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Conversa de Sábado à Noite — 15/4/1989 — Sábado

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A Senhora Dona Lucilia, um raio de sol do Sagrado Coração de Jesus

* A bondade da Senhora Dona Lucilia, como raio do sol de Nosso Senhor Jesus Cristo

(Sr. GD: Papel da SDL na devoção que o Sr. tem a Nosso Senhor, e o papel dela na graça do profetismo que o Sr. recebeu.)

Quer dizer, inúmeras vezes — isso nem sequer se reduz a “vezes”: no contato contínuo de mãe com filho, ainda mais um filho naquela idade, era um contato a bem dizer contínuo. Esse contato contínuo depois, ao longo da vida, isso não fez senão confirmar-se — eu sentia nela alguma coisa daquela doçura, mas daquela doçura de um espírito, de uma alma elevada em altas cogitações. Não era a doçura de uma pessoa que tem um bom gênio, um bom humor, e que trata as pessoas bem. Ela tinha tudo isso, mas era uma coisa muito mais alta do que isso.

Era isso, era o bom gênio, o humor afável, acolhedor dela, mas penetrado por como que um raio de luz, que tornava a bondade dela tão à maneira da bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que eu percebia perfeitamente que era dado por Ele a ela, como se se tirasse de um sol um raio, e dardejasse com aquele raio uma alma. A alma não ficaria com todos os raios daquele sol, mas ela ficava cheia daquele raio que ela recebeu.

* Uma soledade cheia de presença

Assim, ela nem de longe tinha todas as virtudes de Nosso Senhor Jesus Cristo, a não ser em grau que um católico praticante bom deve ter. Mas, havia uma presença de elevação, de tristeza, de bondade, de perdão sem limite, de soledade que havia muito em torno dela.

Uma soledade que não era o vazio. Ela não tinha em torno dela o vácuo, ela tinha em torno dela, a soledade dela, era toda saturada, impregnada pela irradiação da bondade dela.

Eu achei muito pitoresca a cena que eu soube uma vez, do João vindo aqui com o Umberto, vê-la sentada aqui na cadeira de rodas, na Sala de Jantar, sozinha. O João deve ter sentido isso: que ela estava só, fisicamente, não tinha ningém com ela, mas ela enchia a sala de jantar…

(Sr. JC: A casa inteira!)

A casa inteira. Aliás, até hoje a casa ainda tem alguma coisa disso, dessa presença dela. Que é uma coisa que vinha de Nosso Senhor para ela, como a doutrina católica nos ensina que é mesmo a graça comunicada por Ele, transfundida para a alma.

* Conhecendo a Senhora Dona Lucilia tinha-se uma espécie de confirmação tangível de como era Nosso Senhor Jesus Cristo Mas acontece aqui que, conhecendo isso nela, eu tinha uma espécie de confirmação tangível de como era isso n’Ele. E vendo que isso era n’Ele em grau infinitamente maior, mas que era uma coisa semelhante, eu tinha uma espécie de confirmação também na Fé. Quer dizer, é verdade que Ele era assim, tanto é que ela, à força de rezar a Ele, ficou com algo disso. De maneira que uma ação assim reversível, meio em pêndulo. E olhando para as imagens d’Ele, mais de uma vez eu me lembrava dela. E olhando para ela, mais de uma vez eu me lembrava d’Ele. Mas, daí vinha uma espécie de querer bem a ela, que era um querer bem d’Ele nela. Que é no fundo, a Quem eu queria bem; queria imensíssimamente bem a ela, mas a razão principal era porque olhando a ela, eu via nela a discípula d’Ele. Sendo que é preciso notar o seguinte: nunca notei nela o menor desejo de imitá-Lo fisicamente, que seria inteiramente insuportável, intolerável! Minha amizade, meu afeto por ela se partiria em estilhaços se eu notasse uma coisa assim. Não era isso. Era propriamente o que a doutrina católica nos ensina de uma alma boa, de uma alma reta, muito sobrenatural, e que recebia esse embebimento d’Ele. * Um grande sentimento de apoio

Agora, isso foi uma coisa que me animou a vida inteira. E nos maiores reveses, e aborrecimentos, etc., me dava sempre algo que me alegrava. Era um lado de minha vida, por assim dizer um jardim de minha vida, em que nunca penetrou o oposto. E que vinha daí um sentimento de apoio muito grande.

Mas eu percebia uma outra coisa também que era a seguinte. Que ela, perante os que queriam me perder, tomava uma atitude que eu acho que nunca chegaram às falas, mas que ficava claro que, se eles me levassem para o mal, e daí resultasse uma coisa que ela visse, que ela criava um caso, mas um caso e um caso! E desses casos que fariam histórico na família! E que eles tinham medo de enfrentar. Essa energia tinha algo de afim com a bondade dela. E era energia inquebrantável de que ela dava provas em certas ocasiões: On ne passe pas!

Mas tudo isso era para mim muito formativo. Creio que de algum modo se comunicava a mim.

(Dr. EM: Prova de que a bondade era verdadeira.)

Porva de que a bondade era verdadeira. Ah, isso não tem dúvida nenhuma.

* Não se inventa um Homem-Deus. Ele é!

Eu me lembro, eu acho que contei isso a vocês, que a primeira vez que eu soube que havia gente que punha em dúvida a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu fiquei pasmo! A minha reflexão era a seguinte: “Mas eles não vêem em qualquer imagem que Ele tem que ter existido, e que Ele foi Deus? Porque isso não se inventa! Ninguém é capaz de inventar, nem esse Homem, nem esse Deus! Ou isso foi visto, ou não existiria!”

Mas é válido hem? Quer dizer, não há possibilidade de se inventar um Homem-Deus, que represente tão bem o papel que um Homem-Deus pode ter tido, e só assim, isso não pode ter sido produto de uma imaginação, só pode ter sido produto da realidade.

(Sr. GD: Só um Homem-Deus seria capaz daquilo.)

Só um Homem-Deus seria capaz daquilo, e o Homem-Deus só poderia ser assim. Mas isso não teria homem que inventasse. Não me venham com conversa, porque eu não acredito.

Tal foi um grande pintor, está bom, foi o que quiser. Outro foi um grande escultor, está bom, seja o que quiser. Outro foi desenhista, está bom. Inventar isso, não inventa!

* A comunicatividade do Sagrado Coração de Jesus

E outra coisa. Todas as imagens d’Ele, sobretudo enquanto Sagrado Coração, refletem algo que está ligado à devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e tem toda a comunicatividade de que falava Santa Margarida Maria Alacoque, que foi a que recebeu as revelações. Quer dizer, as próprias imagens d’Ele são comunicativas.

E a imagenzinha do quarto dela — vocês querendo eu posso pedir ao João para pegar lá dentro e trazer — é uma imagem que não tem valor econômico apreciável. É uma imagem boazinha, mas tem exatamente alguma coisa que a meu ver essa imagem aqui não tem.

(Sr. JC: É a mais linda imagem do Sagrado Coração de Jesus que eu conheço.)

Aquela dela, não é? Por exemplo, esta é mais fina, é feita de alabastro, etc., não é um grande alabastro, é alabastro argentino, não é o alabastro, por exemplo, daquele jarro. Mas essa é uma imagem boa. A imagem que ela tem lá no quarto dela é uma imagem que, entretanto, tem outra comunicatividade.

(Sr. GL: Mas ela rezava tanto a uma quanto à outra, porém mais àquela?)

Eu não sei também. Porque ela passava horas de manhã rezando no quarto. E em vista o quadro. O lugar dela na cama é aquele que fica junto à parede, onde há um criado mudo com a minha fotografia. Ali ela dormia. E ficava, portanto, bem no foco para o olhar.

(Sr. GL: A cama não estava como destá agora?)

Estava naquela posição. Mas virando um pouco o rosto dava para ver. Mas um movimento muito fácil, muito natural. E eu acho que ela fazia uma espécie de transfert do que havia naquela imagem para esta. E que ela rezando para esta, atribuía a esta o que tinha naquela. E rezava muito. Mas muito também aqui.

Então, essa imagem do Sagrado Coração de Jesus tem alguma coisa dessa comunicatividade, inclusive uma imagenzinha de madeira, que eu não sei quem trouxe da Europa…

(Sr. JC: O Sr. Cosme trouxe e deu para Sr. Storni. O Sr. Storni pediu que ela passasse alguns dias com o Sr. O Sr. gostou tanto que nós encomendamos várias.)

É. É uma imagenzinha muito mais modesta, feita em Paris. Está bem, um pouco dessa comunicatividade tem. É uma coisa curiosa, mas tem. E é próprio da devoção. Está tudo escrito sobre a devoção; depois, o estímulo que os Papas deram a essa devoção, etc., tudo está perfeitamente concatenado com essa minha idéia de que isso não se imaginava.

Agora, curioso, a gente olha o Santo Sudário de Turim, não tem… Tem alguma semelhança física, vê-se que é a mesma pessoa, mas não tem tanto assim. Mas tudo isso do Sagrado Coração está presente ali. A gente sabendo olhar, está presente.

A posição é outra, Ele morto… Há uma recriminação ali que é terrível, e que não é a expressão habitual do Sagrado Coração de Jesus, mas vê-se que a figura humana que aparece ali, daquela recriminação e daquele afeto, são a mesma coisa, são a mesma santidade.

* A Senhora Dona Lucilia, protetora do Grupo

(Sr. GL: Papel protetor dela, contra quem quiser nos fazer algum mal.)

Isso não tem dúvida! E se, por exemplo, alguém quisesse fazer complot contra o Grupo, ou destruir o Grupo, eu creio que ela poderia ter um papel… (…)

(Sr. GD: A gente pode pedir proteção a ela nessa linha também.)

Ah, pode e deve pedir. Deve pedir. Eu suponho que essa sacudida que a polícia deu no rapaz, já foi pedido dela. Depois, a voz interior completou, mas de fato já foi um pedido dela. Porque foi uma sacudida que dava um certo temor de Deus, e que depois veio o amor de Deus. É a impressão que eu tenho. Isso é toda a impressão que eu tenho.

* Sublimação do aspecto tristeza de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Eis o coração que tanto amou os homens, e por eles foi tão pouco amado”

Mas, no Coração de Jesus [na Igreja] tem no teto aquele quadro, não é? Uma aparição de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque. Eu me lembrava de como era o quadro, tinha visto várias vezes, etc. E me lembrava bem. Mas eu passei uns 20 ou 30 anos, ou 40 indo ao Coração de Jesus e não olhando para o quadro. Muita pressa, entrando muito diretamente em Nossa Senhora Auxiliadora, uma coisa e outra, não olhava para o quadro.

Uma das últimas vezes que eu fui, olhei para o quadro. Olhei num relance, mas deu para ver perfeitamente o quadro. E aí eu me dei conta de uma coisa curiosa. Olhando para o quadro, outrora, eu formava uma idéia objetiva do quadro: O parlatório, a grade, Nosso Senhor que aparece, etc. Depois, aquela frase: “Eis o coração que tanto amou os homens, e por eles foi tão pouco amado”, etc., Santa Margarida Maria recebendo a revelação, tudo isso estava perfeitamente bem.

Mas, em qualquer coisa daquelas proporções e daquele arranjo, está abaixo da idéia que eu tinha feito. De maneira que o quadro, quase que eu reconstruía o quadro, e me comovia com a reconstrução, imaginando o quadro, “vendo” o quadro como ele não era. Quer dizer, Nossa Senhora ajudava o meu espírito de menino a mitificar o quadro, sublimar o quadro. E essa sublimação me fez muito bem, porque fazia sentir às torrentes a graça que vinha d’Ele.

Mas, sobretudo, a graça com o aspecto que é o aspecto da tristeza. Então, “tanto amou os homens, e por eles foi tão pouco amado”. Como é que pode ser que a tristeza adorne tanto uma alma, a alma d’Ele, que até não se compreende beleza de alma em alguém que não tenha sempre um recanto de tristeza qualquer?

Então, ao contrário do modo de apreciar as coisas hoje em dia pelo comum das pessoas, vendo uma pessoa inteiramente alegre, e na qual não se note nada de fundo de tristeza, essa pessoa para mim, a priori, se anuncia como uma pessoa que não é amiga da Cruz, e na qual Nosso Senhor não tem nem sequer um cantozinho onde habite.

* O contraste da tristeza de outrora com os dias de hoje Ora, hoje em dia é o contrário: a pessoa na qual se note um pouco de tristeza é empurrada de lado, porque ninguém quer saber da tristeza. Quer saber da alegria. Quer que se seja engraçado, quer que se seja não sei o quê, e a tristeza é a grande rejeitada. Porque é rejeitada a cruz. (Sr. GL: E ela tinha muito isso.) Muito. Em grau eminente, não é? (Sr. GL: Uma seriedade triste.) Mas é uma coisa engraçada, que as coisas mais ou menos no tempo dela, e da geração da mãe dela, etc., embora fossem festivas, à medida que afundam no passado tomam ar de tristeza. E de uma tristeza digna, bonita. Coisas que não têm nada que ver com ela: aquela Duquesa de Nemours, por exemplo. A gente vê, é uma mulher que goza a vida, etc. Mas aquilo tudo passou, não existe mais. E é uma coisa que deixa assim um ar de tristeza de coisas que se foram, da civilização. É quase uma tristeza de Nosso Senhor, porque aquilo que já não é muito desejável, foi trocado por uma coisa tão inferior. Quer dizer, quando aquilo cessou de ser, Ele foi mais repudiado a fundo. Porque isso é assim. * Santa Joana de Chantal, depois de viúva, chamada a ser religiosa

(Sr. GD: Quem olha a Cristandade no estado em que está, não pode deixar de ter no fundo da alma essa tristeza.)

Não tem conversa. Bom, e o Quadrinho é a expressão disso. Agora, tem uma coisa nela que é preciso ver bem, hem? É a sociedade espiritual embebida na sociedade temporal. Porque ela está no papel dela de uma senhora. E não tem nada de uma freira, de uma religiosa. Seria muito nobre que fosse. Santa Luiza de Marillac, a fundadora do ramo feminino da Ordem de São Francisco de Paula, era viúva. E ficou freira depois de viúva…

(Sr. JC: Santa Joana de Chantal.)

Joana de Chantal, etc. Aliás, isso se deu com Santa Joana de Chantal, não com Santa Luiza de Marillac. Santa Luiza de Marillac era filha espiritual de Santa Joana de Chantal. Santa Joana de Chantal era viúva de um membro do Parlamento de Paris, uma coisa assim. Era uma boa noblesse de robe. E eu me lembro até, quando ela era viúva, mas não tinha entrado ainda nas vias da perfeição, uma pergunta de São Francisco de Sales para ela. Estavam num jantar social, e São Francisco conversando, etc., ela esstava viúva adornada, não é? E então ela em certo momento disse que era viúva. Ele disse: “Madame, então a Sra. é viúva?” Ela disse: “Sim, e não pretendo me casar”. Diz ele: “Mas se a Sra. é viúva e não pretende se casar, por que a Sra. leva consigo les enseignesenseigne se dizia, por exemplo, do anúncio — de quem quer casar-se?” Quer dizer, a Sra. toma ar de viúva que quer casar-se, porque está toda enfeitada, quando a Sra. disse que não quer casar-se.

No dia seguinte ela trocou o ornamento dela. Enfim, era uma senhora, mas ficou freira. Lucrou com isso, foi uma grande vantagem, foi uma promoção, etc.

* A Senhora Dona Lucilia, uma senhora da sociedade temporal

Mas com ela, não. Ela é uma senhora, e está na posição de uma senhora. Mas embebida inteiramente dessas graças recebidas do Sagrado Coração de Jesus. De maneira que as coisas aí se interpenetram: a condição de senhora e a condição de uma alma dada inteiramente à piedade, à devoção, etc.

(Sr. GL: A gente olhando para aquela foto dela no quarto do Sr., em São Bento, eu estive imaginando que ela ficaria muito bem com um traje do século passado, com uma saia balão, ou com um traje medieval, ela não precisaria modificar em nada a fisionomia. Posta em qualquer momento histórico, ela ficaria muito bem.)

Não. Qualquer, não. Hoje em dia não.

(Sr. GL: Não, perdão, desses que eu mencionei.)

Momentos históricos anteriores.

(Sr. GL: Exatamente. Agora, deu-me a impressão de que ela abarca um grande período histórico. O que seria isso que ela tinha, e que a fizesse abarcar tanto, sendo inteiramente ela?)

É que, a meu ver, o conceito de senhora morreu, ou começou a morrer com a geração dela. A geração dela ainda usou os atavios, os arranjos, etc., num grau mínimo que visavam fazer sentir que uma senhora era senhora. Nas épocas anteriores ainda mais intensamente. Mas na época em que ela viveu isso ainda havia. E nas épocas posteriores, começou a senhora a ser obrigada a usar adornos, etc., que já contestavam o senhorio. E que, portanto, ficariam mal para ela. De maneira que ela não poderia caminhar na História sem se desmentir.

Agora, porque isso era uma característica muito marcada nela, na medida em que ela ficasse mais cercada das condições de senhora, e do aparato de senhora, mais ela estaria normal. Por causa disso.

* Transcendendo a moda e levando um tule, como quem leva um ambiente atrás de si

E naquele quadro, o quadro para quem conhece as modas e as coisas do tempo, é o seguinte. A moda e tudo era daquele tempo; mas que o modo de usar, a atitude da pessoa, e sobretudo a expressão do olhar, eram mais antigos do que a moda. E que ela transcende de algum modo a moda.

Mais ainda, aquele tule com que ela se fez representar; é curioso, porque as senhoras não usavam aquilo. Foi uma coisa que ela imaginou para dar…, e que ela julgava que era inteiramente a expressão dela. E tem qualquer coisa de vaga reminiscência do estilo antigo, de que as senhoras ou com cauda, ou com balão, ou com qualquer outra coisa, constituiam um ambiente em torno de si. E aquele tule — que não é um pano finíssimo, não é um brocado nem um damasco, é um pano comum ao acesso de qualquer moça — aquele tule tem qualquer coisa que substitui isso, mas que ainda prolonga isso: é o ambiente que a senhora traz em torno de si.

E o tule está muito bem calculado, porque tem exatamente o tamanho que deve ter, a curva que faz de uma mão para outra é muito bem como deve ser, e depois, veja o fato, na fotografia se percebe bem que é tule, não há dúvida nenhuma. E tule é o único tecido que, sendo carregado, poderia permitir o gesto leve da mão, não dando a impressão de que estava carregando um pano pesado.

E você talvez não calcule como o quadro perderia sem o tule. Agora, aquele tule é um símbolo de um dos aspectos da alma dela. Ela não quis…, acho que ela fez aquilo intuitivamente, instintivamente.

* A acuidade do espírito francês no fotógrafo de Paris

Mas, é tudo. Por exemplo, ela era um pouco baixa. Eu já contei várias vezes que eu até brincava com ela a esse respeito. Mas na realidade, já no tempo dela, senhoras baixas como ela eram frequentes. Mas ela era um pouquinho baixa. Mas o tamanho do degrau em que o fotógrafo a pôs — era um fotógrafo inteligente, não preciso dizer… (…)

Ele interpretou, o fotógrafo a interpretou mutíssimo bem. Ele arranjou para ela um degrau exatamente do tamanho necessário para ela ter a estatura do olhar e do porte dela.

(Sr. PHC: O Sr. dizendo, a gente compreende melhor o quadro agora.)

É, algumas impressões que o quadro causa, lucram em ser explicitadas. Eu inúmeras vezes olhando para aquilo, aos poucos, fui explicitando. E aquele fundo que representava a entrada de uma ópera, uma coisa assim grandiosa, uma coisa palaciana sem ser um palácio, é um teatro-palácio, como era a Opera de Paris, por exemplo, o fotógrafo arranjou… Aquilo é um fundo de pano, uma coisa pintada sobre pano, evidentemente. Mas é um dom que os franceses têm, de uma compreensão das coisas, extraordinária! É só eles!

Ela está colocada ali, em relação àquele fundo de quadro, bem na posição em que está para não parecer pose, uma pessoa que se pôs direto na vertical do arco assim… Está um pouco negligé, um pouco por acaso, mas é o por acaso idealmente escolhido pelo olho francês, para ficar bem ela como ela era. Aquele homem a interpretou, interpretou inclusive a virtude dela, muito bem. Não sei se concordam comigo, ou se entra entusiasmo de filho nisso?

(Sr. GL: Não, está muito bom.)

Mas, aí, digamos de passagem, entra uma coisa talvez mais natural do que sobrenatural, mas que Deus deu à França, mas por onde vocês percebem a acuidade do espírito francês. Vocês vêem, esse é um simples fotógrafo. A gente vê que era fotógrafo muito bom. Quer dizer, devia ter sido, não sei que fotógrafo era, mas devia ter sido um fotógrafo muito fino daquele tempo. É um mero fotógrafo.

Você pega esse quadro de Vovó que está aqui, como penetração psicológica, é a mesma coisa. Ele pegou inteiramente como ela era, como é que ele tinha que pintá-la. E tudo, por exemplo, o 3/4 em que ela está, é o 3/4 em que teria que estar.

(Sr. GL: Ela de saia balão, por exemplo, no Ancien Régime, ela corregiria em si o que o Ancien Régime tinha de ruim. Agora, é pelo fato de ser uma senhora, ou é uma clave de espírito?)

Não, é muito mais uma clave de espírito.

* A clave de espírito da Senhora Dona Lucilia, uma clave própria à Idade Média

(Sr. GL: O Sr. não poderia dizer algo sobre essa clave de espírito?)

Eu acho o seguinte. Que ela estava permanentemente meditando, estava com o espírito posto numa determinada clave, que tinha muito a ver com o Sagrado Coração de Jesus; mas que ela não dizia, nem sabia dizer; mas que se irradiava de toda a pessoa dela. E que lhe dava aquela doçura discreta de personaliadade, mas também uma profundidade, que exatamente o Ancien Régime não comportava, e detestava.

De maneira que se você a tivesse que imaginar vestida “a la” Ancien Régime, você teria que imaginar de cabeleira empoada — aqui o tempo empoou a cabeleira dela — de cabeleira empoada. E seria muito malaisée imaginá-la com uma peruca artificial. Teria que ser com o próprio cabelo dela, arranjado de um modo que não discrepasse muito da coisa do Ancien Régime.

Agora, nas coisas da Idade Média muito mais sérias, você poderia imaginá-la melhor. E aí ela quase que estaria in sede propria, na Idade Média.

* Vivendo no Romantismo e trancendendo a moda

(Sr. GL: Por essa clave?)

Por essa clave, mas também por uma outra coisa. É que eu já disse várias vezes que o Romantismo — não considerado enquanto filosofia, mas enquanto capítulo da história das almas — o Romantismo sentimental, etc., do tempo dela, que marcou-a de algum modo, tinha em alguns aspectos uma seriedade, que é a seriedade dela, e que representa o aspecto gótico do Romantismo. Havia veios bons do Romantismo, e esses veios bons tinham qualquer coisa de goticizantes. Esse é o negócio.

E aí você encontra, por exemplo, você pode imaginá-la na Igreja de Notre Dame rezando, estaria inteiramente à vontade, etc.

Agora, naquela fotografia dela, aquilo vai tão bem com ela… Porque propriamente [é] a fotografia do tempo dela, e onde ela era, era aquilo. Ou então, ela sentada num banco de madeira, pensando. Bem, mas é de tal maneira ela, que a gente não poderia imaginar que ela vestisse os trajes posteriores, como ela chegou a vestir. Porque uma adaptação ela teve que fazer. Ela não poderia, por exemplo, ir ao dentista vestida como ela está naquela fotografia. Mas era uma adaptação de tal jeito, que a alma dela como que ignorava o vestido que ela estava vestindo.

Naquela fotografia ela não ignorava. Ela percebia que era uma harmonia com ela, e se sentia bem. Nos vestidos dela mais recentes, ela ignorava e prolongava o estado de espírito com que ela está até aqui. Isso era o modo de ser dela.

Agora, ela se sentia tão bem aqui na casa, e nessas salas, etc., porque isto aqui ecoava bem, condizia com ela inteiramente, adequadamente, etc. Isso é o negócio. [Vira a fita]

Se eu disse isso, eu não me exprimi bem. Ela não me contava como era Nosso Senhor. Falava d’Ele… Mas no modo de ela dizer: “O Sagrado Coração de Jesus”, ou “rezei ao Sagrado Coração de Jesus”, ou alguma coisa assim, “eu fiquei muito aflita, dirigi-me a Ele”, nisso entrava implicitamente uma descrição d’Ele.

* Um agradável timbre de voz, com um vocabulário abundante e correto

(Sr. GL: Não é tão fácil pegar o ponto mais alto disso.)

Não, não tem dúvida. A questão é a seguinte. Era preciso ter pego a voz dela, que nós não pegamos. O João ouviu, Poli ouviu também, Edwaldo creio que ouviu também. Era de um tom… Por exemplo, ela não falava alto. Mas não falava baixo. Ela tinha um aveludado da voz, mas um aveludado tão sonoro, tão meigo, que poderia até certo ponto ser comparado a um harmônio ou um órgão. Uma comparação. Não é dizer que fosse uma voz de um timbre próprio a uma cantora, nunca.

(Sr. GD: Mas tinha musicalidade.)

Tinha uma certa musicalidade, não de artista: psicológica. O timbre de voz era agradável, sem ser extraordinário. Mas, tinha qualquer coisa de psicológico dentro disso, que exprimia tão bem tudo quanto ela sentia, o timbre de voz, a impostação, o português… Não era um português ornado. Eram as palavras da vida corrente, mas sem nenhum erro.

O único erro de português que eu peguei nela, e eu taquinait a ela um pouco com isso, ela não se incomodava: ela não dizia suspensórios, ela dizia “suspensóiros”. Que eu não tenho certeza que talvez no tempo dela se dissesse assim. É possível. Mas enfim, para o português do meu tempo está errado. É o único. Eu não peguei um erro de português nela a não ser isso. Frases de uma construção muito simples, mas inteiramente corretas. Vocabulário fácil. Você não a deve ter visto uma vez só à procura de uma palavra. Mesmo no estado de semi-lucidez dela, nenhuma vez à procura de uma palavra. Aquilo ia com naturalidade.

Mas ela não se apressava para contar, não corria, e não amarrava, devagar. Era uma velocidade exatamente adequada ao que conviria, mas perfeitamente adequada.

Por exemplo, no modo amável de tratar as pessoas, ela era muito amável. Mas ela conservava quand même uma certa coisa, por onde não era possível faltar com o respeito a ela. Nem passava pela cabeça faltar com o respeito a ela. Não passava pela cabeça.

* O olhar da Srª Dª Lucilia

E a voz dela, e o olhar dela, o olhar dela era um olhar aveludado também. Ela no fim da vida tinha uma qualquer coisa de esbranquiçado nos olhos, que em aula de medicina legal eu aprendi que era uma coisa como catarata… Talvez eu esteja com isso também, não sei, eu não olhei para os meus olhos… Há isso, não é? A córnea, não sei o quê, não é?

(Dr. EM: Pode ser que seja um pouquinho de catarata.)

Ela tinha catarata. Enfim, tinha qualquer coisa… Não sei se você chegou a notar, João, um pouco de esbranquiçado nos olhos?

(Sr. JC: Nunca cheguei a observar assim…)

Bom, mas que não prejudicava o colorido marron muito escuro dos olhos dela, e a luminosidade que os olhos tomavam conforme o grau de intensidade com que ela queria caracterizar, marcar o que ela dizia. Quando ela estava alegre, porque gostava da pessoa, era uma luz tão meiga, tão envolvente; quando ela tomava a coisa muito a sério, estava impressionada, era um… eu vou usar palavra alemã, uma qualidade que eu diria que é um dunkem [?] — é “escuro” em alemão — tão carregado, tão definido. Depois, o percorrer com o olhar de uma coisa para outra, naturalmente, era um movimento tão temperante, que parecia com o andar e com os passos dela, que eram passos rápidos, até um pouco dado a corridinho, mas que era muito, apesar disso, muito compassado. Eu não sei como explicar essa contradição, mas era assim.

* O sinal e a certeza de que ela não estava no purgatório

Uma coisa que me comoveu, foi exatamente por ocasião da Missa de 7º dia dela, que eu pedi a Nossa Senhora, quando ela morreu, que me desse a certeza de que ela tinha saído do purgatório. Porque evidentemente me atormentava muito a idéia de que ela pudesse estar sofrendo no purgatório. E quando houve aquele fato daquele raio de luz que penetrou sobre o pano mortuário dela na Igreja, o modo pelo qual aquele raio de luz, de repente, se pôs a mover e saiu, era como se ela saísse de dentro do meu campo visual. Com aquela ligeireza… Eu não sei explicar como era.

Ela era muito cheia de corpo, com a velhice sobretudo se tornou assim, muito cheia de corpo, mas ela tinha o passo ligeiro. Mas o passo ligeiro era um passo calmo, não era um passo de corridinha, vulgar. Era um passo calmo, era o passo de uma consciência leve. Pode carregar qualquer peso, não carrega o do pecado, nem carrega o peso — que é uma coisa que pesa, hem? — da raiva, do ódio, da inveja, essas amarguras assim… (…)

Daquele jeito mesmo. E assim como aquele raio, por assim dizer, se perdeu dentro da parede, assim também ela saiu. Mas é uma coisa que era tão ela, que era um último carinho.

(Sr. JC: Dois detalhes interessantes. Um é que a luz incidiu sobre o centro da cruz, que era de orquídeas, só o centro. O resto eram rosas bordeaux.)

Depois, outra coisa, João, se você me permite interrompê-lo, porque eu notei muito isso tudo, a luz cresceu em intensidade, ali, enquanto batia sobre a cruz. De maneira que em certo momento, aquelas flores ficaram carregadas de intensidade luminosa.

(Sr. JC: Davam idéia de que estavam iluminadas por dentro.)

Por dentro, é isso. Você chegou a ver? Você estava aqui? (Sim.) Você viu isso?

(Sr. GL: Claro.)

Depois, foi lentamente se evanescendo, mas com a suavidade que ela punha nas transições dela. Depois saiu andando.

(Sr. JC: Outro detalhe é que foi durante o período da Consagração.)

Que bonito, não é? Aquilo é uma coisa que eu nunca me esquecerei! É uma coisa que é preciso ter visto. É uma coisa extraordinária. Vocês dois estavam lá, viram alguma coisa?

(Sr. Poli: Estava lá, mas não vi.)

Você viu, Edwaldo?

(Dr. EM: Também não vi, infelizmente.)

Você não estava lá, nem Paulo Henrique, não é?

(Sr. GD: Eu estava, e vi de longe. E houve um certo comentário asssim…)

Mas houve comentário de uns com os outros na igreja sobre isso?

(Sr. GD: Houve sim.)

De maneira tal, que não creio que se possa falar de um milagre, mas é uma coisa onde o sobrenatural estava patente. Um sinal, claramente. Claramente um sinal. Propriamente o que eu disse a Nossa Senhora foi uma outra coisa: “Eu tenho consciência de ter sido para com ela muito bom filho. Mas, eu invoco minha condição de bom filho para vos pedir que me deis um sinal de que ela não está no purgatório. Em nome do bom filho que eu fui, que eu sei que Vós apreciáveis, eu Vos peço isso”. Chegou na hora…

Meus caríssimos, agora…

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