Conversa de Sábado à Noite – 5/9/87 – Sábado . 13 de 13

Conversa de Sábado à Noite — 5/9/87 — Sábado

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Mesmo nas famílias de uma superioridade excelsa, encontra-se lados prosaicos; o mesmo se dá com certos homens * Nós todos fomos habituados à idéia de que em nossas famílias não há prosaísmos * A bola de gude que por um dom miraculoso fosse transformada em pedra preciosa: imagem do batismo * Análise que o Senhor Doutor Plinio faz de sua infância, das tendências a combater; comenta duas fotografias de pequeno * Comentário sobre uma fotografia: Calma, sem torcida nem invejas * “É meio diminutivo estar vestido com primor, isto é para mulher, homem tem direito de um certo “negligé” * Dr. João Paulo não contribuiu para o enriquecimento da família. Como ele chegava em casa às tardes * Ter boa família, educação primorosa, inteligência soberba, todos esses valores eram ignorados, o que valia era o futebol * Ter bicicleta, moto, carro, ser piadista, isso era o que valia para os meninos do Colégio São Luiz * Ponta de trilho para a próxima reunião: como as técnicas de luta que nosso Pai e Fundador adotou naquele tempo serviu mais tarde para a TFP

(Sr. G. Larraín: … é o pressuposto para podermos compreender toda a teoria da ação que o senhor construiu.)

Com toda precisão é isto. Agora, eu acharia mais interessante, preferível, em vez de dar assim uma coisa pessoal, eu fizesse uma coisa que me ocorreu durante a semana, a situação da TFP. Tomada a TFP como um ente coletivo, uma definição da situação da TFP.

Essa seria uma clave — seria tratada na clave da reunião de sábado à noite.

(Sr. G. Larraín: É que a Conversa de Sábado à Noite é muito personificada. O pecado nosso era de ser muito afeitos à doutrina, e pouco atenção na pessoa. Então o empenho nosso seria voltar para a pessoa.)

* Mesmo nas famílias de uma superioridade excelsa, encontra-se lados prosaicos; o mesmo se dá com certos homens

Bem. Eu então entro. Aí vamos entrar. Eu precisaria declarar duas coisas prévias, que dizem respeito a todo homem, três coisas. A primeira coisa é a seguinte: Se qualquer um de nós por uma razão qualquer entrasse na intimidade de uma família qualquer, excelsa, fosse lá qual fosse, quando a gente entra numa intimidade de uma família, a gente pode — se é uma família muito superior — a gente sente essa superioridade, depois a gente sente com gáudio se tem espírito católico, sente com alegria, mas não há — eu suponho pelo menos — uma família, na intimidade da qual a gente não extranhe inferioridades e prosaísmos. Não existe portanto o que as pessoas consideram, imaginam habitualmente, uma família em tudo superior a todas as outras. A condição humana não condiciona isto — pelo menos em famílias, eu acho que em todas famílias — é mais ou menos isto.

A mesma coisa com um homem. A gente se aproximando muito de um homem — seja ele quem for — tirando naturalmente — bem, nem menciono, está superior a toda menção, o Homem-Deus — ou homens como por exemplo, São José, São João Evangelista, São João Batista etc. São pessoas tão altas, tão altas, que se pode imaginar — alguns teólogos imaginaram — que eles foram limpos do pecado original logo depois de terem sido concebidos, quer dizer, foram concebidos no pecado original, mas foram limpos do pecado original logo depois. Quer dizer, uma coisa extraordinária!

Então com pessoas dessas, eu compreendo que nós não sentimos prosaísmos, mas se nós tivéssemos que viver na intimidade com qualquer outra pessoa, de qualquer alto padrão que fosse, nós sentiríamos de repente uma coisa que extranharíamos.

Ora, quando uma pessoa dá a sua própria situação, ela não tem a noção das impressões desse gênero que ela pode produzir, ou se tem, tem uma noção a près pré, porque não entra aqui uma questão de amor próprio, mas entra um ponto de referência. Não havendo ponto de referência a gente não chega a ter uma noção exata disso, e daí decorre que no nosso convívio, por exemplo, qualquer um de nós pode ter tido uma idéia de defeitos, ou prosaísmos dos outros ou de um outro, que aquele outro não tem, e pode com toda a ingenuidade dar uma tabela de sua situação onde o que chia de inferioridade não está presente.

Mas é que no ambiente em que ele esteve, se formou, freqüentou etc., aquilo não era tido como prosaísmo, ou não foi notado, ou ele foi formado por gente ou muito indulgente, ou um tanto relaxada que não ensinou isto a ele. Então fica sem aquela noção. Está acabado.

* Nós todos fomos habituados à idéia de que em nossas famílias não há prosaísmos

E é preciso que a pessoa ao medir a sua situação tome isto muito claramente em linha de conta. Quer dizer, quem fala deve tomar isto em linha de conta, que ele não vai apanhar toda a realidade, porque há esses pontos. Mas quem ouve sobretudo deve tomar em linha de conta, lembrando que se quem ouve fosse falar, não notaria os seus próprios prosaísmos.

E nós habitualmente ficamos indignados imaginando que um outro comentou um prosaísmo nosso. Porque todos nós fomos habituados a idéia, que nossas respectivas famílias não tem prosaísmos. São escolas perfeitas e acabadas do modo de ser etc., etc., não têm prosaísmo. Prosaísmo, defeitos familiares de outra natureza.

Então eu acho que ter indulgencia para com quem fala, tomando em consideração que possivelmente outros devessem ter indulgencia conosco também, me parece uma coisa muito, muito necessária.

Com o que ri, meu filho?

(Sr. CP.: Nunca ninguém pensou coisa parecida na vida.)

Eu não sei se Saint Simon não pensou isto. Se Proust não pensou. Nos nossos países sul-americanos talvez!

Mas vamos tocar para frente. Mas já em Portugal não é! É claro! Quem poderia negar uma coisa dessas.

Bem, vamos tocar para frente. Esse é um ponto.

Agora, há um outro ponto, que é o seguinte: O homem se quer estudar a sua situação, não tem remédio, em via de regra — há exceções — eu vou tratar dessas exceções daqui há pouco. Mas em via de regra ele tem que tomar como ponto de partida, sua situação de família, mais que sua situação individual. Com a complexidade de sua situação de família, o que for. Porque ele nasce com as características da família, e é carimbado pela influência da família. A sabedoria dele consiste em retificar o que a influência da família não tem de bom, conservar o que tem de bom, e construir-se a partir disso.

Há indivíduos que não são assim. Na hierarquia social — eu estou falando debaixo desse ponto de vista — na hierarquia social, há pessoas que são deteché, uns detritos, e que têm um peso específico maior do que da família. De maneira que elas nascem e já começam a afundar, para varar várias categorias e descer. Eu conheci quanta gente assim. E tem outros que são uma espécie assim de em ponto pequeno, individual, de balões Montgonfier, quer dizer, se alguma coisa corta a [marra?] deles, eles sobem. E se incorporam inteiramente para o meio para onde vão.

Há portanto situações diversas, quer dizer, exceções, as exceções são raras. E mesmo na vida do indivíduo excessional, quer para baixo, quer para cima, alguma coisa do que foi fica. Não tem por onde escapar.

* Não devemos considerar o homem como um produto da arquitetura genética. Há sempre algo individual que caracteriza o indivíduo

A coisa é o seguinte: é que essa condição da família, era muito mais marcada no tempo em que eu comecei a tomar consciência de minha situação. O mundo ainda era mais hierárquico, era mais tradicional, etc. A São Paulinho ou era muito dentro do Brasil, e tudo isto junto constitui, carregam ainda mais a perspectiva dentro da qual eu vou falar.

E depois — eu deveria talvez não ter falado isto no fim, mas eu acho que é mais real, a gente quando tem uma folha de papel escrita, a gente tem o papel, tem a tinta, e tem o texto que foi escrito. A coisa mais nobre é o texto, mas é o que sai no fim, a gente antes olha para o papel, depois olha para a tinta, e só depois é que escreve!

Assim também, a gente toma as coisas que valem menos, e depois só é que pega as coisas que valem mais.

Há o indivíduo… Evidentemente há. A gente não pode fazer uma análise de um indivíduo como se fosse uma espécie de produto de arquitetura genética. Então: do pai tirou isto, do avô aquilo, do bisavô não sei o quê, e foi feito um mosaico, que deu aquele sujeito! Há algo disso em todo mundo, mas em todo mundo há uma nota inconfundível que é ele próprio! Pessoa humana, criada a imagem e semelhança de Deus, para dar a Deus uma glória independente de todas as influências de família e disso, daquilo, daquilo outro, ele vai dar e só ele. E que é preciso considerar nele.

É tomando isto assim em consideração é que a gente pode ver as coisas como são. No ele, entra o católico. Porque ninguém nasce católico, é batizado. Mas todo o mundo nasce em ordem a ser católico. E se é batizado, tem a fé católica, há uma elevação dele, para uma coisa que ele nunca seria sem isto, mas que é a plenitude dele mesmo. É uma coisa difícil de explicar, mas é assim.

* A bola de gude que por um dom miraculoso fosse transformada em pedra preciosa: imagem do batismo

Imagine uma bolazinha de gude, dessas de crianças brincarem que é feita de vidro, fabricada aos milhares numa fábrica etc. Mas alguém tem o dom miraculoso, por onde — imagine uma bola de gude cor homogênea, transparente de cor homogênea — uma pessoa possui um dom maravilhoso, por onde jogando uma gota de certa água benta sobre a bola de gude, ela vira pedra preciosa. Uma pedra preciosa parecida com a bola de gude, mas não é a mesma coisa. Isto se dá com o batismo.

Nós nascemos bolas de gude, e bolas de gude estragadas pelo pecado original. Batizando é aquilo mesmo que é elevado a outra ordem, e realiza um super destino, e não mais um destino comum. E quando se fala de situação etc., precisa tomar tudo isto em consideração. Até que ponto o sujeito é a bola de gude que ele sempre foi, e até que ponto existe nele algo em transformação de pedra preciosa, e quanto por cento ele tem de gude, e tanto por cento ele tem de pedra preciosa, na metamorfose que ele vai sofrendo por ação da graça.

Esses são os elementos principais que é preciso tomar.

Bem, tomando isto, eu acho que talvez fosse o caso de tomar em consideração a mim como pessoa, depois então as circunstâncias de família, isto, etc., e bumba! A Revolução. E é a luta contra a Revolução, quer dizer, tomada a situação, a luz contra a Revolução.

* Análise que o Senhor Doutor Plinio faz de sua infância, das tendências a combater; comenta duas fotografias de pequeno

Eu já disse a vocês na reunião passada, que eu conservava de minha infância, durante muito tempo, até a pouco tempo atrás eu conservava de minha infância, de minha primeiríssima infância uma idéia incompleta; a lembrança que eu tinha justa, verdadeira de um menino extremamente mole, hipersensível, não no sentido comum, ─ nervoso eu nunca fui ─ mas hiperincompatível com qualquer dor, com qualquer sofrimento físico, e até com qualquer esforço e portanto um menino muito pouco afeito à luta , muito pouco afeito ao combate, etc, etc. A luta para me tornar um homem forte, como sendo uma das grandes lutas da minha vida.

Mas numa ocasião olhando assim… Ah! eu inseria nisso uma grande ingenuidade, por uma visão otimista da vida, otimista das pessoas, daí uma grande ingenuidade.

Bem, e a luta que eu tive para estabelecer uma teoria da desconfiança, e aplicar esta teoria por toda parte como uma constante da vida, como meio da luta. Sem isto eu não teria sido quem eu sou; teria sido outra coisa mas o que só não teria sido.

Não sei se é bem deste tema que vocês querem tratar?

(Sr. –: Exatamente esse.)

Bem, olhando algum tempo atrás uma fotografia minha sentado numa poltroninha que parece assim um bureaux de advogado feito para criança de 3 anos; ou um troninho feito para criança de 3 anos. Há muitos anos que eu não olhava aquilo, aquilo me caiu numa vista assim; eu olhei e percebi de repente uma atitude em mim mesmo, uma mão para frente e outra para trás, a boca aberta em atitude de análise ─ não é a boca aberta do bobo ─ não é isto não. Atitude de análise e… Eu percebi que existia em mim, muito antes do que eu imaginava, uma pessoa na qual estava isto marcado; eu percebo que eu vou ter que lutar, percebo que eu vou ter dificuldades, percebo que vai haver malandragens e coisa comigo, muita já não me está cheirando bem. E em certo momento eu vou vencer esta preguiça e vou me pôr numa luta, porque do contrário me liquidam e isto eu não quero, ser liquidado não!

(Sr. J. Clá: Já nessa idade.)

Já nessa idade. Mais ainda: Há uma fotografia de mamãe comigo no braço. O João teve a boa idéia de ampliar a fotografia de mamãe; mas estava sujeito a condição catastrófica de automaticamente ampliar a minha também, uma vez que eu estava nos braços dela ! E olhei para a minha micro-cara, engrandecida, assim aumentada — engrandecida no sentido quantitativo da palavra, aumentada — e percebi, de criança de braço, um olhar seletivo e feito para distinguir; separar as coisas e pôr em ordem; confiando nos braços maternos, onde eu estava com a maior confiança, eu olhava para fora com olho dubitativo e analítico. Não é dizer que eu estava analisando, porque não era possível, mas era matéria prima para ser um homem muito analítico, desconfiado que estava ali.

* Em contraposição às tendências: “Eu entrei na vida dizendo o que eu disse para o meu tio Nestor”

Então vocês tomem: muita inocência, muita ingenuidade, muita moleza, muita afetividade: mas ao mesmo tempo uma idéia, o que é meu é meu! Há certas coisas que na vida eu quero, não mexam com isto, porque dá encrenca, eu não cedo, a coisa vai para frente porque eu não cedo! Eu acabo impondo o que eu quero!

E para isto eu percebo que eu sei distinguir, que eu sei raciocinar, e que portanto em certo momento, quando esta preguiça desaparecer eu vou jogar, mas eu já não estou gostando muito, eu entrei na vida dizendo o que eu disse para o meu tio Nestor, aos 3 anos e pouco ─ lembrem-se que ele foi me passar um pito…

E aqui vocês vêm (foto), está tudo presente aí! É isto! Porque pelo meio um menino que não quer ceder hein?

(Sr. Nelson Fragelli: Aí tem atitude de quem vai tomar posição e vai ter encrenca.)

É. Não estou tomando, mas vai dar encrenca.

(Sr. Nelson Fragelli: A posição do braço é de quem manda.)

É isto. E depois: Não chegue perto! Confiança comigo não quero!

Aqui você vê nessa foto o seguinte ─ a meu ver ─ o lado da inocência está muito marcado, está de modo saliente. A debilidade, a moleza, a preservação, Jacob a conta inteira; mas vocês já percebem mesmo nessa fotografia ─ na outra tirada em Paris ─ já percebem uma espécie de “finasserie” eu dou um jeito nisto! Porque aí tem algo como quem diz: Eu dou um jeito nisso. Esse jogo, que no seu todo me pega de algum lado; não era ainda Revolução, nem eu pensava isto da vida, era uma matéria prima que começa a respirar.

(Sr. J. Clá: E nessa aqui?.)

Aqui, vai sair encrenca! Bom, mas é matéria prima, quer dizer, eu ainda não estou posto na encrenca, mas já vou sentindo! Como é esta história aqui?

(Sr. –: Essa aqui é extraordinária. Os ares da França já estavam absorvidos.)

Você está vendo aí que eu estou absorvendo a França inteira, mas inteira. E a França da “Belle Époque”, eu estou uhuhumm! Assim inalando! Que coisa formidável, etc. E não hesito em dizer: Me afinando. A propensão para a reação se nota no seguinte: a desproporção entre a testa e a parte alta da cabeça e o tamanho do rosto; uma criança testuda e voltada para a reflexão, não é bobinho que começa a brincar, não tem nada disso! Eu vou pensar! Vocês não perdem por esperar! Eu chego até lá!

(Sr. J. Clá: Essa é impressionante, eu nunca vi bêbe assim já pensante!)

Quer dizer, um olhar é de “détresse”, mas outro… entende?

A parte física está largada nos braços de mamãe, com delícias, hein, eu estou muito sentindo o carinho dela, e estou me entregando, mas isto é um lado; há um outro olho…

(Sr. CP.: A Senhora Dona Lucilia comentou alguma coisa do senhor nessa época?)

Nunca! Nem ela gostaria que eu me comentasse, nada!

(Sr. G. Larraín: Ela está encantadíssima, derretida.)

Está. Ao pé da letra ela está derretida. Apenas essa fotografia, ela saiu muito queimada, a cútis dela era branca.

(Sr. G. Larraín: Já tem alguma gerações de Senhor de Engenho.)

* Comentário sobre uma fotografia: Calma, sem torcida, nem invejas

Tem. Não tem dúvida que tem. Por exemplo vocês analisem essa fotografia, não encontram por exemplo, um temperamento odiento, nem persecutório, nem por exemplo, capaz de ter estouros; nada. Uma pessoa calma, a calma está aí presente inteira. Nesse menino de Paris por exemplo, uma criança calmíssima, mas fazer de bobo, não! Sem encrenca, sem estouros, saiba que por aí a coisa não vai. Você pode me matar, pode ser, mas me levar para onde eu não quero; não leva! Isto entenda bem, é assim!

Agora, não tem por exemplo, inveja. Não tem senso de comparação. Não tem pesar de que outro seja mais, nada disso. Eu sou quem eu sou, graças a Deus; sou tendente a encher inteiramente o espaço que coube para mim na vida, e talvez expandir-me para além como um olho olha para fora da janela. Mas não a ser mais do que eu, subir, olhar mais do que um outro; isto vocês não encontram. Nenhuma destas agitações nem em germe, aí não estão; graças a Deus não estão presentes. Uma coisa que está ausente totalmente é a torcida. Essa criança não torce, ela pode deliberar, torcer não. Ela tem um horror à torcida. Nervosismo comigo não! phistsset! fora! Calma, vida normal, agora vamos ver!

(Sr. CP.: Muita harmonia com a retidão do senhor.)

Graças a Deus. Sem a inocência tudo isto estaria mareado, estaria menos lógico, mesmo concatenado; é evidente, isto é a inocência. Mas também com os efeitos do pecado original inscritos aí dentro, não poderia deixar de ser.

Bom, vamos para frente. Há uma tendência para a megalice aí? Uma pergunta que se poderia fazer.

A resposta é a seguinte: As fontes da Revolução, megalice e impureza. Há uma tendência para a megalice aí? Depende do que se entenda por megalice. Se a megalice é a idéia: eu sou: tá-tá-tá, então imaginar-se mais do que é; eu não vejo essa tendência, e nem sinto. Se existe outra tendência que é: eu percebo que a partir do que sou, isto abre avenida para uma coisa muito maior do que eu sou; não chamo isto de megalice, mas isto está aí dentro. Quer dizer, se alguém chamar isto de megalice, pode chamar, porque então é mega! Eu era mega. Mas se chama no outro sentido de megalice; não tem nenhum pouco.

* “É meio diminutivo estar vestido com primor, isto é para mulher, homem tem direito de um certo “neglig锓

Vocês peguem essa fotografia desse menino em Paris, vocês notam duas coisas, eu estou vestido por mamãe, a Fraulein Mathilde não estava ainda em casa, com muito cuidado eu estou com uma boa roupa de gala, daquele tempo em que a criança usava roupa de gala, e estou consciente disso; mas meu relaxamento já aparece, há umas pontas de renda que não estão acertando bem, etc. Mas eu estou seguro como se eu acabasse de estar arranjado na hora. Pela idéia que está aí de que o homem ─ idéia em si instintiva ─ que as pessoas exageram o valor da roupa, e que se a pessoa é bem posta de cabeça como deve, a roupa fica um acidente. E que é até meio diminutivo estar vestido com primor, isto é para mulher, homem tem um direito de um certo “negligé”, o homem não tem direito à sujeira, ninguém tem, mas a um certo “negligé” tem. O normal é isto.

Vocês notam que tem umas partes da roupa aqui, que está meio “negligé”, ninguém conseguiria de mim que eu usasse sempre tudo direitinho, como uma menina usa, uma menina anda com a preocupação de não estragar a roupa. Meto-me na roupa, depois esqueço que a roupa existe…

(Sr. Nelson Fragelli: Em presença de um absoluto, não há nada de colateral.)

É bem isto. E o resto é secundário, porque vem-me a mim daí uma coisa ─ eu vou chegar ao ponto ─ é que se os outros tivessem também, nos tornaria todos incomparáveis, e se eles não querem ser incomparáveis, cada um de per si, eu vou ser por minha conta! Também muita segurança. Esse menino não é inseguro, não é intimidável, não é nada, faz a coisa que tem que ser feita, é natural, é isto mesmo!

Agora, um certo fundo ─ eu passo agora para…(…)

O valor desses dons porque achava que não se toma isto em consideração, tomar em consideração, se tomava em consideração era ter um bom nome paulista, era ser um rico, muito bem vestido, e um pouquinho normal, comum, etc.; isto abria todas as portas.

(Sr. G. Larraín: Nunca um homem de muitas idéias.)

Nunca um homem de muitas idéias, se tem, fique quieto porque não cabe bem, é próprio a aluno cafajeste da Faculdade de Direito, ser muito inteligente, mas a você não pode caber; seja burrico…

Imperativo, imperativo e categórico. Bem, aqui está por exemplo, no começo da vida uma situação; definida cruamente com todas as suas circunstâncias.

* Dr. João Paulo não contribuiu para o enriquecimento da família. Como ele chegava em casa às tardes

Mamãe, a mais pobre das filhas de minha avó; porque meu pai não trouxe um tostão e trabalhava muito pouco! As 5 horas da tarde em ponto ele estava chegando em casa! Cansado, porque tinha vindo de bonde do centro da cidade, isto cansava muito. Com 2 jornais debaixo do braço que eram os vespertinos do tempo chamados, a Platéia e o Diário Popular, Diário Popular ainda existe, não era o que é hoje, era um bom jornal, a Platéia era um pouco popularesco, ele trazia os dois jornais, jogava-se em uns móveis de couro e gemia, ahhh! depois puxava os óculos e começava a descansar, esse descanso ia até o dia seguinte, às duas da tarde, quando ele deixava a mesa do almoço e ia “trabalhar” na cidade, quer dizer, não ganhava quase nada, uma saúde esplendorosa conservada com cuidado extraordinário; mas isto é o contrário do sacrifício! E os filhos dos homens que se sacrificam pouco, sobem pouco, ele é o contrário do homem sacrificado.

Portanto, tendo que fazer prevalecer ─ porque prevalecer? Daqui a pouco eu trato disso ─ fazer prevalecer na primeira fileira uma situação na qual eu tinha um direito evidente e fácil por alguns lados, mas por outros lados, desagradáveis.

Uma situação analisada por um menino mas era uma situação.

Eu adotei maior instintivamente, meio pessoalmente o sistema de ir formando para mim um vocabulário , o qual vocabulário não chegava a ser pedante, e não era tão distante dos meninos de sua idade que os repugnasse, mas ia tão longe quanto possível na superioridade, mas uma superioridade natural, uma coisa jogada assim, de maneira que eu pudesse permitir a mim mesmo o luxo de fazer sentir a minha inteligência que eu sabia que era muito maior do que a deles, evidentemente, o luxo de fazer sentir isto e fazer sentir com as características nordestinas, facilidade de expressão, modo de modular a voz, que dá muito mais vida do que ─ não está gravando…(…)

essa que está no sofá aí. Esta fotografia é de uma pessoa que não se diria que tem tudo isto na cabeça, porque é a imagem de um menino completamente despreocupado e alegre, e com a alegria da inocência porque a inocência está presente ali, está transbordante de alegria, está muito alegre.

Na realidade vocês notam entretanto com o sumo desembaraço, indica a contestação de qualquer obstáculo e a contestação de qualquer direito, de que quer que seja para procurar diminuir aquilo que eu sou, eu posso estar contente na vida, não preciso ter mais nada; mas isto eu sou, e isto não é pouco.

(Sr. G. Larraín: Esta foto de algo principesco.)

Agora, creio que vocês vêm aí a inocência. [Vira a fita]

Rapazinho direitinho, não! Pessoa que vai viver, vai navegar muito! de velas…!

Vamos dizer por absurdo, se entrasse o Papa aí, eu me ajoelharia imediatamente, trataria com sumo respeito, mas eu sou eu.

(Sr. G. Larraín: Desembaraço que não se vê nestas fotos de príncipes herdeiros.)

(Sr. Nelson Fragelli: Vê-se muitas sobras.)

Quer dizer, sobre personalidade, sobre inteligência.

Sr. Nelson Fragelli: O senhor não está esticado.)

* Análise de duas fotografias de criança: sentado no sofá, primeira comunhão

Não, não. Em francês diz: “Étriqué”. Não tem nada de “étriqué”. No meu quarto de dormir, de pijama, na hora de me deitar na cama ─ é mais ou menos isto.

Agora, também não descobre nenhum vestígio de prosaísmo revolucionário, não tem nada disso.

Bem, mas o que é interessante aqui, é que isto tudo é a partir de uma reflexão feita a meu modo; não é sentar nesse sofá e ficar refletindo! Mas assim de quando em quando refletindo sobre a minha situação, vocês encontram no que eu estou dizendo aqui toda a situação do que eu estou dizendo: Esse é um fotógrafo de segunda, vocês não podem dizer que este é um menino vestido com luxo, vestido com muita compostura, sim com luxo, nenhum pouco, o sofá é um sofá de segunda e o fotógrafo evidentemente mandou que eu sorrisse, porque é praxe, diz: sorria e olhe aqui para esta coisa aqui que vai sair um passarinho. Não sei se no tempo de vocês meninos…?

(Sr. –: A mesma coisa.)

Bem, então, como eu sabia que mamãe ficaria impressionada se eu não sorrisse, então porque que o filho dela está triste, eu mais estou sorrindo para mamãe do que para qualquer outra coisa.

Não me lembro que tem outra fotografia, ah, tem fantasiado, isto vem depois. Basta isto. Essa é 1ª Comunhão.

Bem, aquela fotografia de cima, naquela entra um pouco de pretensão.

(Sr. –: Na primeira comunhão?)

É, vestido de Eaton, entra uma coisa qualquer e satisfação de estar vestido de Eaton, a 1ª fotografia está mais despretensiosa do que essa, a de Paris também; entra um pouco de pretensão aí. Olha esse pé para frente, por exemplo, o que quer dizer?

(Sr. J. Clá: Esta não.)

Eu não estou vendo muito bem à distância, o tempo mudou!

Não, essa aí eu acho muito pretensiosa, a outra que tem. Essa aqui que eu acho pretensiosa, aqui não tem nenhuma, aqui também não tem, aqui tem uma ponta de pretensão.

(Sr. J. Clá: Não. Vai ver que alguém estava querendo desafiar o senhor.)

Um desafio meio cheio de si! Aqui: não mecham com ele!

(Sr. G. Larraín: Um revolucionário teria mais nó com essa, indica que há algo Contra-Revolucionário.)

* Ter boa família, educação primorosa, inteligência soberba, todos esses valores eram ignorados, o que valia era o futebol

Agora, é esse menino assim, que é jogado dai um ano, ou dois, no torvelinho da Revolução e da Contra-Revolução, jogado assim contrastando com a Revolução ao ponto que vocês estão vendo.

E com as deliberações que vocês estão vendo também. Então, a análise é: Um menino que vai, entra no Colégio São Luís, entra deste jeito. Agora, vamos ver lá como é a situação, e lá qual é a batalha.

Primeiro lugar o seguinte: duas realidades diferentes, superpostas, parece pedante a gente querer imaginar tudo isto na cabeça de um menino, mas estava na minha cabeça, vocês pedem recordações, eu não posso mentir, dando recordações que eu não tive, também não fazer um ar encafifado de caipira: não, não sei, não sei o que! Não vou fazer isto. Faço o que eu faço.

Bem. Mas este menino levava duas vidas. Eu era convidado a me associar a essas duas vidas.

A primeira vida era a vida do colégio, sumamente democrático, igualitário, onde nunca numa conversa se falaria da família de um, ou que, nada disso, a família era um mundo — no mundo discente do colégio — era um outro mundo, duas coisas inteiramente diferentes. E que oficialmente falando, todo o mundo era igual a todo mundo, não poderia diferenciar-se de ninguém, sobretudo se tivesse um título legítimo para se diferenciar, as legitimidades eram todas excluídas.

A legítima superioridade de família, a legítima superioridade de inteligência, a legítima superioridade de educação, enfim, todos os caracteres legítimos eram negados.

Quais eram os títulos de superioridades verdadeiros — negados não, ignorados. Quais eram os títulos de superioridades verdadeiros? Jogar bem futebol, estar ao par de todo campeonato de São Paulo etc.

Havia em São Paulo um jogador de futebol teuto-mulato chamado Arthur Fridenrhaid. Fridenrhaid como vocês sabem, quer dizer: Rico em paz. Mas o pessoal não sabia falar alemão e dizia: Frideraschi, uma pronuncia medonha. Frideraschi era campeão — como o Pelé — campeão mundial de futebol. Então entendendo de clube de futebol essas coisas, uma coisa formidável.

Ter uma namorada era uma coisa formidável.

(Sr. G. Larraín: Nessa idade?)

* Ter bicicleta, moto, carro, ser piadista, isso era o que valia para os meninos do Colégio São Luiz

Nessa idade, com dez, onze, doze anos. Mas a questão é que quando eu entrei para o São Luís, eu já era assim, quer dizer, era esse menino, um pouquinho mais velho, mas igual a si mesmo.

Então, ter namorada ficava muito bem, ficava feio não ter.

Depois era preciso — ao menos ficava muito feio — ter uma bicicleta, coisa que eu nunca me consegui equilibrar numa bicicleta, eu andava bem de triciclo, eu tive bicicleta, até mais de uma, mas eu ia passear no jardim de minha casa e caia. Aquela história, aquele equilíbrio eu não sabia fazer.

Depois ficava bem também ser piadista, contar piadas, contar graças: soube da história do caipira e do tatu? Você conhece a história do inglês com a lagartixa? Você conhece a história… não sei. Assim tinha histórias de todo jeito. E eu não só não sabia essas histórias, mas não queria aprender, porque seria pactuar com a Revolução aprendê-las. E não tinha graça para contá-las. Se eu fosse contar, uma pessoa olhava para mim, hé, com uma cara como se olha uma casa que goteja água, era a cara que eu fazia quando ia contar um anedota, não valia nada para isto.

Ou repartir muito vivo, quer dizer, responder com uma piada, responder com uma palavra brilhante, em que fosse como uma certa… eu poderia responder com um argumento, mas um espírito eu nunca tive.

Agora, essas coisas é que valiam, com exclusão de quaisquer outras… [inaudível] …ficava muito melhor do que ter bicicleta era ter automóvel, ter moto, mas moto de criança, e ter automóvel. Automóvel era uma coisa do outro mundo. Sobretudo se era automóvel, tipo automóvel para criança, assim cor de laranja, essas cores assim, cor de cereja, cor de fruta. Criança ter aquele automóvel, era uma coisa assombrosa de desnortear.

Quer dizer, tudo aquilo que eu tinha, não valia. E tudo que eu não tinha, valia. Horrível ser católico, horrível ser piedoso, horrível dos horríveis ser puro!

Como curiosidade: O mundo de colégio com vocês era assim? Ou não era?

* Depoimento dos presentes sobre a situação semelhante em matéria de Revolução nos colégios que freqüentaram

(Sr. –: Inteiramente assim.)

Mas escola militar não, não é meu Coronel? Jesuítas de porto Alegre?

(Sr. Coronel Poli: Inteiramente assim.)

Paulo Henrique?

(Sr. Paulo Henrique: Inteiramente.)

O Nelson nem ia perguntar! Porque como sei que o Nelson estudou com jesuítas! Tal qual. Se fosse fazer suas memórias de escola, escreveria mais ou menos isto.

(Sr. –: Não existia valores, só contra-valores.)

Valores não havia. Mas esta condenação dos valores aí é que está, é um complot. E meu bom Fernando, hein?

(Sr. F. Antúnez: Inteiramente.)

Você meu filho?

(Sr. Guerreiro Dantas: Do lado pureza os maristas observam, no Paraná era mais preservado. Cada 15 dias vinha um padre para se confessar.)

No São Luís se um padre falasse isto, enchia os corredores e os lados de fora do prédio com caricaturas representando, caçoando, nem sei de que jeito.

(Sr. Guerreiro Dantas: Isto de namorada com onze anos, não existia.)

Mas eu acho que entra preservação do elemento alemão. Meu Gonzalo?

(Sr. G. Larraín: Inteiramente.)

Ribeirão Preto, meu Edwaldo?

(Dr. Edwaldo: A seu modo era isto.)

Qual era o modo de Ribeirão Preto?

(Dr. Edwaldo: Era muito parecido. “Complot” contra a virtude.)

É, era um complot…(…)

que aliás é uma questão muito interessante que eu ponho daqui há pouco. Você meu Pedro Paulo?

(Sr. Pedro Paulo: Inteiramente.)

E na gloriosa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro?

(Sr. –: Somos colegas de turma, era a mesma coisa.)

Eram amigos?

(Sr. –: Nos conhecíamos. Os jesuítas perseguiam os “bonzinhos”.)

Exatamente. Boca lacrada, não podem falar mal. Bem, nunca, não promover em nada. E meu João?

(Sr. J. Clá: É isto, num nível bem inferior.)

* Ponta de trilho para a próxima reunião: como as técnicas de luta que nosso Pai e Fundador adotou naquele tempo serviu mais tarde para a TFP

Vocês vêm como isto demora. E o ponto interessante…(…)

minha vida de família, eu estava adestrado o que se poderia chamar: primeiras armas, por analogia, para a luta com o mundo de fora, e foi nesta perspectiva que eu expus, mas de fato ainda não era o mundo de fora.

Agora, não. É o mundo de fora, com a Revolução organizada como acabo de ver, de dizer. Com organização escondida como eu acabo de mostrar que é conjecturável, provável etc., etc., e com um…

Que é obrigado a lutar com essa organização sem perceberem, mas desconfiando dela, e então em que situação me encontrava e que possibilidade eu tinha, que táticas eu adotei. Antes de tudo que táticas eu adotava… [inaudível] … o adversário. Isto ia como matéria cabeça-de-ponte, aí estaria a coisa para o sábado que vem se Deus quiser.

(Sr. G. Larraín: Como o senhor foi agindo ao longo da história.)

Isto poderia fazer. Mas eu acho que a parte mais laboriosa de dar é essa. Essa parte aqui dá uma porção de noções conhecidas apenas confusamente pelas pessoas, na maior das hipóteses.

(Sr. NL.: Bem menos que confusamente.)

É talvez mesmo, de um modo perfeitamente embrulhado. Que marca todo o resto do que a gente pensa, é marcado por este ponto de partida, todo o resto.

De fato para ser bem positivo. Não viveu inteiramente quem não retraçou a sua vida à luz do que eu estou dizendo, de maneira a fazer sua própria história.

(Sr. J. Clá: Não viveu quem não assistiu a reunião. O resto é uma ruína, fracasso.)

(Sr. G. Larraín: Se explicaria aí a ação do senhor nos séculos futuros?)

A teoria da ação Contra-Revolucionária, faz-se-ia de um modo interessante assim: Se eu — isto poderia tomar na próxima reunião se quiserem — tomar os modos atuais de agir da TFP, e à medida que eu fosse dando a minha atitude de menino mostrando como a técnica que eu gizei naquele tempo, mais ou menos instintivamente, mais ou menos refletidamente, é a técnica que eu continuo a usar na TFP.

Por exemplo, isto para terminar a reunião: Eu me sentia irremediavelmente circunscrito e limitado por determinadas lacunas intransponíveis, porque primeiro eu não tinha possibilidade de transpor essas lacunas, a minha pessoa não dá para isto; e em segundo lugar, porque se desse eu não teria o direito de transpor porque era contra a minha consciência — não está… gravando…

(…)

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