natureza.

* Um exemplo: as cogitações em Paris sobre o “éclair” de café e sua influência na alma

Um exemplo, entre outros cem… mil até! Você sabem bem, eu fui desde pequeno muito guloso. E assuntos de comes e bebes — sobretudo comes! — me diziam muito. E Mamãe favorecia isso, porque eu era um menino muito fraco, e ela queria que eu comesse o mais possível. No que eu correspondia à expectativa dela, generosamente…!

E, estando em Paris, ela naturalmente arranjava um jeito de minha irmã e eu comermos bolos, balas, e outras coisas assim, não muito caras, mas sensíveis a uma pessoa de tratamento. A três por dois ela entrava numa casa, comprava uma coisa, comprava uma outra, e dava para nós. Minha irmã, comedida; mas eu, atentíssimo às coisas de comida!

Então, éclair era uma coisa de que eu gostava muito. Mas, ora era éclair de chocolate — eu gostava muito! —, ora éclair de café. E eu comecei logo, com quatro anos, eu comecei logo a fazer distinção entre éclair de café e éclair de chocolate. E logo depois me veio ao espírito a idéia: porque é que o de café era mais gostável do que o de chocolate, e que relação isto tinha com a alma. Era um menino de quatro anos… Até hoje a minha preferência continua pelo éclair de café.

De maneira que, quando, de vez em quando, eu posso romper o regime e comer um doce, eu mando comprar éclair de café, e não éclair de chocolate. Bom, você vê a raiz disso na alma de uma criança, não é?

* Cogitações sobre Veneza, no salão do dentista

Eu me lembro que — desculpem-me de contar tais banalidades, mas está na linha da pergunta que vocês fizeram — mamãe era muito cuidadosa em negócio de dentista, ainda quando fosse dente de leite de criança. E eu, inimigo nato de ir ao dentista! O dentista tinha no consultório dele uma cadeira, como todo dentista, mas depois a janela dava para um pátio interno do prédio. E em frente ao pátio interno, quer dizer, na parede do pátio interno, em frente à cadeira de dentista, tinha uma pintura representando Veneza. Uma pintura muito ordinária, representando Veneza.

Mas, eu sentava lá, e nos intervalos em que a dor me permitia, eu ficava pamé olhando para Veneza. Mas, imaginando Veneza não como estava pintada lá, mas uma Veneza arquetipizada. E já entrava uma idéia de como devia ser a mentalidade dos homens, que tinham inventado aquilo e que moravam lá dentro. E como eu teria mais facilidade em ser eu mesmo morando em Veneza, do que morando em São Paulo.

Quer dizer, isso é cogitação absolutamente prematura para um menino que está arrumando dente de leite.

Assim, o que eu poderia contar, seria uma torrente!

* A contemplação do sacral, como ápice da contemplação

Agora, na Igreja do Coração de Jesus, e depois no contato com essa imagem do Coração de Jesus que Mamãe tem aqui em casa, lá no quarto dela, e depois outras coisas assim, ocorreu um discernimento de uma coisa mais bela, e mais alta do que as coisas paradigmáticas da natureza, que era o sacral.

E eu não tardei em perceber — com que idade? Dez anos, talvez um pouco antes, talvez um pouco depois, eu não sei —, em perceber que as coisas sacrais eram de si muito mais elevadas, que elas davam acesso a contemplar uma ordem do ser muitíssimo mais elevada, e que satisfazia a minha alma incomparavelmente mais do que os paradigmas que se poderiam deduzir do éclair de chocolate, do éclair de café, ou de uma vista de Veneza. Ou de uns macarrões que eu eu comi em Gênova, naquele tempo, e de cujo gosto eu me lembro até hoje!

* As considerações durante a elevação do Calice, na Missa, bem antes dos nove anos

Bem, e isso se dava sobretudo na elevação, durante a Missa; e sobretudo na elevação do cálice, mais do que na elevação da hóstia. Eu não sabia o que é que era a Missa. Eu via que o padre estava rezando, que ele fazia qualquer coisa de muito alto, de muito misterioso, e que incutia um respeito que nenhuma coisa humana incute. Todo mundo baixava a cabeça — eu também baixava a cabeça —, e eu tinha impressão de que a emoção do padre era muito maior na elevação do cálice, do que na elevação da hóstia.

Isso era um erro de minha parte, porque ambas as ações são a mesma coisa: é a transubstanciação, e a renovação incruenta da morte d’Ele no Calvário. E o oferecimento da morte à Santíssima Trindade.

Mas, eu percebo hoje que concorria para isso, que a sagrada hóstia não tem valor artístico, enquanto o cálice tem. E a forma do cálice, como se usava naquele tempo, de ouro, e sempre em forma de, se quiserem, em forma gótica. Quer dizer, o cálice pode ser visto como uma ogiva voltada para cima. Aquela forma gótica, e o ouro, a beleza, a nobreza do ouro, e alguma coisa que se passava com o vinho ali — o vinho, uma coisa mais nobre do que o trigo —, me davam a idéia de que o ato que se fazia conjugadamente pelas duas transubstanciações, era um ato que atingia o clímax da sua sacralidade no oferecimento do vinho.

Havia ali um fator de ignorância religiosa crassa! Pelo que eu estou contando, eu estou vendo que eu nem tinha tido ainda o meu curso de Catecismo. Ora, eu tive o meu curso de Catecimso com nove anos. Portanto, deveria ser anterior a nove anos.

* Sentindo a graça atuar na própria alma inocênte

Mas, eu percebia de qualquer maneira alguma coisa ali, que depois eu vim a saber que era a graça. O órgão parecia-me comentar — sem palavras, mas de um modo magnífico! — parecia-me comentar muito bem o que se passava. E movimentar dentro do homem a graça que ele tinha recebido. E eu tinha uma admiração pelo órgão à fond perdu! O que desse! Até lá chegava a minha admiração.

* Considerando a sacralidade como pináculo de todas as coisas e do bem-estar

Bem, e aí a idéia da sacralidade aparecer — não é uma idéia, uma noção abstrata, mas é por assim dizer a experiência da sacralidade —, aparecer como a mais alta das coisas, e o pináculo do que o homem possa conhecer, desejar e admirar. E aquilo que ordena tudo o que vem abaixo. De maneira que, se houver sacralidade, Veneza está ordem e todas as cidades do mundo estão em ordem; se houver sacralidade, os cálices todos do mundo estão em ordem, as igrejas todas do mundo estão em ordem. O pináculo da cogitação do espírito humano é a sacralidade!

E é o pináculo também do bem sentir-se do homem. Em que ponto? É que eu notava que essa sacralidade tinha qualquer coisa da penumbra de uma igreja com vitrais góticos. Que ela tinha qualquer coisa de sumamente respeitável, venerável até, que no momento em que eu a sentia, se tornava — sem perder nada de sua grandeza — se tornava afagante, acariciante, e protetora para mim. E que continha uma promessa de proteção, de afago, que me dava uma segurança na vida, que eu não teria se eu não conhecesse a sacralidade.

* O sentimento da sacralidade do carinho da Senhora Dona Lucilia

E mesmo na forma de carinho de Mamãe, eu percebia um reflexo de que ela também tinha o espírito muito aberto para a sacralidade. E que havia qualquer coisa da filha da Igreja, no modo pelo qual ela era minha mãe. O que me unia muito a ela.

* A união com a Igreja Católica

Mais tarde um pouco, já então no Colégio São Luiz, me veio a idéia da Igreja Católica. Quer dizer, eu sabia que tinha a Igreja, mas minha atenção não se tinha concentrado na Igreja. A Igreja então que me levou a admiração ao auge, porque era o receptáculo e a fonte de todo o bem, de toda a verdade, de toda a grandeza, de tudo, é a Igreja. E unido a ela, eu tinha condições de permanecer puro e de permanecer sacral. Enquanto que desligado dela, eu caíria no rolo das coisas mais baixas, mais abomináveis.

* O amor à sacralidade, paraíso na terra!

E olhando para os outros, eu percebia que eles estavam naquele estado porque não tinham sacralidade, não amavam a sacralidade, fugiam da sacralidade como sendo um tédio e um cárcere — e era o meu paraíso!

Daí toda a ordenação do resto das minhas preferências, de meus gostos, etc., em função da sacralidade.

* Desse amor à sacralidade decorreram os Ambientes-Costumes

Agora, daí começa ambientes e costumes. Porque a possibilidade de ver a sacralidade refletida nas coisas, dava-me preferência pelas coisas que eram sacrais. Enquanto a sacralidade não refletida nas coisas, me dava um gosto meio sacral, nesse sentido que eu percebia que eram contrárias à Revolução. Eu percebia o abominável do demônio que as odiava, muito mais do que propriamente a sacralidade, que não tinham.

* Contemplações sobre uns cartões postáis de Versailles, como algo odiado pelos revolucionários

Eu me lembro que eu consegui em casa, essas coisas muito comuns: sabem uma espécie de albunzinhos que se fazem com cartões postais, que ficam picotados em bloco, que a pessoa tira… Compra, portanto, um álbum pequeno, do tamanho de postal, com 8 ou 10 vistas de uma coisa, de uma região, qualquer coisa, destaca o cartão e manda para conhecidos. No meio dos resíduos da viagem que a minha família tinha feito à Europa, encontrei um álbum de Versailles assim. Você pode imaginar que eu me agarrei no álbum, não é?

Mas, eu me lembro que eu gostava muito do palácio, e gostava enormemente também do parque, que era fotografado de cima. Não sei se algum avião precoce — já havia balões naquele tempo — tinha fotografado, não sei o que era, mas era fotografado de cima. Então, com aquele desenho geral de Versailles, aqueles bosquets, aquela coisa toda… E a minha forma de flanação era sentar-me longe do professor e abrir meu pupitre assim, ficar com o pupitre aberto, como se eu estivesse estudando. E dentro tinha a vista de Versailles, que eu percorria indefinidamente!

Mas, o que eu gostava propriamente ali — eu achava aquilo bonito, não tem dúvida —, mas do que eu gostava ali, era imaginar o porquê os revolucionários odiavam aquilo. Não sei se você está percebendo que é, portanto, um discernir o demônio. Não é discernir, portanto, o sacral, senão por aí: que aquilo que o demônio odeia tanto, tem uma certa dose, ou uma certa afinidade com o sacral. E por aí amar.

* A sacralidade gótica da capela de Versailles

Mas, quando eu, pela primeira vez, tive a atenção voltada para a capela de Versailles, com um teto ligeiramente gótico — quer dizer, se se fizesse um corte, dava um desenho gótico —, eu tive um epanouissement: “Como é bela Versailles!” Mas porque a capela, por causa daquela forma, é mais sacral do que o resto do palácio. A objeção que se pode fazer ao palácio, é que ele é um tanto naturalista, não é muito sacral. A capela dá essa sacralidade, muito mais acentuadamente.

Então, onde eu encontro a sacralidade, aí a minha alma está, com todo do seu gosto.

* No amor à sacralidade estão os fundamentos do Ambientes-Costumes e da Arte Real

Não sei se a minha resposta responde a pergunta? Porque nisso estão os fundamentos dos ambientes e costumes, da noção de arte real, etc.

(Sr. GD: Se a sacralidade tem um papel assim, como o Sr. acabou de descrever, no fundo a alma do Sr., toda ela, voa para esse ponto.)

É.

(Sr. GD: Agora, os outros aspectos da civilização européia, por exemplo, naquele castelinho que o Sr. comentou no sábado passado, não tinha propriamente sacralidade. Agora, quando o Sr. se volta para aspectos assim e os comenta, o Sr. comenta mais no intuito de abrir em nossas almas uma cunha para que o sobrenatural entre; ou é porque aqueles objetos têm para o Sr. um valor intrínseco, ou são pontes para a sacralidade?)

Têm um valor intrínseco e são pontes para a sacralidade. E eu acentuo ambas as coisas, porque a Revolução ataca ambas as coisas. Mas, há um ponto que é delicado de entender, mas eu entendo isso assim, que é o seguinte.

* O mais bonito da realeza, e da nobreza, é a sacralidade com que o batismo banhou tudo isso

A majestade do rei, no edifício medieval inspirado pelo espírito da Igreja, a majestade do rei é uma majestade sacral. Não é a majestade de um imperador romano pagão. E porque ela é sacral, é que ela atinge o seu mais alto efeito, o seu mais alto pulchrum.

E ela é uma majestade distribuída. Porque o rei distribui florões de sua coroa aos nobres. E o nobre, na sua terra, está para o rei como o galho de uma árvore bonita está para a árvore: o nobre é um galho do rei. E o senso da aristocracia é um senso sacral. A aristocracia, como ela existe na Civilização Cristã, tem uma pitada de sacral. E é isso que é o mais bonito dela. Como a realeza tem também muito mais do que uma pitada de sacral. Isso é o mais bonito dela.

* A Igreja acrescenta um “lumem gratiae” àquilo que tinha certa beleza natural

(Sr. GD: Agora, ela é bonita porque tem esse lado de sacralidade.)

Não, ela é bonita porque a sua natureza é bonita. Agora, a isto a bênção da Igreja acrescenta um lumen gratiae, que faz ver melhor a presença de Deus ali, e o por onde aquilo reflete a Deus.

(Sr. GD: Eu pergunto por que é que para o Sr., a natureza não tinha também uma certa ponta de sacralidade? Por que é que na natureza não há esse aspecto indelével de sacralidade, menor, posto que ela foi feita por Deus?)

Você se exprimiu muito bem: há uma sacralidade menor. Não há uma ausência de sacralidade. Mas, a natureza não exprime uma sacralidade sobrenatural, que é uma coisa diferente.

* Diferença entre ser imagem de Deus (mera natureza) e participar da vida de Deus (a graça)

(Sr. PHC: Mesmo quando trabalhada pela mão do homem?)

Aí é diferente. Porque o trabalho do homem põe ali alguma coisa da obra da graça. Aí é diferente. Mas, você tomando como ela é, percebe-se nela algo que é a imagem de Deus. Mas, é uma imagem natural de Deus, e não é uma participação na vida divina, que o sobrenatural traz consigo. E, por causa disso, vocês me vêem de vez em quando elogiar a natureza.

* Exemplo do Cristo Redentor no Corcovado, ou no Pão de Açúcar

Por exemplo, o gosto que eu tenho pelo Pão de Açúcar. Vocês sabem que eu tenho uma espécie de simpatia pessoal pelo Pão de Açúcar. E que é uma simpatia veemente. Eu acho que D. Leme cometeu um erro em colocar o Cristo Redentor no Corcovado. Ele deveria ter colocado no Pão de Açúcar. Eu sei perfeitamente que o Corcovado é mais alto do que o Pão de Açúcar… ao menos imagino, meu Mário, não sei se é verdade…

(Sr. MN: É o dobro da altura.)

É o dobro da altura, eu sei disso. Mas a questão é o domínio dos mares, a colocação tem outra… Não é a altura física.

Mas, então, colocar ali o Cristo Redentor, comunicaria uma irradiação sacral, vinda das graças que a imagem difunde, que se coadunaria perfeitamente com a forma e o estilão do Pão de Açúcar — e eu vou dizer daqui a pouco o que é que me agrada tanto no Pão de Açúcar —, e faria uma grandeza natural servir de pedestal para uma grandeza sobrenatural análoga, com uma ordenação muito bonita.

(Sr. PHC: O Sr. comentou outro dia aqui conosco, a coroa de Santo Estevão, que servia de pedestal para a cruz, que aliás é uma cruz torta.)

É isso, exatamente. E toda coroa é um pedestal para a cruz.

* Beleza natural do Pão de Açúcar: como um busto aristocrático olhando para embaixo

(Sr. GL: O Sr. ia falar do porquê o Sr. gosta do Pão de Açúcar.)

A beleza do Pão de Açúcar é feita pelo seguinte. Pela forma dele, e pela posição em que ele fica colocado, etc., ele domina com muito mais majestade as suas cercanias, do que o Corcovado domina as amplitudes que se colocam em torno dele. Porque do Corcovado para o chão, há mil degraus intermediários e confusos: montanhas, e outras coisas, que constituem um environnement confuso, não se percebe bem como é que aquilo chega até o chão.

E o Pão de Açúcar tem assim um ar de busto aristocrático dominando a natureza. Eles tem duas linhas: uma linha perpendicular, e uma linha assim meio encurvada, que dão um pouco o ar do busto do homem aristocrata, olhando o que está abaixo dele, assim de cima. Ele é aristocrático nesse ponto.

E a imagem do Cristo Redentor ali em cima, estaria no seu pedestal, como ela deve estar. Depois, dominando mares que se movem, o movimento geográfico de penínsulas, de ilhas, etc., simplesmente maravilhoso. E a água! E a água marinha, de ondas, etc., tudo isso estupendamente bonito, não é?

Isto faria sentir-se muito melhor Cristo Rei ali, do que no Corcovado.

(Sr. GD: A devoção ao Sagrado Coração de Jeus teria sido maior.)

Muito maior! Ele [D. Leme] simplificou: é mais alto, põe lá. Mas, seria um pouquinho o seguinte. Se eu quisesse colocar nessa sala o Sagrado Coração de Jesus no lugar mais alto, e eu chegasse à conclusão de que era preciso pôr a imagem dele em cima daquele vaso de alabastro que tem lá. Estaria mais alto do que está aqui, eu suponho. Mas, ainda que estivesse mais alto, não está bem apanhado. Ele está melhor aqui, está mais alto aqui do que lá.

Não sei meu filho, portanto, se a explicação satisfaz.

* Sacralide do batismo num pequeno castelinho francês

(Sr. GD: Sim. Agora, sobre esse dom, sobre esse padrão de excelência, que o Sr. dizia que era um fruto da graça, o Sr. não poderia falar dele um pouco mais?)

Bom, aquele castelinho, portanto, além de tudo o que eu disse, ele tem qualquer coisa de aristocrático. Por onde ele, ao mesmo tempo, pousa amigamente no meio do jardim, mas ele é mais do que o jardim em algo. Ele tem qualquer coisa de expressão quase humana, que o jardim e o parque não têm. E nisso está posto um degrau que tem algo de sacralidade. Quer dizer, aquele é um castelinho de batizados. E isto é o néctar mais admirável da coisa, está nisso.

* Ausência de aristocrácia natural da Ilha Fiscal

Pega uma coisa, por exemplo, muito comum. Artisticamente falando, não vale nada: N-A-D-A! No sentido mais rigoroso da palavra. Mas, a Ilha Fiscal, do Rio de Janeiro. Eu não sei se deteve a sua atenção?

* Sacralidade conferida pelo último baile

(Sr. GL: O último baile…)

O último baile da Monarquia, oferecido em honra da Marinha Chilena, Marinha de Guerra Chilena, que tinha encostado aqui. Bem, o fato de haver sido ali a última gala da Monarquia, representa qualquer coisa de sacral, que está ligada ao caráter sacral que a Monarquia tinha aqui no Império. Monarquia ligada à Igreja, com cerimônia de coração do imperador, etc., continuação da Monarquia portuguesa, sacral, etc. e tal.

Fica qualquer coisa de uma nostalgia de, eu diria, de um crime cometido ali, mas que é um sangue de mártir que perfuma o ambiente. E que é a instituição quebrada, espatifada, quando ela ainda deitava o seu último sorriso. Portanto, um crime estúpido, bárbaro, do mal contra o bem.

Eu contei a vocês que eu percebi no Museu Histórico do Rio, um quadro sobre o último baile da Ilha Fiscal. Eu não sou entendido como crítico de arte, mas me pareceu que o quadro, como pintura, era muito medíocre. Mas representava o seguinte fato: a Ilha Fiscal toda iluminadazinha, etc.; a Monarquia, sob a forma de uma mulher alegórica, que subia levada pelos anjos — se não me engano era isso — para um lugar do céu, aonde havia um mundo de frades, de hábitos diversos, tocando violino, depois anjos. E a República que entrava, sob a forma de outra mulher alegórica, alegre, e com sinais de prosperidade.

Então, é a Fé que se perde nas nuvens, e a prosperidade que entra, embaixo da Ilha Fiscal. Bem, o demônio sempre que promete uma coisa, é aquilo que ele vai tirar: a prosperidade é essa que nós estamos vendo!..

Mas, ali se sente a sacralidade da Monarquia.

(Sr. GL: Agora, o Sr. poderia falar de como o Sr. vê esse movimento da graça — que o Sr. vem descrevendo — na alma do Sr.?)

* Acréscimo que a Civilização Cristã deu à aristocracia

Eu queria precisar duas coisinhas aqui, antes de ir adiante, porque depois pode ser que vocês voltem à reflexão do fato, e que não lhes fique tão claro quanto é preciso. Quando eu falei do castelo na última vez, eu não mencionei, porque não me ocorreu, esta nota aristocrática do castelo, com isto de aristocrático-sacral, que o aristocratismo tomou nos períodos da Civilização Cristã, e que é uma graça a mais, um adorno a mais, além do adorno estético, etc., do castelo. Isso eu aceno só de passagem.

* Diferença entre a graça divina que há na coisa, e a graça que há na pessoa que percebe a graça da coisa

Uma outra coisa que seria preciso dizer, é o seguinte. É que para compreender bem o que eu disse a respeito da graça que está em mim, e depois está na coisa, a gente pode imaginar a leitura de um trecho do Evangelho. A leitura do trecho do Evangelho traz consigo uma graça. Mas, é porque eu sou uma pessoa batizada — e que, graças a Nossa Senhora, vivo em estado de graça — que uma graça em mim se encontra com a graça que o texto evangélico produz, irradia. E deste encontro vem a perfeita eficácia do texto evangélico sobre a alma do fiel que retamente procura prestar atenção nele, e deixa-se modelar por ele.

É análogo o fato dessa graça em mim, despertada por exemplo pela Sainte Chapelle, a qual traz consigo uma certa graça. Quer dizer, uma coisa que é normal, que está dentro dos conceitos comuns da Igreja. Eu não vi aplicado assim a um campo psicológico, mas você vê a profunda coerência entre uma coisa e outra. E me parece interessante, de passagem, tratar dessa coerência.

* Como todo batizado sente a graça dentro de si

Agora, eu tenho impressão — eu precisaria pensar melhor — mas eu tenho impressão de que nós, batizados e que vivemos da vida da graça, nós sentimos de algum modo a graça em nós. E é uma graça que reside em nós habitualmente. Nós não a sentimos habitualmente com a clareza com que eu a vou descrever, mas a sentimos de algum modo. E nos próprios movimentos de nossa alma, nós percebemos qualquer coisa de mais ou menos sacral, que habita em nós pelo fato de estarmos batizados; e a sacralidade, portanto, que há em nós, a graça que há em nós. Nós somos templos do Espírito Santo, todo fiel é um templo do Espírito Santo. E ele, de algum modo confuso, sente isso em si.

É até uma coisa que eu tenho impressão que nos precitos deve ser terrível, é sentir e conhecer o Espírito Santo se retirando de dentro dele.

Um exemplo muito característico disso. Depois de certas confissões, a gente sai com a alma mais leve. Isso é uma expressão até corrente. Mas, não é uma leveza qualquer. É uma leveza sobrenatural, que nos faz sentir a graça.

Coisas análogas nós sentimos, mas pelo hábito nós já não sentimos tão acentuadamente, porque ficou habitual. Mas, essas coisas existem.

* O exemplo de uma pessoa que foi numa casa de perdição e sentiu a graça se afastar

Eu me lembro o caso de um rapaz me contar — um Congregado Mariano de Santa Teresinha, eu era Mestre de Noviços em Santa Teresinha, ele me contou — a primeira vez que ele foi levado por amigos, para uma casa de perdição, e pecou.

Era o primeiro pecado que ele cometia com outra pessoa. Ele deixou a entrever que pecados solitários ele tinha cometido, mas era o primeiro pecado que ele tinha cometido com outra pessoa. Era a primeira vez que ele entrava numa casa de perdição, e era a primeira vez que ele pecava com outra pessoa.

Ele disse que ele voltou para casa com a alma pelos pés, pesadíssima! E que ele tinha a impressão de que o céu era de chumbo, que o esmagava! No dia seguinte, nos outros dias, ele estava arrasado. Até que se habituou, e não sentiu mais…

O que é que é? É que sumiu de dentro dele a leveza da graça. Naturalmente ele não se confessou depois. Só muito tempo depois ficou Congregado Mariano, e voltou então à prática dos Sacramentos. Nesse ínterim ele entrou no peso da própria natureza sem a graça.

E eu creio que se nós ficássemos assim, nós correríamos o risco de perder o thau, mas em todo caso nós perderíamos a leveza da graça. E aí perceberíamos a leveza que nós trazemos em nós, e que notamos muito vagamente, muito difusamente. Isto é a sensação que o homem tem de sua própria boa ordem… [Vira a fita]

* Aplicações à vocação

(Sr. GL: No caso concreto da vocação, vê-se que é uma coisa específica.)

O indivíduo sente o thau. Eu estava contando aqui ontem que, tarde da noite, tive que fazer uma coisa horrorosa. Eu tinha impressão de, por dever de ofício, estar decapitando uma pessoa… (…)

eu não me lembro bem a que propósito entrou a história.

(Sr. GL: A graça específica da vocação seria o thau.)

Por aí você vê que o thau ficava nele, apesar de toda a infâmia. E que o thau queria de mim, ou seja, Deus queria de mim, a graça queria de mim — porque o Thau é uma graça — que eu fizesse a força, e recorresse a ele, para pedir uma saída; que foi dada a saída, e ele andou. Mas, o thau ainda existia, na alma de um miserável como esse.

* Diferenças entre diversos tipos de graças

(Sr. GL: Agora, o desencadear do processo de arquetipias na alma do Sr., se deve ao fato de existir essa graça na alma do Sr. Agora, que tipo de graça é essa, e ao que corresponde?)

Não, a resposta que eu dei a você é incompleta. Porque eu não tinha entendido bem a sua pergunta, e eu dei uma resposta, como é que é próprio da graça interna de um homem, reagir em função de uma realidade externa. Mas não é propriamente a sua pergunta. A sua pergunta é: esse tipo de graça, por onde a graça em mim reage assim diante de certas realidades externas, de maneira a despertar o fenômeno ambientes e costumes, arte real, etc., que tipo de graça é esse. Essa é que é a sua pergunta. A isso que eu não respondi, porque não entendi sua pergunta.

Então, tento responder agora, porque de momento eu não saberia responder. O meu embaraço vem do seguinte. É que eu não sei se essa diversidade de graças corresponde a tipos de graças diferentes. O que é um tipo de graça? Há diferença entre graça e graça. Mas, o que parece você qualificar de tipo de graça, é o fato dessa como que especialização da graça, para efeito de compreender, de discernir a carga de sobrenatural — ou de satánico — que pode haver numa determinada coisa.

* A graças conexas ao profetismo como “necessárias” para o Reino de Maria existir

Curioso que essa pergunta me passou pela cabeça, durante essa semana, em um dia qualquer. E eu fui levado a esboçar como provável a seguinte hipóstese: que é uma graça que participa do profetismo, porque é feita para guiar o profetismo, numa das suas operações mais fundamentais. As nossas reflexões nos mostram que, se não houver essa graça muito difundida no Reino de Maria, não vai possível aos homens se defenderem contra novos avanços de uma Revolução tendencial.

E que, portanto, a função, ou a missão de guiar a Cristandade contra os seus inimigos, discernir os inimigos, e discernir os modos de meter em combate contra os inimigos — que é próprio do profetismo —, não seria completa se, tendo sido levada a esse ponto a perfeição da arte real, não houvesse uma graça que comunicasse aos homens uma capacidade de perceber a arte real, e utilizá-la a favor do bem, a favor da salvação.

Eu acho que isto aqui é como que — mas acho sem certeza — como que uma dependência, um corolário, um anexo da própria graça do profetismo. Com algo do discernimento dos espíritos. Discernir em tal coisa, em tal outra, em tal outra, que psicologia se exprime, é algo de afim com o discernir o espírito que tem no homem. E o discernimento dos espíritos não é o profetismo, mas é uma graça altamente útil para o profetismo.

Bem, então, não se confunde com o profetismo, quer dizer, pode-se ter a graça do profetismo sem ter isso, mas é próprio à graça do profetismo, em certas missões que o profeta tenha.

* Santa Joana d’Arc, graça de profetismo sem as graças conexas

Por exemplo, Santa Joana D’Arc, de quem o Cornélio a Lápide acha que teve graças proféticas, poderia não ter isso. Porque o profetismo dela exerceu numa outra linha.

Mas, no nosso caso, o nosso profetismo é feito para combater a Revolução. E tem tudo quanto traz um auxílio natural, para tudo quanto nos torna aptos a combater a Revolução. E, portanto, como ela se exerce em nós, deve ser vista como um apêndice, uma complementação do profetismo.

* Graças ou carismas, conexos com o profetismo?

Será talvez um carisma? O profetismo é um carisma. Talvez isso seja alguma coisa carismática.

(Sr. GL: Como já está tarde, talvez continuarmos no próximo sábado.)

Sim, com todo gosto. É evidente. Enfim, isso dá um começo de caminho.

(Sr. GD: Quando o Sr. usou a palavra profetismo aí, qual era o conteúdo que o Sr. dava a essa palavra?)

Quer dizer, a graça do profetismo é a graça dada para um indivíduo guiar os bons para o bem.

(Sr. GD: Basicamente é isso?)

É isso. Mas é uma graça extraordinária, não é uma graça comum. Então, essa graça tem como dependência fundamental, ou cocmo instrumento fundamental a graça de arquetipizar.

(Sr. GD: Mas, isso é porque o Sr. vai construir o Reino de Maria. Pois, do contrário, o Sr. podia não ter.)

Podia não ter. Não é?

(Sr. GD: Está ótimo.)

Isso para mim, visto sem leitura nem estudo — e, portanto, sujeitando-me especialmente ao ensinamento da Igreja nisso —, me parece que é muito lógico. Porque você vendo bem por tudo quanto eu disse, que se eu não fizesse essa arquetipização, todo o resto do processo estava parado.

Meus caros!.. Eu vou ter o dissabor de me despedir, mas o que eu posso fazer? (…)

* Uma jaculatória para quem viaja: “Dignare me Mater ano iste, sine peccato custodire”

[Para o Sr. Aloísio Torres.]

Dignare me Domine die isto, sine peccato custodire: dignai-Vos, Senhor, me proteger, para que eu passe esse dia que está entrando, sem pecado. Você pode dizer: Dignare me Mater — Nossa Senhora — ano iste sine peccato custodire. Que Nossa Senhora lhe conceda! Você bem quanto lhe desejo isto! (…)

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