Conversa
de Sábado à Noite – 25/6/1988 .
Conversa de Sábado à Noite — 25/6/1988
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O modo de transpor sua pergunta para o plano operativo é o seguinte: “Em vista do que o Sr teve que fazer, tem que fazer e terá que operar, como se relacionam os atributos e as qualidades que o Sr. tem? Qual é a adequação que uma coisa tem com a outra?”
Para essa pergunta era preciso não tomar apenas assim o profetismo em tese, mas o profetimos como eu o encontrei, quer dizer, com a Revolução largamente vitoriosa. Não que ela tivesse vencido tudo e destruido tudo, mas que, potencialmente tudo estava destruido; o que ela faltava destruir não tinha condições de resistir. E a vitória final dela, segundo os planos comuns da graça estava assegurada. Era irremediável. Faltava à causa da CR praticamente tudo. Não que ela nã tivesse algumas coisas, mas é que essas algumas coisas eram tão desproporcionadas em relação ao adversário que ela tinha que enfrentar, que era como que nada.
* O discernimento dos espíritos de toda a Civilização
Agora, a mim foi dado, pela misericordia de Nossa Senhora, de discernir, de perceber todo o jogo dos espiritos, das almas, do meio em que eu vivia, mas percebendo ao mesmo tempo que esse meio era uma amostragem como mil outros poderiam fazer, de um meio muito mais amplo que é o circuito da Civilização Ocidental, dentro da qual está a América do Sul, e portanto o Brasil. E que nessa amostragem, eu de um modo geral, completando o que eu aqui via com algumas leituras do passado, algumas leituras do presente, me era dado fazer um quadro genérico, prudente, firme, do futuro.
* A dimensão da luta: lutar na terra para mover os Céus
E me colocar diante da seguinte tarefa em concreto. Procurar salvar tudo quanto existisse, coordenar e aglutinar tudo quanto existisse, na luta contra aquilo que estava vencendo. Aproveitando nessa luta pontos fracos daquilo que a Revolução tem. E aqui entra uma contestação. Quer dizer, eu de algum lado via — e graças a Nossa Senhora vejo — a Revolução com todo seu poder, mas eu sustento que ela é muito mais fraca do que ela faz crer. E que se os CRs se convencerem disso, e convencerem de quais são esses pontos fracos, e deitarem os seus tiros contra esses pontos fracos adequadamente, eles podem conseguir resultados muito mais expressivos do que se poderia pensar.
Portanto, não me parece que seja possível — salvo o em teoria de guerra chama‑se “os imponderáveis da guerra” — que fosse possivel vencer. Mas era possível alterar sensivelmente o quadro da situação.
Isso acompanhado de uma ideia de que, tendo em vista o que havia de um pouco bom, e um pouco por cá, por lá e acolá do mundo, se isso se aglutinasse e fosse possivel agir, diante da justiça divina o aspecto criminoso do mundo decresceria, e isso solicitaria a Providencia, enfim comprazida, a intervir. De maneira que esta ação daqui —que era de fazer, de alterar sensivelmente o quadro — não era de si decisiva no plano natural. Mas no plano sobrenatural ela poderia obter da misercórdia divina uma intervenção decisiva. E com isso a vitória era possível.
Estou descrevendo as razões pela quais eu teria fruto se lutasse, para explicar que eu devia lutar e como era a luta que devia ter, para depois fazer a proporção entre as qualidades e a minha tarefa. Eu estou começando um pouco de longe, mas depois essas coisas ou são dessa altura ou não se trata. O melhor meio de ganhar tempo é sempre a grande introdução. Eu estou na introdução.
* Para isso, era preciso partir de zero: fazer católicos, contra‑revolucionários e lutadores
Para fazer isso, haveria mais ou menos tudo o que fazer. Porque havia um ação individual a desenvolver, para recrutar, formar e conduzir à ação os primeiros com que eu tivesse contato. Ação individual que era de formação dos individuos enquanto CRs. Portanto, antes de tudo, católicos apostolicos romanos eximios.
Havia uma segunda ação em segundo lugar: de forma‑los com uma compreensão particularmente nitida do carater fundamentalmente anti‑catolico da Revolução, e do carater fundamentalmente católico da Contra‑Revolução
Então, com isso partiria para uma outra coisa, que era dar‑lhes a eles o amor da luta, a impossibilidade de viver fora da luta, a execração da ordem revolucionária, e portanto fazer deles lutadores.
Então, fazer o católico; o CR na medida em que se pode distinguir do Católico; e o lutador.
* Era preciso ter a teoria da luta e de Nossa Senhora intevindo na luta
Isso aí são uma série de ações de carater individual. Depois, de outro lado, para conduzi‑los à luta dar‑lher uma teoria, e era preciso ter a teoria e dar a teoria de como se combate a Revolução. Os lados fracos dela, os lados fortes nossos, não apenas os nossos lados fracos e apenas os lados fortes dela. Para podermos alterar o quadro.
E finalmente essa teoria de Nossa Senhora enfim comprazida com o mundo pela mudança do quadro, e interveniente.
Isso, por pouco que voces se dêem o trabalho de metodizar o que ouviram de mim, encontram isso. Estou aqui apenas dando mais claramente, para filhos desejosos de se informarem. Eu estou dando mais claramente.
* Como entrou Fátima
(Dr.EM: Isso se encaixa maravilhosamente em Fátima, não é?)
É fora de duvida. Eu estou pensando em Fátima durante todo o tempo que eu falo, porque é exatamente o encontro. Houve três grandes encontros com Nossa Senhora. Primeiro foi Nossa Senhora Auxiliadora; em segundo lugar foi S. Luis Grignion de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção, etc., e o terceiro encontro foi Fátima.
(PHC: A idéia da BG o Sr. já a tinha antes de conhecer Fátima.)
Já! Mas Fátima foi uma confirmação. Quer dizer, o que estava na minha cabeça é que se os “imponderáveis da guerra” jogassem do nosso lado, poderia não vir a BG. Fátima encontrou‑me pensando como ela. Ela foi uma prodigiosa confirmação. Mas os que eram membros do Grupo do Legionário naquele tempo, devem lembrar‑se do encontro maravilhado com Fátima, porque confirmava o que eu dizia.(…)
* Para cada etapa dessa tarefa esmagadora precisava ter as aptidões ‑ Umas jorravam, outras foi preciso procurar
A cada uma dessas etapas corresponde um tipo de aptidões para as quais eu tive que procurar em mim, para ver se encontrava o correspondente. E encontrando, adaptar, formar, adequar, etc., levar até o maior ponto que podia, para desenvolver uma tarefa realmente esmagadora. E a tarefa é gigantesca.
A cada uma dessas etapas correspondia um certo grupo de predicados, que eu sentia que era necessários. E que eu teria que procurar em mim, para ver se eu tinha, e adaptá‑los, ajeitá‑los para aquela tarefa. Porque ninguém nasce com seus predicados já ajeitadinhos para uma tarefa. Tem que limar, tem que ajeitar, é evidente.
Não é dizer que cada uma dessas aptidões eu procurei em mim. Algumas jorravam para fora de mim ao encontro das circunstancias. E outras eu tive que procurar. Mas de um modo ou doutro eu tive que identificar todas, e arranjar todas, para poder agir.
Agora, não sei se voces querem que eu enumere as aptidões em função das várias etapas, que era para onde eu ia.
(GD: As que jorravam e as que o Sr. teve que procurar.)
É. Isso me permite um fio.
* As qualidades do trato
Certas qualidades de trato, quer dizer, trato ameno, trato afável, um trato naturalmente desejoso de respeitar — naturalmente ser respeitado também —, de tributar toda a honra a toda pessoa que eu conhecia, a alegria de admirar! Desde pequeno fui veementemente impelido à alegria de admirar os outros, as qualildades que tem, etc., etc. Tudo isso é muito herdado do feitio materno, e com alguns predicados também sociais da minha familia materna. Eu já tenho falado disso a voces, não preciso estar descrevendo, está mais ou menos evidente.
* Como eram estas qualidades na SDL
Ao lado desses predicados Mamãe tinha também para muitas coisas muito jeito. Para agradar ela era incomparável; para aliviar um sofrimento, para dar animo a uma pessoa que estava abatida, para fazer sentir uma presença acolhedora, afável, etc., mesmo mantendo‑se na posição um tanto silenciosa, na vida de uma casa marcada por um homem muito barulhento, e que ela queria que fosse assim, ela não procurava se sobrepor a isso nem nada, ela admitia o fato como era. Então, qual era a posição dela junto a um filho tão barulhento e tão ruidoso, tão vistoso, como é que tinha que fazer?
Tudo muito bem ajeitado, muito bem posto, o papel dela como interlocutora muito bem adaptado, etc. Mas depois também outros parentes, possuindo muito bem a arte do trato, a arte da interlocução. E essa arte trazendo consigo uns certos dotes de saber perceber quem são as pessoas na ordem das coisas, ter uma noção muito exata de quem é quem. E portanto como tratar a pessoa de acordo com o que razoavelmente ela pode querer dentro do quem é quem. E, portanto, sempre tratando um tando melhor do que o “quem é quem” exige, mas tanto quanto o “quem é quem” permite, e não indo além do “quem é quem”. É uma condição para a pessoa mesma sentir na gente a autenticidade do trato, a pessoa não se sentir inflada como um balão e levantada pelo ar, mas compreender que lhe está sendo dado conhecr que é mais do que às vezes supunha, mas que é mesmo. E consolidá‑la nessa posição, honrosa. E tudo isso era muito de Mamãe, e de um modo ou doutro da familia materna.
* A conversação como elemento de convivio
E de outro lado uma propensão — que já não era tanto de Mamãe do lado natural, mas era muito do lado sobrenatural — a, pela conversa, a atrair, a agradar, a fazer do convívio um elemento fundamental da existencia. Ela tinha do lado sobrenatural mais do que o lado natural. Tinha do lado natural alguma coisa que valia bem, mas não era tão geral quanto outros membros da familia dela.
Essa aptidão para tornar o convivio deleitável, entretenido, interessante, e ao mesmo tempo formativo, isso nela era mais sobrenatural. Aptidões naturais ela tinha algumas, até boas. Outras não tinha. Outros membros da familia tinham muito mais. Mas não se preocupavam com o lado sobrenatural nem nada, era só o natural.
* A facilidade de expressão, a analise dos ambiemtes populares
Alguma coisa disso também eu aprendi, juntamente com a facilidade de expressão na conversa e a modelagem de toda uma linguagem para a conversa. Esta foi meio preparada. Quer dizer, é a facilidade nordestina de expressão, mas muito matizada por contribuições de linguas estrangeiras, de análises de História do exterior, e análise do tal portugues alto, português médio e português baixo. Sem me recusar a entrar às vezes na análise de coisas muito populares, muito comuns, sem me vulgarizar, mas não vivendo num mundo de mito, como se o povinho terra‑terra não existisse, mas gostando desse povinho, achando pitoresco, comentando e sabendo fazer que eu sei ver.
Tudo isso eu tive que aprender. O ambiente da familia materna era meio levado a abstrair de tudo isso, um pouco à la “Belle Époque”. E o ambiente da familia paterna era muito mais condescendente com isso — porque o nordestino é muito mais condescendente com isso —, e portanto muito mais conhecedor disso. E tratava‑se para mim de ser conhecedor sem ser condescendente, que é uma outra coisa. Quer dizer, brincar com a água sem me molhar. A Ulla inteira. Mas junto com a Ulla outra visão das coisas complementar da Ulla, que balançam as coisas
* A arte de conversar
Isso tudo criaria uma espécie de pequena ciencia em nivel individual, pequena ciencia diplomática, de tratar, de mexer… Vamos dizer, em grau minimo, um pouco homem de Estado, um pouco Diplomata, quase nada politico — anti‑politico até — mas já fazendo em ponto pequeno o que seria preciso fazer depois em ponto grande. Sem isso depois o Grupo não se teria constituido. Eu tenho impressão que se eu não me tivesse procurado em me esmerar numa tal ou qual arte de conversar, por ex., o Grupo não se teria constituido.
* A arte de aglutinar grupos
Depois está na mesma linha e vem com isso a arte de aglutinar formando grupos. O que não é fácil. Porque pegar, por ex., um grupo heterogeneo como esse, muito homogeneo do lado da fé, mas muito heterogêneo do ponto de vista humano — nações diferentes, Estados diferentes do Brasil, modos de ser diferentes, personalidades diferentes, tudo muito diferente — e fazer uma conversa cronica aos sábados à noite, e muito tarde da noite, supõe uma aptidão a encontrar os denominadores comuns, e apresentar tudo sob um aspecto igualmente interessável a todos, pela criação, vamos dizer assim, de uma espécie de vitrine de temas, e pela focalização de temas dentro da vitrine que agrade a qualquer transeunte. Nisso também eu percebí que eu poderia dar alguma coisa e procurei dar o que eu conseguisse.
* Uma arte de formar um movimento atuante
Essas mesmas qualidades se transpoem muito facilmente para a escala superior, que é formar um movimento que atue diante dos movimentos opostos, ou seja, diante da Revolução. Formar um nucleo inicial de CR que atue diante da Revolução Porque isso que eu acabo de dizer é formar a CRevolução É formar o germen da CRevolução São espiritos Contra‑Revolucionários..
* O hábito de fazer exposições doutrinárias rutilantes sem ornato
Eu me esqueci de dizer um ponto capital. Tão capital que eu me pasmo de ter esquecido: o hábito de fazer exposições doutrinárias em conversa, sem que a conversa ficasse por demais maçante. De maneira que a exposição doutrinária, da qual quase todo mundo foge, fosse feita num momento oportuno, de maneira a encontrar os interesses vivos do interlocutor, nunca conversando sobre aquilo que a gente tem vontade de conversar, mas conversanso sobre aquilo que o interlocutor tem vontade de conversar. É capital, capital! E isto pode dar à exposição doutrinária, feita no momento oportuno, um interesse muito grande. E ser até, ela que pode parecer o espantalho de uma conversa, ser o grande atrativo de uma conversa. Então, a exposição doutrinária ornada e bem feita, ser um elemento que se tratava de cultivar também.
Aí entram mais os predicados de papai, e em geral da índole nortista, pernambucana talvez mais do que outras. Muito clara, muito positiva, sem ornato propriamente literário, que faz parte dos charmes de um grande Estado vizinho, mas a apresentação na sua simplicidade, uma simplicidade muito decorativa, muito apresentável, muito bela.
Isso sem exigir esforço de quem está ouvindo e sem exigir esforço de mim também. De maneira que meu interlocutor não tenha a impressão que eu estou me cansando, porque isso cansa imediatamente. Se ele perceber, se ele tiver impressão que eu estou tirando os meus ultimos folegos, ele imediatamente começa a ofegar também, ainda que ele tenha dormido até aquela hora. O aspecto do cansaço não descansa ninguém, só cansa. É tão evidente que nem preciso explicar.
A clareza é o que eu falei há pouco do sem ornato, mas de uma clareza bela: é fundamental, fundamental. Por exemplo a reunião de hoje à tarde não estava uma reunião entretenida, mas era indispensável, era preciso fazer aquela reunião, não tinha remédio. Mas alí essa clareza era indispensável. Se não fosse uma dessas clarezas meio rutilantes, não acompanhavam. Quer dizer, não basta ser claro. É uma coisa curiosa. O auge da clareza é quando ela é atraente.
E que brilha e não cansa nunca, porque é feito sempre em função de uma grande arquitetura, iluminada por um grande principio. Porque tudo o que eu digo é no fundo arquitetónico, é como a fachada de uma casa. Mas por detrás voce percebe uma grande luz, principios estéticos daquela arquitetura.
* Tudo isso transposto para a luta
Tudo isso transposto para a luta de um grupo que está em face da Revolução, já. Tudo isso é, então, aproveitável, é uma preparação para essa luta.
* O discernimento dos espíritus
Eu também me esqueci de dizer que para esse primeiro passo o discernimento dos espiritos é de uma importancia fabulosa. Mas simplesmente transcendental, sem ela não tem nada feito.
Agora vamos passar para a corrente de opinião lutando contra as outras opiniões. (…)
* A consideração de todas as diversidades sociais
[A consideração] da classe baixa para mim foi a Feira. Onde eu ia comprar periquitos, tuins, etc., que só se vendiam lá. E na feira encontrando o “populino”. Então portugueses, italianos, um pouquinho turcos, e aquele barulho de feira, gritos: “Ola lá, huááá…” Uma mulher grita para a barraca da outra: “Olha, quando voce precisar tem aqui!”.
Essas coisas todas num estilo populacheiro muito entretido, pitoresco, em que eu percebi despertarem em mim movimentos e pendencias para um diapasão de vida que eu não conhecia, e eu compreendi que eu ver aquilo me completava. E que o amarfanhamento disso no meu ambiente fazia com que todo ambiente fino fosse meio sem ar, e toda a coisa da antiga tradição fosse meio dificil de respirar, porque era fechada a uma certa coisa, e aí abria o caminho para o americanismo. Porque entra o extravagante, entra o Jazz‑band, e se sai daquela compostura “figée”, que deixava o meu Castilho encantado, porque ele não seria homem de ir a feira nunca! Eu ia.
No fim a feira se tornou para mim um pouco um pretexto. Eu ia a pretexto do tuim, mas sem comentar com o meu primo que ia comigo, eu ia colhendo cem aspectos, e me divertindo, sentindo vibrar em mim uma outra coisa.
Mesmo na pequena burguesia, certas coisas eu percebia que viviam mais, mesmo na média burguesia, do que no meu ambiente. E achava quase engraçadinho o modo pelo qual a pequena burguesia, como um gatinho que procura se por de pé para conseguir pegar leite, se punha de pé para se educar e ser como nós sem conseguir.
O como é que se fazia tudo isso, todo esse jogo, me entretinha muito, como me entretinham muito os Prados, também, e outras coisas: essa diversidade social, que eu considerava sem um pingo de luta de classes. Pelo contrário, mum transbordamenteo de boa vontade, de estima, e de dar a cada um o que é seu, conservadas as barreiras.
* Alguns exemplos
Eu me lembro por exemplo (…) [uma pessoa que visitava nossa casa]. Tratavam‑a com consideração, entrava no salão, não na sala de visita, mas numa sala menor, conversava, etc., etc., depois mandava um criado acompanhá‑lo. Às vezes era papai que falava com ele. E aí havia uma certa conexão nordestina…
Ele como é que cobria tudo isso? Ele se apresentava com roupinhas, mas vestido impecavelmente. Muito mais bem vestido que eu por exemplo. Eu tinha roupa de melhor qualidade, mas ele era muito mais cuidadoso do que eu, mas a perder de vista, nas roupas deles. Magro, tese, um tanto bronzeado, os traços muito pronunciados, nariz, tudo muito pronunciado, cada um do seu jeito. Um cabelo que ia ficando grisalho, era muito liso o cabelo, devia ser sangue de indio, assim inteiramente para trás, e vivo, mas se governando até o menor traço, até a menor coisa.
E na esquina embaixo, onde se esperava o bonde, ele se encontrava com um senhor da outra categoria, que era assim mas em outro naipe. E que se quando ninguém mais usava chapeu de coco, só ele usava chapeu de coco. Quando ninguém mais usava “pince‑nez”, ele vivia com “pince‑nez”. O “pince‑nez” usava‑se sobretudo para ler, ele usava habitualmente “pince‑nez”. Uma sobrecasaca, que era assim um jaquetão como esse meu, mas que chegava até o joelho. Uma bengala com castão de ouro, meio extravagante, colocada aqui debaixo do braço, ele segurando aqui a coisa, e fumando um charuto…Encontravam‑se os dois na esquina…
Eram versões desiguais e antiquadas de um mesmo modelo transposto para as várias classes. E eu conhecia os dois. Então cump’rimentava o de baixo, cumprimentava atenciosamente, tirava o chapéu. Ele me cumprimentava com respeito e falava com o outro. O outro era “deplaisant” porque tinha uma voz fininha: “henhenhen, como vai Plinio?!”… Mas conversavamos. E eu arranjava um jeito de não entrar no bonde do lado de nenhum dos dois, porque era paulérrimo. Mas a justa posição me entretinha.
São aspectos diferentes da vida, eu acho variado, eu acho interessante, eu gosto de notar isso. Muita gente gosta de viajar, mas eu me pergunto o que eles olham na viagem. Porque se é para não ver coisas dessas também! Vai ver sapato que pertenceu a Maria de Médecis…broche que pertenceu à mulher de Nuvoir… Tenha a paciencia! Isso, se não for num contexto, eu não sei fazer funcionar para mim. [Vira a fita]
* Os visinhos da Alameda Glette
Ele eu não sei bem de que familia ele era. Ele chamava‑se Américo Brasiliense, era o nome que tomava as pessoas assim no sabor da República, Américo B. de Almeida e Melo. Almeida e Melo tem todo o som de um nome de familia tradicional, do interior de SP. Mas não caipira, senhorio do interior. Mas ele era casado numa familia excelente, que é a familia dos marqueses de Valença. Por sua vez o Marques de Valença era casado com uma Souza Queiros — Familia Souza Resende —, e ele era casado com uma senhora dessas, abastada. O pai dele era lider republicano, e creio que chegou a ser governador de SP muito tempo antes do Macedo. Ele era monarquista “enragé”, o contrário do pai. Tudo isso me fazia propender para ele.
Mas do lado da Alameda Glette, tinha uma casinha que ainda existe (algum dia que eu passe em frente lá com voces eu mostro a casinha): pequena burguesia de imigrantes italianos. Então era diferente. Era umas moças louras, gordas, e que falavam alto: “Oh! Regina?! Chama a Célia! Ela não vem…Célia!!!” Umas coisas que gente educada nunca faz, eles faziam. Mas eu ouvia, e achava naquilo um certo pitoresco, um certo tom. E depois aparecia um rapaz… não tinha nada de não branco, era italiano, mas ele tinha um cabelo muito encaracolado, e para manter o cabelo rigorosamente liso, que era de rigor no meu tempo, ele usava um pé de meia cortado e que servia de gorro, que era uma coisa medonha! Voce está vendo que ele tinha vestido o pé da Célia ou da Regina, que como estava para ir para lata de lixo, foi transformado em gorro — lavado ou não lavado previamente — gorro para assentar no cabelo dele. Ele também lourão, gordão, olhando na janela, com a idéia fixa de olhar a nossa casa, para ver o que acontecia na nossa casa. A casa dele perpetuamente aberta, como se fosse uma pensão. Não era uma pensaõ, morava uma familia lá, a Célia, a Regina, era gente direita, familia honrada. Mas tinha um pitoresco italiano que me divertia muito também Não era meu modo de ser mas me divertia muito.
* Dessas analises das diferentes calses sociais vinha uma sociologia
Todas essas coisas eu gostava de ver, essa diferença, o turco, o preto; tinha negros no porão, Madalena, Florencia — um dia eu descrevo a voces a criadagem de casa, era muito pitoresco, eu me divertia —, Samaria, que era filha de japones e portugues… Eu me divertia muito em ver essas coisas todas. E aí vinha uma certa sociologia incipiente.
* Os colegas do Colegio São Luis
Também no São Luis as classes eram muito desiguais. Contanto que pagasse a mensalidade, os padres aceitavam qualquer um. Então tinha desde um mulato chamado Bullov (não sei como!), até um imigrante italiano muito rico, chamado Pangela, e que o pessoal dava o nome de Panela. Até o filho do Conde Penteado, que entrava num automovelzinho para menino de 13, 14 anos, que não existia no Brasil. Ele buzinava, abria as portas do colégio, e ele entrava no automóvel…”ohhh”! Tinha de tudo! Caio Prado, comunista naquele tempo ultra granfino… Havia de tudo! E eu pelas caras dos alunos percebia mais ou menos como era as familias, e como viviam dentro.
* Dessa sociologia nasceu uma arte de se apresentar ante cada ambiênte.
Tudo isso ajudava muito a fazer, sem dar‑me bem conta, fazer uma verdadeira sociologia. De maneira que quando começou minha luta para fora, quer dizer, quando eu me vi à testa de um grupo católico, no movimento católico, eu compreendi perfeitamente que aquilo tudo… eu pensava que todo mundo via isso, e que via como eu, achava a coisa mais comum do mundo isso. E comecei a nadar e me mexer assim. Mas de fato eu já tinha montado uma verdadeira sociologia e uma arte de eu me apresentar ante esses vários ambientes quando preciso. Sempre fazendo sentir quem eu sou — isso inexoravelmente — mas com amabilidade, tratando cada um conforme o jeito de cada um. Isso de um lado.
* E o saber ver a Revolução e a Contra‑Revolução em cada degrau do corpo social
Mas de outro lado, também sabendo como fazer o movimento se apresentar ante a Revolução de toda essa estrutura. Eu sabia bem o que é que cada degrau da estrutura tinha de mais revolucionário ou menos. E sabia bem portanto como apresentar a cada um em cada lugar, para a CR, face à R existente alí. Portanto abrindo caminho como devia abrir.
Bem, mas aqui voce está vendo que é a transposição para o terreno da movimentação de opinião pública — e da arte de tratar com a opinião pública — de uma arte de tratar com individuos. Em que se aplica aquela coisa do Bismarck, que em cada homem há uma bancada e um parlamento na cabeça, aquela coisa toda. E também no contato com as várias correntes de opinião, cada corrente funciona como se fosse um homem. É a inversão do principio do Bismarck aplicado à corrente católica, aos que pensam assim, assado, do ponto de vista religioso, do ponto de vista social, do ponto de vista economico, artistico, cultural, como é que pensam, e como situar o movimento católico diante disso.
* Saber assim desdobrar inteiramente a Contra‑Revolução, e criar um estilo
Então também como fazer calibrar a CR de maneira que ela se desdobre inteiramente, mas sem cometer uma gafe, sem fazer uma besteira, sem adquirir um inimigo inutil, sem ferir sem necessidade a ninguém, mas tendo que ferir dar um tiro que deixe a pessoa sem saber o que dizer.
Então, as Sedes da TFP, o tipo humano que uma pessoa da TFP deve ter, as insignias da TFP, os modos de se apresentar em público, o tonus dos manifestos, o tonus do livros, o tonus geral da TFP representam um individuo.
E voces puderam ver o exato calibramento disso por muito tempo, no enterro do Castilho. Porque aquilo é um estilo! É um estilo que não existe mais! E que foi inventado uns 20 anos atrás! Mas que a bem dizer cresce de atualidade. Não fica anacronico e cresce de atualidade.
* O testemunho dos filhos da Revolução
(Dr.EM: Um dos nossos ouviu um tipo que saia do cemitério dizendo: “Isso o Matarazzo não faz, o Maluf não faz. Só a TFP é que faz.”)
É isso! E onde o Maluf e o Matarazzo não faz, é que ninguém faz! Quércia e Sarney não existem, não mencionam.
(GD: O interesse com que as pessoas viam dos prédios, era enorme.)
Eles todos, meu filho, os que nunca tinham visto, tinham a idéia que se em SP se fizesse uma coisa daquelas, para usar a expressão do Evangelho “as pedras da rua se levantariam contra ela”. E vendo que aquilo se fazia, que passava incólume, e que encontrava cidadania, aquilo causava neles desconcerto
* Um estilo calculado para valer muitíssimo tempo
Estão vendo que alí tudo é calculado, em ultima análise, com minha aprovação, estandartes com leão, a forma do leão, o tipo do leão, a capa, o porte dos rapazes, os estandartes grandes, os estandartes pequenos, o que cantam, o que não cantam, o Coronel que dá palavra de ordem, ou o JC que dá palavra de ordem… A coisa toda calculada, calculadissima, mas calculada para valer durante tanto tempo que, quando algum dia isso já não for possível, valerá enquanto tradição que viva do seu próprio sulco, independente do contexto.
* Foi criado um estilo criado porque havia aptidões em quem o criou
Mas que supõe, portanto, aptidões — estamos falando de aptidões — discernimento dos espiritos, modo de tratar, etc., que eu já descreví, no grau mais inicial. É só transpor para cima, que voces percebem que é isso mesmo.
* Aptidões que supoem também virtudes
(CP: Ousadia muito grande também)
Sim, entram aí as virtudes cardeais: fortaleza, temperança, entra tudo. Um pouco de megalice que entrasse desequilibrava o negócio.
(CP: Ousadia muito colada com a realidade.)
Colada com a realidade… A megalice não é colada com a realidade! Lá vai! o vôo da louca… Mas alí não, é colado na realidade a mais não poder. Mas uma coisa que se mantém. A tal ponto que durante esses 20 anos não passou pela cabeça de ninguém dentro da TFP propor por exemplo, o seguinte: “Dr. Plinio, que tal se mudassemos esses estandartes, essas capas, mudasse tudo isso?” Um que propusesse isso eu acho que seria enxotado do auditório!
(CP: É uma das qualidades do Sr. também ousar tanto quanto possível, dentro da realidade.)
Porque a realidade comporta. E é diferente da realidade fofamente observada pelos CRs. que não sabem ver. Eles não percebem que a realidade revolucionária é mais elástica, e que com jeito a gente pode meter o pé fundo nela, que ela pode gemer, pode até vingar‑se, mas ela é obrigada aguentar!
(CP:Mas é preciso ter peito.)
É preciso ter peito. Mas aqui está um pouco a margem do tema, porque voces queriam que eu falasse das aptidões. Voce toca um pouco nas virtudes. Isso podemos deixar de lado. O tema são as aptidões. Eu estou respondendo estritamente na bitola das aptidões.
* Como seria esse estilo em nivel de Estado
Se algum dia acontecesse da TFP ter em mãos um Estado para dirigir, como é que isso se transporia para o nível do Estado? Então a politica internacional, no mais alto grau.
Aí seria preciso tomar em consideração o seguinte. Que eu acho que a substancia, a medula da vida está nos dois graus que eu falei, e que o Estado está para a sociedade — porque o que eu falei é sociedade, a nação — o Estado está para a nação, como a casca da tartaruga está para a tartaruga. O aparelho estatal pode, sob certos aspectos, ser o mais brilhante da tartaruga, mas de sí aquilo é uma coisa morta. Não é matéria viva, é matéria morta. E propriamente a vida está na sociedade, e não no Estado. E a nossa ciencia, que eu descrevi antes, é o que forma propriamente o homem de Estado.
Porque o que é que o homem de Estado deve fazer? É sem forçar a realidade social, sem torce‑la, sem violentá‑la compreender como é que ela foi exposta, e intervir com o prestigio e com o poder para ajudar as tendencias de espirito que se queira, e combater as que não se queira, “sans en avoir l’air”.
* Um exemplo hipotético: o Prefeito de Taquari
De tal maneira que, por exemplo, um chefe de Estado capaz disso, saiba compreender a importancia de remover um prefeit de Taquari que dança no Carnaval. E saiba compreender o que isso tem de profundamente subversivo, embora esse delegado e esse prefeito seja muito eficaz.
De maneira que ele sabendo que dança no Carnaval, o Chefe de Estado toma uma nota. Na primeira ocasião natural e oportuna está marcado: o prefeito de Taquari é aposentado. Desde que a informação é verdadeira, ele tendo certeza, é aposentado, está liquidado. Mas ainda. Ele quererá saber quem é o vigário de Taquari, se o Vigário no púlpito falou contra o prefeito que dá esse mal exemplo. Se não falou, ele deve ter obtido da Santa Sé Bispos que compreendam isso, mandar recadinho: “Sr. Bispo, seu vigário não está vendo isso assim. Tenha a bondade. Não estou mandando, não posso mandar em V. Excia, estou lhe falando como filho, eu lhe peço: aperte aquilo, aperte seu vigário! Porque com o vigário frouxo não me adianta ter um chefe de Policia bom.”
* Trabalhar a massa social é o primordial
Então, o Estado deve trabalhar a massa social na linha R‑CR, de maneira a ter influencia até sobre as modas, até sobre o lançamento da ultima moda, quanto a forma da colherinha de mexer a xicara de café — porque até lá vai! E ter uma elite social que a gente move para isso, sem ela perceber claramente que esteja sendo movida, esta é antes de tudo a função do homem de Estado! E portanto o homem de Estado está suposto do que eu falei da segunda linha, antes de tudo e acima de tudo, porque essa é a CR.
A R e a CR são fenomenos de alma, são fenomenos que se passam na esfera social, e portanto tem que ser visto nessa esfera. O Estado que renuncia a assim atuar direito na sua esfera, renuncia a defender‑se, renuncia a sua própria vida.
* Outros aspetos do Estado: militarismo
Há outras coisas que estão na esfera do Estado, e que o Estado deve cuidar ele próprio muito mais desenvoltamente. Não é porque está aqui o nosso querido coronel, mas eu não compreendo uma boa formação da op. publica que não seja militarista. Quer dizer, só ganha a guerra o povo que em tempo de paz admira a classe militar. O povo que em tempo de paz não admira a classe militar não ganha a guerra, é inútil. É um principio, não sei se isso está no Clausewtz ou não está, mas é assim.
Ter um Exército brilhante, com homens brilhantes, e que de vez em quando desfila para o povo admirar, grandes paradas, grandes festas militares, a participação de um aspecto militar em todas as festas da Igreja, em todas as festas do Estado, tudo isso eu considero uma coisa fundamental, um Chefe de Estado deve saber tocar. E deve compreender qual é o espirito militar próprio a esse povo ou aquele povo.
Há um determinado modo brasileiro de ser militar, que não flete o joelho diante dos defeitos do brasileiro, mas sabe tirar da esperteza brasileira uma tática de guerra própria. Tem que haver. Mas outra coisa será para o chileno. E outra coisa será para tal e tal e tal. Mas tem que haver. Então, aí sim o Chefe de Estado deveria ter uma politica psicológica — vamos dizer assim. Não é uma guerra‑psicologica‑CR , mas é uma ação‑de‑paz‑psicológica‑CR, em que o tom das universidades, enfim, todo o tom fosse dado a partir de uma série de conjuntos de pensamentos, dentro dos quais fosse modelada a elite da nação… (…)
* O rés do chão do homem público
D. Pedro II mandou fazer uma estrada de ferro para Petropólis, então ele ficou encantado porque era uma maravilha… Eu compreendo que o poder publico tem que cuidar disso, estimular a iniciativa particular mais do que fazer ele próprio a estrada de ferro, mas enfim eu compreendo que cuide dessas coisas, está bem. No caso da estrada eu tenho todas as reservas que tenho com a Revolução industrial, mas coisas do genero eu compreendo. Mas isso é o res do chão do homem público. A trarefa verdadeira do homem público é essa que eu acabo de falar, a serviço da Igreja. Isso seria a resposta ao que voces perguntaram.
* As qualidades adquiridas: a combatividade, a 20previdência, a operosidade.
(As qualidades torrenciais e as que teve que procurar e montar para esse serviço.)
O que é torrencial se vê. O que foi inteiramente amoldado foi a combatividade. De ponta a ponta a combatividade é necessária e de ponta a ponta ela não existia. Voce pega as minhas fotografias de menino, voce não vê um menino combativo alí em nada. Vê um menino de personalidade definida, personalidade que está nascendo, mas que se vê. Mas um menino combativo voce não vê em nada. Vê um menino mole, e com a propensão para essa moleza eu me conservei durante bastante tempo. Quando chegou a ocasião do que eu poderia chamar minha ação publica, essa moleza já estava esmagada. Mas ela foi construida “ex imis fundamenti”, a partir dos alilcerces mais fundos e mais interiores, foi isso.
Outra coisa que foi construida foi a previdência. Eu detestava prever o pior. Mas no trato com a Revolução compreendi que prever para um CR é prever o pior, porque encontra no caminho só o pior. E quando ele não encontra o pior, foi vantajoso para ele prever o pior. Porque ele aproveita melhor a coisa um pouco menos péssima que lhe aconteceu.
Em certo sentido, mas muito menos, a operosidade também foi conquistada. Eu era um menino com muitos acessos de preguiça, de fantasia, de romantismo. Mas isso foi menos. Mesmo uma tendencia que eu tinha para o sentimentalismo foi preciso vence‑la. Mas foi uma tendencia que não representou uma coisa capital. Teria sido ruinoso que eu cedesse, mas não representou uma das grandes batalhas de minha vida como contra a moleza.
A moleza foi uma batalha, a pureza foi uma batalha, mas essa é para todo homem. A moleza foi uma batalha terrível. Eu a travei em função de vencer a Revolução, de não me deixar esmagar por ela, e de vencê‑la!
* A vocação era para a combatividade
(CP: O Sr. tinha a vocação para o contrário da moleza.)
É, é verdade. (Era muito chamado para a combatividade.) Muito chamado, isso é fora de duvida, muito chamado, mas o meu temperamento tinha horror a isso. Preguiça tinha algum tanto, todo menino tem seu acesso de preguiça, mas não era uma coisa especial.
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