Conversa
de Sábado à Noite ─ 12/9/87 ─ Sábado
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Conversa de Sábado à Noite ─ 12/9/87 ─ Sábado
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Ao ingressar no Colégio São Luís, o Sr. Dr. Plinio agiu como um cego que entra numa sala que não conhece: vai apalpando o terreno até formar o quadro geral e aí se começa a deslocar * Como o Senhor Doutor Plinio aproveitou-se das circunstâncias para impor-se no Colégio São Luís * Episódio em que o Sr. Dr. Plinio deu carona a uns colegas à saída do São Luís e um menino cafajeste cuspiu nele por não ter sido autorizado a entrar no táxi * Apesar de nunca ter auxiliado em cerimônias religiosas, o Sr. Dr. Plinio sempre foi muito religioso; a religiosidade do Sr. Dr. Plinio era tomada quase como uma posição política * A reação dos outros meninos ao modo de ser do Sr. Dr. Plinio era o bloqueio: não atacavam, tratavam bem, mas não convidavam para nada * “Eu compreendia bem as razões imediatas desse bloqueio: eu levava comigo o tédio que eles sentiam em relação à pureza, em relação à fé, em relação ao passado” * Em sua própria casa o Sr. Dr. Plinio tinha de disfarçar essa situação de bloqueio ─ as artimanhas do Sr. Dr. Plinio para escapar nos bailes de carnaval * Quando o Sr. Dr. Plinio era aluno no Colégio São Luís os padres nunca o procuraram realçar em nada
…não tivesse proporção com o trato dado a vocês.
(Dr. Edwaldo: Mas com muita naturalidade, como se não tivesse nada a ver com ele.)
É, exatamente. Ele estava ali como se ele fosse um dos hóspedes da casa. Que é a regra perfeita do dono da casa, do verdadeiro anfitrião. O anfitrião que dá a você um vinho para beber e fica olhando a sua cara para ver se você está se regalando, não é o verdadeiro anfitrião. É óbvio.
(Sr. Poli: Pode gravar tudo isso?)
Pode… Se cair nos ouvidos dele, tanto melhor! Ele merece.
Meus caros, vamos aos nossos temas, celebrando a presença de nosso médico não é?! Eu tenho certeza que ele também tinha vontade de fazer uma reunião aqui, não é meu Edwaldo?
(Dr. Edwaldo: Imensamente!)
Mas então vamos ao caso. Qual é o tema que vocês levantam?
(Sr. G. Larraín: O senhor estava dando uma teoria da ação do senhor. Mas para isso era preciso ver a importância da situação sobre a ação.)
É claro. E, portanto, uma teoria, eu dei um teoria da situação, a importância da situação sobre a ação.
(Sr. Poli: Ponta de trilho reunião passada: em que situação o senhor se encontra. Que possibilidades o senhor tinha, que táticas o senhor adotou. Antes de tudo, que táticas adotava o adversário.)
É, está muito bem. Eu vou dar a teoria propriamente agora, mas assim como cabeceira do resto da exposição. Não vou mais fazer uma larga exposição para chegar a uma teoria. Mas eu tomo a teoria como cabeceira para…
* Ao ingressar no Colégio São Luís, o Sr. Dr. Plinio agiu como um cego que entra numa sala que não conhece: vai apalpando o terreno até formar o quadro geral e aí se começa a deslocar
Bom, vocês compreendem que naquele mundo do Colégio São Luís, etc., eu não chegava a desconfiar que houvesse uma sociedade secreta de meninos. O que eu fazia era apalpar com enorme cuidado, a situação, compreendendo bem que qualquer passo errado daria numa explosão do ridículo. E, portanto, eu não poderia dar um passo sem cair numa catástrofe. E eu deveria regular tudo muito bem, porque eu tinha necessidade de expandir-me, de encontrar um lugar para mim, de afirmar, de viver, mas numa situação toda bloqueada contra mim. E a minha posição era, portanto, não de um homem normal, mas de um cego que avança apalpando. E que procura formar uma noção das coisas, não simplesmente uma noção primária de quem vê, porque olha e vê, está acabado; mas uma noção mais complexa, que é de quem apalpando constitui um quadro. Em vista desse quadro constituído, age. Daí o papel da situação. Para o cego a primeira coisa é isso: constituir uma noção de conjunto e depois então ver como é que faz.
Ora, realmente de origem eu era como um cego. Porque nada me apresentava o mundo como ele se apresentava a mim. Nada da vida que me era dada pelas noções comuns que alguém tem em casa traçava o quadro que eu via. Mas esse quadro não é propriamente dizer que eu o via, eu o conhecia, eu o apalpava e ia constituindo aspectos desse quadro.
Agora, como é que avança um cego depois que ele, por exemplo, tenha apalpado bem toda essa sala e visto todos os móveis e tudo o que tem aqui, como é que ele anda? Ele anda passo a passo penetrando nos espaços que estavam abertos a ele. É uma tática que vocês poderiam chamar, se quiserem, de “penetração”. No espaço - daqui a pouco eu vou definir o que é um espaço: no espaço aberto, entro; no espaço fechado não mexo, porque ali pode ter uma dinamite.
Meu papel, era, portanto, de um cego numa sala onde pode haver uma dinamite. Contaram a ele que tinha uma dinamite na sala. Ou pior, ele em certo momento ouviu a conversa de pessoas e percebeu que tinha dinamite na sala. Um pontapé que ele dê errado a sala vai para o ar! Mas se ele andar direito, é comum, ele passa o dia naquela sala.
* Como o Senhor Doutor Plinio aproveitou-se das circunstâncias para impor-se no Colégio São Luís
Bom, qual era a questão? Eu percebia aos poucos vários dados. Em primeiro lugar eu percebia que, apresar de na aparência o Colégio ser completamente democrático, um certo tom de família no fundo dava o prestígio a uns alunos e não dava a outros. E que formavam-se rodinhas mais ou menos qualificadas em função família. Assim: havia o esteio fundamental das famílias antigas, e havia alguns noveaux riches, très riches que faziam parte da cúpula desse esteio. Contraditoriamente eles não eram a cúpula, mas faziam parte da cúpula.
Então, eram [os] très riches, depois [os] ricos (mas esses, ricos de tradição, como alguns também dos muito ricos tinham tradição). Mas os muito ricos desdenhavam a tradição que tinham e por isso também desdenhavam algum tanto os tradicionais. Mas viviam misturados com eles, nos mesmos ambientes, etc., etc. E que o tom tradicional não impunha muita… Os très riches não davam grande importância, mas o que estavam abaixo davam muita importância. Então [eu pensava]: “Se esses se deixam tomar importância, se deixam imbuir disso, então já sei: tratando com esses eu sinto um espaço de respeito que eu vou preencher. Eu vou em relação a eles fazer valorizar até o último ponto aquilo a que eles dão valor.”
Bom, agora, em algumas rodas - ainda era restos da natureza humana que existiam - davam valor à inteligência.
(Sr. Guerreiro: Isto tudo no Colégio São Luís?)
Colégio São Luís. Quer dizer, alguns mais inteligentes não conseguiam conter-se e quando ficavam um pouco mais velhos, enquanto outros jogavam futebol, esses mais inteligentes conversavam alguma coisa mais iluminada. Ali seria algum certo espaço para mim. Então aproximar-se dali e encher esse espaço.
Depois, um ou outro - nos tradicionais, sobretudo, mas mesmo nos não tradicionais - apreciava muito minha companhia pelo gosto da companhia. Então, agradá-los ao máximo, ver por onde é que eles gostavam da minha companhia, e proporcionar isto [a] eles ao máximo, porque ali havia um espaço que eu pudesse preencher.
Outros, por exemplo, eram pessoas de boa índole, bom gênio, que não eram agressivas, e que certamente numa explosão de ridículo contra mim não fariam parte, não se associariam, e deixariam passar a sarabanda inteira, etc., mas eles não tomariam parte. Pegar estas pessoas e também formar uma certa zona de simpatia ali. E assim, como uma hera vai subindo pela parede, mas agarrando e subindo, agarrando e subindo, eu seguia a tática de ver naquela situação os pontos de apoio que podia haver para criar um certo ambiente em torno de mim.
(Dr. Edwaldo: Estes pontos o senhor os tinha bem claros?)
A partir de uma observação cuidadosíssima das situações.
(Dr. Edwaldo: Porque o senhor não tinha ninguém que o ajudasse.)
* Episódio em que o Sr. Dr. Plinio deu carona a uns colegas à saída do São Luís e um menino cafajeste cuspiu nele por não ter sido autorizado a entrar no táxi
Nada, nada. Quer dizer, eu tinha que escavar por mim, à força de pensar, pensar, pensar. Depois, evitar certas coisas que chocassem demais na minha posição contra-revolucionária. Eu creio que contei a vocês um fato, que havia um menino muito de lo último, e esse menino… Eu, pela minha natureza era de boa paz, mas tinha momentos muitos despectivos, de caçoar e desprezar muitos dos outros. Por esse ou por aquele tipo, mas que era muito levado a isso. Bom, havia um menino assim muito cafajeste, que havia por lá. E quando chovia, Dona Lucilia fazia questão que eu mandasse vir um táxi, porque chuva faz muito mal, etc… Ahahah!, a lenda da chuva antiga… Então mandava vir um táxi. E eu chamava os meus amigos do Colégio São Luís dos Campos Elíseos, que iam na mesma direção e convidava: “Olha, vamos, hoje temos automóvel para ir para casa, vamos, tatatá”. E as famílias deles não pagavam o táxi para eles. Era cuidado só de Dona Lucilia. E enchia, mas dos mais amigos meus… Quer dizer, os quatro lugares do táxi eram contados…
Bom, agora, o menino que morava na Rua da Consolação - bairro cafejestíssimo então - o menino muito cafajeste veio atrás correndo e disse: “Olha eu quero entrar, quero entrar!” Eu disse: “Não pode!” Com o automóvel já fechado, porque iria estragar a boa camaradagem que nós teríamos entre nós durante a viagem.
É uma coisa inédita, uma coisa horrível de contar: ele aproximou-se, ele me falou, eu baixei a janela para falar com ele, e disse: “Não, você não pode entrar…” E eu não tenho certeza, mas eu creio que eu disse um horror qualquer para ele, desse gênero: “Cafajeste fica de fora!” E a meninada dentro do automóvel: “Quá quá quá!” E eu ri também Eu eu tenho boca muito grande, e abri sem nenhuma prevenção… Ele me cuspiu dentro da boca…
(Sr. –: Huuuu…)
Você entendeu bem o que é que está do gesto: “Você me considera vulgar, eu vou te invadir com minha vulgaridade…” Bem, e aí os meninos começaram a rir de mim: “Quá quá quá…” Porque qualquer coisa engraçada, para a infância despreocupado deles, qualquer coisa engraçada dão risada, algazarra. Vocês todos foram criança, sabem disso, é algazarra. Então encontrava uma ocasião para mexer comigo.
E eu comecei… o automóvel demarrou, e o bom Germino ficou de fora. E eu comecei a cuspir na rua… Vocês podem imaginar. Não tem palavras! Cuspi… mas como uma figura da Fontana de Tevere ouviu?… A tal ponto que quando estive na Fontana de Tevere, eu me lembrei disso… com aquele menino.
E depois já a preocupação no dia seguinte: se isso servia para aqueles que estavam dentro do automóvel caçoarem de mim depois ou não. Porque podia dar piada, e piada do fundo igualitário. Porque a minha atitude muito antiigualitária, acompanhada de minha exclamação: “Não pode!”, mas assim, uma coisa: “Detrito, você não é feito para andar conosco, etc.” Isto era uma coisa para os meninos daquele tempo, insuportável. Podia se fazer, mas não se podia dizer.
* Apesar de nunca ter auxiliado em cerimônias religiosas, o Sr. Dr. Plinio sempre foi muito religioso; a religiosidade do Sr. Dr. Plinio era tomada quase como uma posição política
Então, evitar situações como estas. Mas em cada situação ver qual é a beirada até onde podia chegar. Por exemplo, a prática da religião. Eu não era, infelizmente, de muito comungar nem de muito confessar. Eu, graças a Nossa Senhora, tinha a posse habitual do estado de graça, mas infelizmente não era. Tinha muita devoção a Nossa Senhora. Eu não fazia parte dos meninos coroinhas. Nunca, eu ajudei uma bênção do Santíssimo, com aquelas batininhas vermelhas de menino; nunca eu andei enchendo turíbulo com incenso para ajudar… nunca cantei no coro. Aliás, toda vida tive uma voz desafinada. Mas nunca cantei no coro dos meninos. Mas fazia me destacar entre os meninos não sacristães, não carolas, como menino muito religioso. E muito religioso com sólidas razões. Do lado intelectual eu tinha muita fé, graças a Nossa Senhora. Mas o que eu sabia da justificação da Fé, era quase nada, não é? Mas enfim, eu discutia, etc.
Mas era tomada a minha posição religiosa quase que como uma posição política, que dava uma certa cidadania no meio político-intelectual da pirralhada.
Bem, e assim, a tática qual era? Era a tática de reunir as pontas de prestígio, apalpar até onde eu poderia levar esse prestígio, não ir além daquilo que podia ser, mas ir tão longe quanto eu podia encontrar o caminho aberto para mim e ver no que é que dava. Só. Não é portanto, uma teoria de ação, mas é uma ação muito instintiva e meio real, que tinha na base, isso sim…
(…)
* A reação dos outros meninos ao modo de ser do Sr. Dr. Plinio era o bloqueio: não atacavam, tratavam bem, mas não convidavam para nada
…mas sentindo muito bem qual era a hora que a coisa explodia. Qual era o resultado disso? Era uma situação que passava - passava ! - sendo que eu estava andando contra todo o trânsito, contramão em todos os lados - passava. Mas a toda ação corresponde uma reação de igual força em sentido contrário. Como eles não sentiam explicitamente que isto era um procedimento intencional meu, eles me imaginaram espontâneo como eles eram espontâneos, porque eu viva imerso na espontaneidade infantil, eles não iam pensar que eu tinha tudo elucubrado dentro da cabeça! Nem de longe! Bem, eles pegavam instintivamente e ação, que eles recebiam instintivamente. É natural.
No que consistia essa reação [deles]? O bloqueio. Não ridicularizavam, não maltratavam, quando nos encontrávamos tratavam bem, entrava nas conversas, evitavam as coisas porcas… a matéria-prima comum na conversa entre os meninos, absolutamente comum: não se conversava a não ser entrando isso pelo meio largamente. Então, observavam as regras do jogo. Mas o resultado era não me convidar.
(Sr. G. Larraín: O senhor nunca foi convidado?)
Nunca. Em cinco anos de curso secundário, nunca fui convidado para nada. Umas duas ou três vezes eu convidei para a minha casa grupos de meninos. Foram. Mas não retribuíram.
(Sr. Guerreiro: Já meninos, a reação era esta?)
Instintiva.
(Dr. Edwaldo: Partia deles mesmo, ou alguém…)
Isso também não sei. Naquele tempo não me punha esse problema. Eu só me pus esse problema quando li M. Delassus. Depois é natural que eu não me pusesse esse problema.
Mas tudo junto, todas as circunstâncias que eu descrevo criavam condições de navegabilidade que me levavam a dizer: “Bem, eu vou tocando assim até a hora em que Providência me faça baixar do Céu um gancho, uma corda, uma coisa qualquer, para eu poder começar a vocação - eu diria naquele tempo, com má expressão religiosa, o destino que eu tenho. A palavra destino é fatalista, não é o que eu pensava. Mas era bem uma vocação. Eu não ousava empregar a palavra vocação para isto. Pensava que era só para o clero, etc. Não havia outra vocação.
Bom, daí também a minha atitude com o clero. Eu avançava com o clero até onde podia. Procurava fazer boas relações, etc., não me deixando enfeudar por ele. Porque se além de tudo que eu fizesse, eu ainda aparecesse [como] o grande amigo do clero, estourava o balão! O clero era visto com desdém pelos alunos.
* “Eu compreendia bem as razões imediatas desse bloqueio: eu levava comigo o tédio que eles sentiam em relação à pureza, em relação à fé, em relação ao passado”
Eu compreendia bem as razões imediatas desse bloqueio. Eu tinha certeza de que ─ [que] Deus me livre ─, se eu prevaricasse, bastava eles me verem num lugar onde os rapazes encontravam mulheres fassuras, bastava ver isso, que naquele dia seguinte eu teria aberto para mim as portas do mundo. Todas. Com a maior facilidade, imediatamente, ser ali! Na hora! Eu já sairia de lá crivado de convites.
Mas é compreensível que a minha posição fosse cacete para eles. É compreensível. E por aí, exatamente, é que eu procurava uma porção de pontos de apoio, porque se eu me agarrasse muito num ponto só, eu seria rejeitado. Eu levava comigo o tédio que eles sentiam em relação à pureza, que eles sentiam em relação à fé, que eles sentiam em relação ao passado. Então, evidentemente, eu tinha que agüentar isso.
* Em sua própria casa o Sr. Dr. Plinio tinha de disfarçar essa situação de bloqueio ─ as artimanhas do Sr. Dr. Plinio para escapar nos bailes de carnaval
Mais ainda, em casa tinha que disfarçar esta situação. Porque [a] casa de minha avó, era um clube da família inteira. E uma vez ou outra saía uma pergunta: “Plinio, AEcadê AF seus amigos? Todo mundo tem amigos, eu não vejo você ter amigos.” Pergunta incômoda. E assim havia situações críticas.
Por exemplo, uma situação crítica: baile de carnaval. Era preciso ser visto nos bailes de carnaval, nos clubes mais importantes de São Paulo. Notadamente um clube chamado “Clube Atlético Paulistano”. Eu não fazia atletismo nenhum nesse clube, mas o clube era atlético. Eu fui sócio do Paulistano anos… Bem, era preciso comparecer no baile de carnaval. Esse baile de carnaval era no segundo dia. Enquanto baile, os bailes naquele tempo eram muito mais moralizados do que hoje, não tem termo de comparação, e não ofereciam riscos para um rapaz que cuidasse de sua pureza.
Eu só uma vez me aconteceu de quase cometer um escândalo num baile, que eu conto daqui a pouco se me lembrarem. E graças a Nossa Senhora eu freqüentei muito esses bailes, nunca tive o menor pecado contra a pureza, de consentimento, de pensamento nem nada, isso é líquido.
Agora, o problema era a saída. Porque havia uma convenção de que quando as pessoas começassem a sair, as famílias voltavam para casa [sem os filhos]. Porque iam o pai e a mãe ao baile juntos - pai, mãe, filhas… O automóvel descia levando o pai, mãe, um filho, uma filha, qualquer coisa assim ─ ou às vezes não vinha o chauffeur, mas vinha o filho guiando ─, vinham uns banquinhos na frente para [as crianças se] sentarem, vinha muita gente dentro do automóvel - filhos, filhas, desciam juntos e entravam dentro do baile.
Mas quando era a hora de ir embora, no baile de carnaval, os rapazes nunca voltavam com as famílias, porque as famílias sabiam que o rapazes iam para a perdição. Os rapazes que ficavam ali à espera de outros amigos trazerem automóveis, etc., etc., ficavam vendo quem ia e quem não ia. Ora, [em] todo baile de carnaval, na hora de ir embora, eu não estou entre eles. “Onde é que o Plinio foi?” Aí havia o risco de um convite para o mal: “Plinio, vamos?”, se eu não saísse um pouco antes de todo mundo começar a sair, e discretamente como um trânsfuga…
(Sr. Guerreiro: A partir de que idade isso, Senhor Doutor Plinio?)
Dezesseis anos. Bem, outra coisa: era esperar perto da porta minha irmã, meus primos, minhas primas, e lançar eu… às vezes eu pegava no ar, eles já estavam entre si rindo, conversando, preparando para saírem. Meus primos saíam muito discretamente. Eu poderia sair chefiando a gargalhada deles todos, sobre um tema qualquer inocente, primos e primas. E no meio da história embarcar, como quem estava continuando a gargalhada, embarcar no automóvel e sair. Mas nem sempre a gente consegue provocar a gargalhada, criar esse tema, etc., etc.
Então era preciso um cuidado extraordinário para evitar ali um convite que nunca vinha para coisas boas.
Outra coisa: quando minha família convidava gente de fora. Iam em penca rapazes de fora também. Festa de casamento, aniversário, etc. Vinham rapazes de fora, convidados meio automaticamente, as famílias se convidam. Eu devia conversar, fazer as honras da casa, porque isso se dava muitas vezes na casa de minha avó. Eu devia conversar, fazer as honras da casa, ser amável para todos, mas nunca conversar com nenhum a ponto de começar a sair fassurada. Porque a todo momento eu era o cego que ameaçava a bater com o pé na bomba. Quer dizer, é uma vida de uma dificuldade, mas de uma dificuldade do outro mundo.
Bem, chegou a esse ponto que o último carnaval a que eu assisti, eu cheguei… eu disse: “É tão difícil esse carnaval, que eu vou fazer o seguinte. Eu vou fingir que estou indisposto - fiz mal porque menti - eu vou fingir que estou indisposto, e passar os três dias de carnaval meio de cama. De maneira que ao menos não tenho esse problema.
(Sr. Poli: Bom, era uma indisposição realmente.)
Ah, bom, mas não… Eu tinha uma saúde à prova de tiro ouviu? Se me dessem uma bala eu tenho impressão que eu tirava com os dentes e jogava no chão, tal era a minha saúde.
Mas era um tormento, um martírio de vida! Eu não tendo feito senão boas ações em minha vida, vivi a vida de um criminoso que fica com medo de ser descoberto a qualquer momento.
* O rapaz casto ficava um pária da sociedade e era tido como um impotente e tendente à homossexualidade
(Dr. Edwaldo: Isso para evitar de o senhor depois passar por uma situação de pária?)
Pária. Porque o rapaz casto era tido como impotente, desde logo. Depois, como falho - era o corolário - daquela personalidade que distingue o varão, em segundo lugar. É, compreende-se que um sujeito que tivesse uma constituição física errada - você é médico, sabe melhor que ninguém - seja um homem sem força de vontade, etc., etc. Ao menos se compreende que essa máfia pegaria como corisco.
Depois, outra coisa, como indivíduo tendente à homossexualidade. E para dizer tudo de uma vez: homossexualidade passiva por não ser capaz exatamente… então, prestando-se à homossexualidade passiva. Em ambiente de meninada, você dirá: “Mas não tem base científica”. Para a criançada eles nem estão procurando a base científica, eles estão com raiva do homem puro e mafiam. Está acabado, não tinha mais nada!
Bom, mas isto para um menino é pior do que, se por exemplo, ele fosse reprovado em todos os exames, qualquer coisa, não havia pior do que isso. A minha situação seria pior do que a do menino mais cafajeste e mais marginalizado no Colégio São Luís. Quer dizer, seria uma perseguição invencível.
Bom, e o método. O método era a aplicação de regras de cortesia, de modos de agir, de captar a simpatia, etc., etc., vindas da tradição familiar, alguma coisa incorporada da fräulein Mathilde, alguma coisa de recursos intelectuais vindos do lado paterno. [Eu] tinha feito um cuscuz de tudo isso, adaptado ao grau em que as coisas modernas do tempo permitiam. E está acabado. Apalpando o terreno. Não tinha outro método.
Foi por isso que eu insisti tanto na descrição da situação. Porque ninguém compreenderia isso que é feito experimentalmente de situações, ninguém compreenderia se eu não tivesse dado antes a teoria da situação. Seria uma coisa errada, uma bobagem.
Uma vez eu li um dito de Napoleão que dizia…
(…)
* Quando o Sr. Dr. Plinio era aluno no Colégio São Luís os padres nunca o procuraram realçar em nada
(Dr. Edwaldo: O senhor deu a posição do senhor em relação ao Clero. Qual era a posição deles em relação ao senhor?)
Era o mesmo NANE. Nunca me procuraram realçar em anda, nunca me procuraram distinguir para nada, nunca fui nada em Congregação Mariana, nem nada disso, do que no último ou penúltimo ano que eles elegeram a diretoria - era os próprios congregados que elegiam. Aí o Padre [Roumanile?] ─ um padre francês ─ me chamou com ares assim muito doces, etc. Pegou a minha mão entre as dele, de modo inteiramente decente ─ ele era um homem decente ─ e me disse assim: “Plinio, houve agora um eleição para a Congregação e eu pergunto a você: você acha que você foi eleito para algum cargo ou não?” Eu pensei um pouquinho e disse: “Não sei, não tenho idéia!” [Ele:] “Pois eu tenho alegria de comunicar que você foi eleito para conselheiro da Congregação!”
Era um cargozinho secundário ou terciário. “Ah, muito obrigado, etc., etc. Hehehe!” Era a grande honra!
(Sr. Guerreiro: Mas isso depois que o senhor conheceu o Congresso da Mocidade Católica?)
Não, no Colégio.
(Dr. Edwaldo: Mas eles estavam vendo tudo.)
A minha impressão é de que estavam vendo.
(Sr. Guerreiro: Com que idade, mais ou menos, Senhor Doutor Plinio?)
Uns quatorze ou quinze anos, mais ou menos.
(Sr. Fernando Antúnez: O senhor disse que uma vez num baile de carnaval, o senhor quase provocou um escândalo…)
* Fatinho do Sr. Dr. Plinio dançando com uma moça num baile de carnaval e tomando um susto ao pensar que ela era tuberculosa
Ah, foi uma outra coisa. Eu [estava] dançando com uma moça, e em certo momento ela me disse: “Eu estou vindo de Campos de Jordão…” E eu tinha uma noção da tuberculose completamente arcaica! [Risos]
… completamente arcaica. A fräulein Mathilde me contava de dois irmãos que ela tinha, que tinham morrido de tuberculose… Mas no tempo da fräulein Mathilde! Uma coisa arcaica! E que tinham morrido com falta de ar.
Eu, agora, de falar em falta de ar senti falta de ar, é uma coisa… Deve ser um reflexo nervoso, imagino, não sei o que é, mas fala de falta de ar, eu fico assim: “Ahhh!” Bem. E tinha portanto pavor de me faltar o ar. Ela disse: “Eu estou vindo de Campos do Jordão”. E Campos do Jordão começava apenas a ser uma estação climatérica para não doentes.
E quando ela disse, eu [pensei]: “Essa mulher está tuberculosa, e ela está falando aqui”… Os casais dançavam abraçados, assim meio de lado, eu [pensei]: “Ela de repente me passa essa doença! Eu vou pegar essa bruxa e plantar aqui… aconteça o que acontecer, eu vou plantar essa bruxa aqui, mas eu ficar com falta de ar, não fico”. Eu olhei para ela assim de soslaio e ela continuando a falar que era uma roda que ia passear… bobagens que se contam nessas ocasiões. Eu pensei: “Mas eu já vi essa mulher dançando com muita gente aqui. E ela vai continuar… Ela com certeza já contou isso para uma porção de gente, ninguém [a] largou no meio da sala. Agora, se eu largar no meio da sala, ela vai chorando para o lugar onde está a família dela… [Vira a fita]
“Então o que eu vou fazer? Ah, vou acabar de dançar… Não tem remédio. Mas vou ou não? Largo ou não largo?” Afinal acabou a dança… a carreguei até o lugar dela…
(Sr. Guerreiro: E foi respirar lá fora…)
Seria a conseqüência lógica do fato, do caso. De fato eu não me lembro do que eu fiz. Depois as coisas eram assim…
(…)
* Até ao Tratado de Yalta era costume um homem que tivesse um pouco de inteligência fosse um polemista ─ os contatos do Sr. Dr. Plinio com os meios intelectuais eram sempre polêmicos
… ler o Delassus, eu li como quem lê um livro que já conhecia. Porque a hipótese da conjuração nunca me tinha passado pela cabeça, mas lendo o livro eu ia vendo a descrição de minha vida. E entrou de modo mais natural do mundo. Natural.
(Sr. Guerreiro: … uma ocasião para desenvolver a luta contra ele. É isso mesmo?)
É bem isso. Agora, esta tática de luta contra ele você pode me perguntar como é que nasceu. Um pormenor ao qual tenho feito referência, vocês já me ouviram falar até disso, mas são episódicos e tão esparsos que eu não sei até que ponto ficaram no espírito de vocês. Mas até o Tratado de Yalta, o costume era que um homem que tivesse um pouco de inteligência e um pouco de leitura, era um polemista. E que ele vivia em polêmica a respeito de suas próprias idéias. E ser um polemista era a atitude de um homem que ficava bem para ele como, por exemplo, usar bengala e uma bonita bengala. A bengala era um substitutivo, ou substituto, da espada do gentilhomem de Ancien Régime. Ela tinha uma atitude simbólica no atediamento de um homem, na linha de conduta de um homem - tinha uma atitude simbólica.
Ser polemista, discutir, engalfinhando-se com as idéias dos outros, desde que não tocassem em dois ou três pontos, isto só ficava bem para um homem. Portanto, a arte de polemizar eu tinha aprendido desde pequeno!
(Sr. Guerreiro: Mas nesse período que o senhor descreveu o senhor usava muito a polêmica?)
Ah, muito! Eu falei pouco dela porque não veio muito a propósito, mas quando eu falei de meu contato com os meios intelectuais - intelectuais, o que pode ser intelectual de menino? Vocês me entendem o que é isso - era na polêmica. E na polêmica era a respeito da questão de monarquia, questão… tudo o que não metesse o pé na bomba! Então questão de forma de governo, mil coisas em que eu tomava posição de um outro modo… Religião muito, discutia muito religião, e no duro, tomando a posição católica total! Mas também só havia a posição católica total, não havia outra. Ainda eram os reflexos do ambiente de São Pio X. Quer dizer, progressismo, modernismo, nojeira, não tinha nada disso. Aliás, vocês ainda pegaram esse ambiente.
Então, era ali, batalha! E tido como batalhador duro e temível! Agora, a arte de batalhar como era, como é que depois a transformei, isto posso narrar agora, posso narrar depois, quando vocês quiserem, mas a polêmica era uma coisa completamente diferente de toda essa estratégia que eu seguia.
(Sr. Guerreiro: Qual era o cenário em que o senhor usava a polêmica, não era o social?)
Não, no social às vezes. Mas normalmente não era, porque não era o ambiente. O pessoal de sociedade não está reunido para fazer coisas dessas. Mas…
(Sr. G. Larraín: Mas na Faculdade, sim?!)
Sim, antes de eu entrar para a Congregação Mariana - depois na Congregação Mariana muito mais -, já aí eu era muito polemista e polemizava muito. Mas em que rodas? Em rodas da Faculdade de Direito. Havia um café ali perto da Faculdade onde todo mundo freqüentava e eu ia lá na roda ─ rodas, tinha uma roda que eu freqüentava mais do que outras rodas - eu discutia a berros, se fosse preciso, a plenos pulmões. Mas quanto mais fosse a [berros?], melhor ficava.
Bem, a discussão era puxada como eu ouvia em casa de vez em quando contarem discussões de Vovô Gabriel na camarazinha Provincial de São Paulo. E depois o eco de discussões de parlamentares do Império. Era o melhor modelo que eu tinha a meu alcance, porque os parlamentares da República eram uma tristeza… os antigos! Os mais recentes brilharam, deram tudo, tornaram o Brasil célebre… Os mais antigos eram… Se contava em minha casa uma história que era assim.
Havia um restaurante em Santos de comedoria meio popular, e estava almoçando nesse restaurando o líder republicano, descendente do José Bonifácio de Andrada e Silva, que foi quem trabalhou pela proclamação da Independência do Brasil. Era um restaurante português - em Santos os restaurantes todos eram portugueses - com a pia de lavar as mãos na própria sala do restaurante… As pessoas lavavam as mãos… coisa que eu nunca fiz foi usar o sabão comum… Bem, mas eles usavam, lavavam e tal.
O Martim Francisco de Andrada e Silva, estava comendo e viu um homem entrando, e dizendo para o dono do restaurante: “Olhe, me prepare logo alguma coisa para comer e muito, porque estou com fome, estou com fome”. O Martim Francisco que não conhecia o homem, gritou da mesa dele: “O senhor é republicano?” Interrogou… O homem disse: “Porque pergunta?”
[O Martim Francisco:] “Porque se está com essa fome, só sendo republicano!”
Entendem de que fome se trata não é? Os republicanos não ofereciam nada nesse gênero!
Vocês dirão: “Mas, o Rui Barbosa?” Era um estadista do Império. Migrou do Império para as cocheiras da República, mas não era…
* Quando o Sr. Dr. Plinio ia a uma festa e começava a polemizar, todos os rapazes saíam do baile e iam assistir à discussão, deixando as moças sentadas
Bem, e eu um pouco aprendi desse sistema. E usava: pam! E isto tinha muito êxito! O Fernando F. contava, no tempo em que eu acho que ele ainda não era congregado, que ele tinha me visto numa festa. Isso para ver as polêmicas… Ele exagerava dizendo que em todas as festas era isso, era exagero dele. Mas que ele viu-me começar a discutir com os rapazes no salão da família, e depois passar para uma sala contígua meio vazia. Todos os rapazes pararam de dançar para irem assistir o meu modo de discutir, e as moças ficaram sentadas!
Este fato é estritamente verdadeiro. O baile parou e eu não percebi. Parou, porque os homens foram todos assistir à conversa. E daí a pouco chegou uma senhora de uns 40, 50 anos: “Ahahaha! Olha eu vou propor uma brincadeira muito engraçada, etc., etc.” O pessoal disse: “Qual é?” E eu prontamente cessei a conversa, para desfazer a roda, porque eu não ia parar a festa na casa… Uma porção de moças casamenteiras ali iam ficar sentadas vendo os…
Então eu disse: “Ah, muito interessante, tatatá…” Atrás dela veio um criado trazendo um pára-vento. Ela pôs o pára-vento em certo lugar e disse: “As moças todas, vocês, venham cá…” Entrou o tropel das moças casadouras. Ficavam escondidas atrás do pára-vento, e com a mão de fora, por cima do pára-vento.
“Agora, escolham pelas mãos!” E para me amarrar bem, ela disse: “Para você Plinio, eu vou indicar a mão, ahahah…” Eu pensando: “O que é que vai sair!” Ela me mostrou uma mãozona assim… ahahah! E a gente devia ir puxando a moça pela mão, ela saía detrás do pára-vento… Era a surpresa. Saiu-me uma leoa, com um cabelo preto enorme assim, formando uns tufos colossais, e uma cara… Sabe esses leões de mármore, rebarbativos? E assim… eu olhei para ela, quase mais alta do que eu - e eu para a minha geração sou um homem alto - e disse: “Sim senhor! Que abacaxi! Vamos dançar?” Ela não queria outra coisa… começamos a dançar. Depois eu nunca mais vi, nem sei como chamava, não sei nada… Ahahah.
(…)
… que é o seguinte: você tomando a conduta da TFP em relação ao mundo aí fora, é uma conduta muito parecida com esta.
(Sr. G. Larraín: Era justamente o que queríamos perguntar. A analogia entre a luta do senhor quando menino e moço, a luta que o senhor tem hoje, é muito grande.)
Muito grande.
(Sr. G. Larraín: E não sei se o senhor poderia tratar hoje da questão do livro que o senhor está escrevendo, e que o senhor propôs ontem no MNF…)
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