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CONVERSA DE SÁBADO À NOITE — 18/3/89 — Sábado

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18/3/89 — Sábado A aura da mística ordinária e o tal enquanto tal

* Um tipo humano modelado pela santidade na profissão …era pequena burguesia, um padeiro na época em que não havia essas grandes padarias empresárias de hoje, mas um padeiro tinha a sua padaria, etc. Então, um padeiro, depois um alfaiate, etc., etc., todos eles tinham uma certa coisa por onde ser alfaite trazia certa mentalidade, certo estado de espírito, certo modo de ser. E quando se dizia: “Fulano é o alfaite da cidade (da cidadinha)”, entendia-se que era de um certo modo. Bom, isso naturalmente ia até o rei. Bem, isso correspondia ao seguinte. Você imagine essa gente toda exercendo a profissão respectiva no estado de graça, uma certa aura da profissão, por causa da santidade do trabalho, e da santidade para a qual ele estava trabalhando, santidade da própria família, etc., etc., fazia com que também nascessem uns tipos característicos. * Profissões que pelo cerimonial que possuem, pedem santos que as desenpenhem* Profissões que pelo cerimonial que possuem, pedem santos que as desenpenhem E isso não era alheio a um fenômeno de mística ordinária. De maneira tal que havia uma graça para cada coisa. Então, por exemplo, tomem um reitor de universidade: Reitor Magnífico. Vocês vêem até hoje — na Europa, na América naturalmente tudo isso é mais poca, assim mesmo na América do Norte fazem coisas — tem uns colares ótimos, umas rendas, uns chapéus, umas coisas assim que caracterizam aquela função na sociedade. E que fazem ver o que é que aquela função seria se ela fosse exercida por um homem de grande valor pessoal, mas sobretudo um santo. E todo o cerimonial, todo o protocolo, quase que fica a pedir por aparecer um santo que encha aquele molde que fica presidindo a universidade. (Sr. PHC: Até o título dele: “Magnífico”.) Vossa Magnificência. Magnífico Reitor. * Uma sociedade ordenada para o tal enquanto tal Bem, e então você toma mesmo em épocas muito afastadas já da Idade Média. Você ainda encontra isso. Eu não sei na geração de vocês, sobretudo você que não é brasileiro, como é que se chama um romance de criança, um romance não, uma poesia de criança que em alemão chama “Max und Moris”, em português “Juca e Chico”. Eram uns meninos terríveis, que faziam toda espécie de desordens. Então tinha uma viúva, eles pegavam as galinhas, tiravam as galinhas, etc. Depois tinha o sacristão. O sacristão, depois de atendido todo o serviço da igreja, ia para casa para fumar. Então punham pólvora no cachimbo do sacristão, e explodia o cachimbo. Era assim uma espécie de malfazejos. E acabava sendo que eles quiseram fazer uma coisa qualquer com o moleiro, e acabaram caindo numa máquina do moleiro, não sei o quê, acabaram transformados em pães! Bem, era uma história alemã, em alemão era encantador, “Max und Moris”. Mas tinha as ilustrações, eram muito típicas. O sacristão, era um tipo que era de sacristães do mundo inteiro. Nunca ouvi falar depois de sacristão europeu, sem me lembrar do sacristão do “Max und Moris”. Mas a viúva Chaves também. Então, a coisa da viúva com as galinhas começa assim: “Também gostava de aves a viúva Chaves.” E aparece a viúva Chaves cuidando das suas aves. Como era uma viúva, com era a viúva Chaves, como era uma viúva Chaves que gostava de aves… Era toda essa vidinha minúscula, mas com esses tipos característicos muito marcados, ainda no fim desse século. Você vê como essas coisas ficaram na Europa. E isso significa uma espécie de… se você quiser, usando uma expressão que é forte demais, bonita demais para o que eu vou dizer, uma espécie de esplendoração da sociedade, onde toda a sociedade brilha de um discreto esplendor próprio, que nas Monarquias ou nas cidades livres governadas por burgueses, toma aquele esplendor próprio do poder soberano. Mas que toda reluz dessa coisa, toda ordenada no fundo ao tal enquanto tal. Porque essa gente é gente muito reverente da Igreja, muito reverente da coroa, e muito reverente da nobreza, embora tendo a sua própria vida, e até tendo uma grande autonomia dentro da sua própria posição. * A Revolução Francesa e o desaparecimento da aura Mas qual é a trinca que houve? A partir mais ou menos, vamos dizer, isso foi morrendo, morrendo, morrendo, no fim, quando chega pouco antes da Revolução Francesa, todo mundo está querendo ser nobre, e a aura dessas outras profissões desaparece para só querer ser nobres. Mas depois vem a Revolução Francesa e quebra a aura da nobreza. E acaba aparecendo uma sociedade sem nenhuma aura, com a vidinha de todos os dias sem aura, que as pessoas já nem compreendem o que é essa aura, e que gostam da coisa sem aura. Uma vida desaurada. Bem, e à mingua de melhor, como não conhecem as magnificências dessa aura, as pessoas se dão efetivamente a uma vida, que é uma vida terra-terra, e sem horizonte nenhum, porque não cabe aquilo que é o fundamental da coisa, que é a aura como prazer, como verdadeiro gosto da sociedade. * O mundo da mística ordinária, a arqui realidade Bem, e acontece que — não me queiram mal, eu falo com paterna franqueza — que há pessoas ainda atrasadas que tinham em torno de si uma aura muito grande, e que concebiam a sociedade com aura, e falavam e auravam tudo aquilo que contavam, em função do que viviam. Mas era um introduzir-se numa espécie de coisa que um bobo diria que era uma irrealidade. Mas os bobos dizem bobagens, não é? Era uma espécie de arqui-realidade em que as narrações, etc., etc., introduziam, e que era o mundo da aura, e o mundo da mística ordinária, mas abundante, escachoante. E que fazia com que as pessoas que tivessem muito disso, fossem preparadas para o tal enquanto tal. E, pelo contrário, as pessoas sem nenhuma saudades dessa aura, ou sem nenhum gosto dessa aura, ficam indignadas com a aura quando a aura entra pelo seu caminho, porque as tira do gosto concreto, e real [irreal ?], etc., etc., da vida quotidiana. * A aura das vésperas do Natal Eu me lembro, em certas ocasiões, mas sobretudo — cada um tem suas misérias… — quando eu era levado pela minha mãe ou pela Fraulein para casa de brinquedos para escolher brinquedos, naturalmente para a vida de um menino é um ponto alto. Quando você vai à casa de brinquedos escolher brinquedos para você, é um ponto alto, não é? Então, para mim era um ponto alto! Havia sobretudo uma casa alemã, que deveria ter sido de judeus, Casa Foux — “foux” quer dizer raposa — na rua Libero Badaró. Eu me lembro ainda perfeitamente as divisões internas da Casa Foux, descia uns degraus, tinha tal balcão, aquilo… Eram brinquedos alemães… você está vendo bem as minhas consonâncias! Tanto mais quanto, suprema delícia, eu não sei bem como é, apareciam de vez em quando pelo meio brinquedos franceses. E essa síntese franca-alemã você vê que eu voava para isso! Bem, em geral o dia mais marcante para isso era quando, vencida ou removida a lenda de São Nicolau, eu ia eu mesmo escolher os meus brinquedos. Então, “huuuuu”, era véspera de Natal, já tinha havido o meu aniversário, daí a pouco seria Natal; então era a escolha de meu presente de aniversário, escolha de meu presente de Natal, e não sei mais o quê. A cidade inteira estava dominada por um aura de Natal. Pode se dizer que a gente passando diante de lojas sentia o cheiro do pão de mel bom. Havia uma coisa que talvez quem não tenha vivido nesse tempo não tenha acompanhado, não tenha conseguido seguir, mas que era verdadeiramente interessantíssimo. * Sr. Dr. Plinio: no gostoso do luxo, a opção pela aura E que dava em última análise numa espécie de assim… que em determinado momento a aura se deslocava da alma para ficar no gostoso do luxo. Bem, mas você note que o luxo naquele tempo ainda era quand même uma coisa que era em ordem natural uma imitação da aura. (Sr. JC: Proximíssimo da aura.) Proximíssimo da aura. E esse luxo sem aura, e tinha voragens. E eu percebia que eu estava abandonando alguma coisa que eu não devia abandonar. Nossa Senhora me ajudou, de cada vez eu me brecava e me afastava disso, e me punha na linha da aura. Mas você está vendo que há muita criança que nem se dá o trabalho de… Quer dizer, vão nessa onda, mas às torrentes! Eu percebia em torno de mim, vão nessa onda às torrentes. E o que Nossa Senhora me protegeu muito foi de eu pegar, por exemplo, todas as coisas européias, e ser capaz de vê-las no seu delicioso, no seu magnífico, mas tendo no alto a aura. E todos os comentários que eu faço da Europa você deve perceber que no fundo tem a aura. * A aura e a propensão para o tal enquanto tal

E é esta visão da vida continuamente com aura que constitui o suco da propensão, da capacidade de ser tal enquanto tal. (…)

do tal enquanto tal é: quando a pessoa é fiel a essa atmosfera de aura, ela é naturalmente levada a ver a Igreja Católica de modo especial. E a primazia da Igreja Católica, e o conceito de santidade, de castidade, de tudo o mais, é todo ele dourado por esse sol desta aura, que é propriamente o vero, a graça da mística ordinária que nos faz ver, que nos faz sentir.

Mas depois, tomando a ordem temporal, a ordem temporal embebida por isso tem como pináculo, por exemplo, São Luiz; Santo Henrique, São Fernando, e esses, aqueles, aqueles. Se quiserem, D. Sebastião de Portugal no seu mito, na sua legenda, etc., etc. O que faz com que os povos vivam em parte de legendarizar a sua história, porque quando a pessoa vive uma grande vida, ou em determinado momento correspondeu muito à aura, a aura passa com o nome dela para as gerações futuras. E ela fica coroada até o fim do mundo por essa aura. O caso da Imperatriz Zita tem algo disso. E acontece…

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