Conversa de Sábado à Noite – 6/9/1986 – p. 11 de 11

Conversa de Sábado à Noite — 6/9/1986 — Sábado [VF 47] (Neimar Demétrio)

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Não sei o que vocês preferem?

Vamos sentar. Então, como é? Hoje temos São Luís Grignion de Montfort?

Qual é a pergunta meu Guerreiro?

(Sr. Guerreiro Dantas: O coronel foi mais assíduo e leu quase todo o “Tratado”, não é coronel?)

Você leu o “Tratado” todo, meu coronel?

(Sr. Poli: Não, eu li mais da metade.)

(Sr. Guerreiro Dantas: Eu cheguei na pagina cem.)

Quantas paginas tem a edição de vocês?

(Sr. –: Duzentos e cinqüenta.)

Então, você leu quase tudo.

Mas, por falar nisso, João, você sabe que existe uma edição fotografada do “Tratado”? Eu não sei se a essa altura se não era o caso da gente pensar em comprar isso.

(Sr. Guerreiro Dantas: Manuscrito dele, Sr. Dr. Plinio?)

Manuscrito dele, porque foi encontrado o “Tratado” do manuscrito dele, no qual, aliás, faltam páginas, o tal celerado que jogou isso numa caixa, não sei o quê, deve ter roubado, provavelmente foi isso. Agora, uma coisa dessa importância, eu acho que valeria a pena a gente pensar nisso.

Se simplesmente vocês pudessem me lembrar durante a semana, eu passava um grafonema para…

(Sr. João Clá: O Jean Goyard está indo quinta-feira agora.)

Está bom. Você se lembra de falar com ele?

(Sr. João Clá: Sim.)

Bom, mas então, meu Guerreiro?

(Sr. Guerreiro Dantas: São Luís Maria Grignion de Montfort diz que Nosso Senhor deu mais glória a Deus dedicando-se trinta anos a Nossa Senhora do que se Ele tivesse convertido a humanidade toda.)

É uma coisa extraordinária, mas a gente percebe que é verdade.

(Sr. Guerreiro Dantas: Porque se Ele é Deus e é perfeito, o que Ele fez é perfeito. Se é que a condição para converter os homens não era isso. A gente se pergunta também. Foi a Cruz, mas não teria sido também esses trinta anos que Ele passou venerando a Nossa Senhora?)

Não, mais ainda hein! Porque a gente tem que tomar a coisa direito, santificando-A. Porque é isso.

(Sr. João Clá: Os teólogos dizem isso, que Ele levou esses trinta anos para santificar a Ela e a São José.)

[O trecho marcado está exatamente assim no microfilme. (Neimar Demétrio) ]

Aliás, tem o seguinte: está para aparecer alguém, que faça, guardada as proporções, em relação a São José o que ele fez em relação a Nossa Senhora. Mas, não se pode tomar isso assim, a presença de São José como uma presença banal, quantité négligeable, ele tinha evidentemente, dentro deste firmamento místico, ele tinha um papel evidentemente dos mais salientes. Para ser o pai legal, o pai adotivo do Menino Jesus: você compreende o que é que isso significaria.

Mas, São José não teve ainda o seu São Luís Grignion. Bem, e aqui fica, porque essa matéria é cheia de perguntas. Eu também [formulo] a pergunta e vamos adiante, porque não há elementos para responder.

(Sr. João Clá: A maior parte dos teólogos dizem que há três pessoas com o corpo glorioso no Céu. Nosso Senhor, Nossa Senhora, e ele.)

Você veja que coisa extraordinária!

(Sr. João Clá: E deve ser verdade, porque o túmulo dele está onde?)

Eu nunca ouvi falar de túmulo de São José, nunca ouvi falar.

(Sr. João Clá: E que tanto Nossa Senhora como ele, ambos morreram de santidade.)

É, também deve ser, também deve ser.

Agora, eu pergunto se nessa transição dessa era que nós podíamos chamar pré-Marial, para a era Marial, deve haver também um desabrochar muito grande de conhecimentos de todo o papel de São José e depois de tudo quanto São José fez, etc., etc., e se ele não é — ele também — um grande desconhecido.

Mas, enfim, meu Guerreiro, diga lá.

(Sr. Guerreiro Dantas: Nós nos perguntávamos se o senhor não poderia tratar um pouco das razões pelas quais Nosso Senhor teria feito isso. O Sr. João acaba de dizer que é para santificá-La, mas a gente percebe que é por um culto a Ela.)

(Sr. Gonzalo Larrain: Não é só santificá-la, não.)

Quer dizer, na humanidade santíssima d’Ele, podia ser, eu não tenha bem certeza, mas talvez pudesse…

* * *

[Batem na porta.]

Ave!

Ô meu Nelson, entra aqui. Como vai você?

(Sr. Nelson Fragelli: Bem, obrigado e como vai o senhor?)

Nossa Senhora o ajude, meu filho.

(Sr. Nelson Fragelli: Perdoe-me pelo atraso.)

Ora essa.

* * *

Podia ser perfeitamente que Ele prestasse culto a Ela, eu não tenho certeza. Porque Ele é uma pessoa só, n’Ele há uma unidade de pessoa, e o culto, portanto, teria que arrastar a pessoa toda. Agora, Deus prestar um culto… não no sentido em que está no Torreão, mas no sentido comum da palavra, quer dizer, colocar-se a sua Pessoa inteira num papel de uma pessoa inferior, que presta honra a alguém que lhe é superior enquanto virtude, ou enquanto qualquer título.

(Sr. Guerreiro Dantas: Enquanto Mãe.)

Enquanto Mãe.

(Sr. Gonzalo Larrain: Ele obedecia a Ela.)

Isso é certo.

(Sr. Gonzalo Larrain: São Luís disse que como a graça aperfeiçoa a natureza, e a glória aperfeiçoa a graça. Se Ele obedecia a Nossa Senhora aqui na Terra, Ele continua ainda obedecendo-A lá no céu.)

É, esse é um lindo pensamento.

(Sr. Gonzalo Larrain: E que, portanto, aí nasce a idéia de Onipotência Suplicante de Nossa Senhora. Ela é toda poderosa no Céu. É que Deus tendo feito isso Ele não contrariou a natureza, porque a glória não contraria a natureza.)

Não, nada.

Eu acho que a gente deve avançar nessas coisas com muita… é muito bom fazer essas perguntas, e lançar assim, essas coisas audaciosas, mas, depois procurando equilibrá-las bem.

Mas você compreende que aí viria uma coisa também: Ele prestava culto também a São José, Ele obedecia a São José. O que é que se entende bem exatamente por culto aí no caso? É preciso… Ele prestar culto a São José… Você compreende que já é bem menos, não é?

(Sr. Gonzalo Larrain: O senhor disse que o Segredo de Maria é uma forma de união de alma, entre Nossa Senhora e Nosso Senhor absoluta, que está tudo, totalmente fora de todos os parâmetros que já houve.)

Ah, sim, a maior união de alma que [se] possa imaginar.

(Sr. Gonzalo Larrain: O senhor dizia que o Segredo de Maria certamente é uma união de alma a alma. E começava por união de Nossa Senhora com a Santíssima Trindade. Agora nesse convívio de trinta anos, certamente isso se deu num grau eminente.)

Isso é indiscutibilíssimo. E durante esses trinta anos que Ele consagrou a Ela, dizer que Ele estava santificando a Ela equivale dizer que Ele estava aumentando a união de alma d’Ele com Ela. Porque santidade é estar unido a Ele.

(Sr. Gonzalo Larrain: Mas, que tipo de união.)

É… essa união de alma levada a seu ápice que efeito produz n’Ele e n’Ela? Quer dizer, qual é a capacidade de união assim, de Deus com uma alma humana, que se acrescenta à união hipostática.

Porque aí tem já a união hipostática também, que é uma coisa imensa. Quer dizer, todos os padrões aí são gigantescos simplesmente, mas gigantescos, não é?

Aliás, você falou há pouco de Segredo de Maria, etc., etc., cada um vai nessas coisas pensando, por onde o atrai a graça, não é? Mas, eu estava pensando a respeito do Segredo de Maria. Nossa Senhora… esse é um Segredo em Maria. E Ela é tão, tão grande, que Ela é para nós um monte que se perde nas névoas. Depois, de repente aparece o cume em cima, por cima das névoas, aparece o cume.

Mas, tudo n’Ela é segredo, porque eu tenho a impressão… Porque Ela é desproporcionada completamente a nós! Ela é incomparável! Bem, mas tudo n’Ela é segredo, e o conjunto desses segredos eu acho que desfecham num segredo, ouviu? Que é uma espécie de píncaro dos píncaros dos segredos.

E que se a gente fosse fazendo assim um catálogo dos segredos, a gente conseguiria talvez fazer a idéia geral do que é esse Monte incomparável, não é?

(Sr. Nelson Fragelli: Segredo e mistério ai é a mesma coisa?)

Não, exatamente eu ia dizer isso. Que segredo1 para nós é aquilo que nossa inteligência não consegue decifrar, “nós” quer dizer, para a inteligência humana.

Agora, mistério é uma coisa diferente. É uma coisa que… porque o segredo é um mistério que o homem poderia decifrar, mas que ele não chega a decifrar porque ele não tem vôo até lá. Mas, poderia ter. Um arqui-São Tomás poderia chegar até lá.

Agora o segredo não, é indecifrável.

(Sr. Gonzalo Larrain: Mistério.)

Mistério é indecifrável. O mistério ou é algo que Deus revela, ou não tem saída.

(Sr. Poli: Nossa Senhora tem as duas coisas: tem segredos e mistérios.)

Nossa Senhora tem as duas coisas, tem segredos e mistérios.

(Sr. Poli: E o segredo seria o caso de tentar…)

E também os mistérios, porque esses segredos devem conduzir a mistérios. Eu não tenho a impressão de que a Igreja tenha feito catálogo de todos os mistérios d’Ela, eu acho que Ela tem mistérios incompreensíveis, insondáveis, admiráveis, ouviu?

Mas, você dizia então meu Guerreiro?…

(…)

(Sr. Gonzalo Larrain: Viver é querer-se, olhar-se e estar juntos.)

(Sr. João Clá: Não, “viver é estar junto, olhar-se e querer-se bem.”)

É isso, é exatamente, é essa a frase.

Bem, quando ele disse isso, eu assim muito sobriamente, mas tive uma espécie de choque. Porque eu pensei: como é que ela que é uma pessoa de inteligência comum, de cultura que tinham as senhoras daquele tempo dela, não era em nada uma universitária, em nada, em nada, em nada, ela sai com isso que dá uma profundidade das coisas que eu não tinha pensado. Como é que saiu isso na cabeça dela? E depois várias vezes pensei nisso: que no fundo a sociedade de almas é feita de “estar juntos”… — como é que é?

(Sr. João Clá: “Estar juntos, olhar-se e querer-se bem.”)

É, “estar juntos, olhar-se e querer-se bem”. Bem, e que é esta, o fazer isto noite e dia. Mas, também é rejeitar a quem deve ser rejeitado, não é querer bem, nos lados em que não se deve querer bem a “x”.

(Sr. Gonzalo Larrain: Não olhar e não estar junto.)

Não olhar, é fazer um uso adequado dessa atribuição, dessa atividade. Isto é a essência da vida dos homens na terra. Quer dizer, como sendo o mais alto meio que o homem tem para chegar a Nosso Senhor. Porque na visão beatífica é isso que vai haver.

(Sr. Guerreiro Dantas: E a promessa de Deus é essa.)

É uma transposição, quando Ele diz: “Eu serei a vossa recompensa demasiadamente grande”, a idéia que a gente tem é que ficar olhando para Ele, estar junto, olhando e querendo bem, reciprocamente, realizará isto, e que o Céu é isto.

Bem, e que, portanto, esta é na terra a mais alta atividade do homem: é “estar junto, olhar e querer bem” aqueles com quem o desígnio da Providência… ele deveria fazer.

E que nós também temos responsabilidades por termos recusado aqueles que deveríamos… que não deveríamos recusar, ou por termos aceito quem nós não deveríamos aceitar e de termos dado a cada um daqueles que, segundo o desígnio da Providência, se deveria encontrar no nosso caminho. Aquilo de “estar junto, de olhar-se e de querer-se bem” que é próprio a cada um, nos planos da Providência.

Se todos fizessem isso, nós compreenderíamos, teríamos outra idéia da vida humana que a gente não tem e que, habitualmente, as pessoas não têm. E isto supõe uma finura de percepção psicológica que não é apenas uma penetração como se concebe no discernimento dos espíritos, mas é também uma consonância, uma possibilidade, um estado de alma, por onde a gente entra em consonância com os outros, ou seja, a gente sentindo, eles sentem; eles sentindo, a gente sente. Isso é um elemento fundamental, de maneira tal que um lance de piedade que um outro tenha a gente sente e aquele lance repercute em nós. Mas também um lance de piedade que nós tenhamos repercute nele.

Mas também o defeito dele repercute em nós à maneira de um golpe, de uma tristeza e, conforme o caso, de uma recusa. Quer dizer, tudo é o perfeito… A perfeita concatenação, a perfeita entrosagem desta função faz propriamente a essência da vida.

Bem, e este dito de São Luís Grignion que você estava recomendando, entra perfeitamente dentro disto. Dado que Ele conheceu a Ela — uma arquicriatura d’Ele como era —, o elevar essa arquicriatura pelo “conhecer-se, estar junto e querer-se bem”, elevar essa criatura ao arquipíncaro a que Ela era arquichamada, é levantar atrás d’Ela todo gênero humano e colocar numa clave todo… toda essa sociedade de alma entre os homens, a possibilidade dessa sociedade de almas, numa clave que não havia antes. E clave essa que na qual, mesmo os pagãos sem o saberem, de algum modo foram beneficiados. Que é gente que não soube da existência d’Ele e nem da existência d’Ela, não é?

Bem, e aí se explicam esses trinta anos, etc., etc. Eu acho que é exatamente porque se Ela não realizasse toda a santidade que Ela foi chamada, todo o plano d’Ele para o mundo inteiro não se realizaria como Ele queria. Como Ele queria não, porque Ela, de um certo modo, numa certa expressão da palavra, Ela continha todo o gênero humano, de um certo modo. E, portanto, nos planos que Ele livremente fixou que existissem, Ele quis que fosse assim. O que tem é que cria para nós uma certa surpresa, ao menos para mim, é a idéia de que Nossa Senhora — quando eu li isso eu tive essa surpresa —, de que Nossa Senhora já nasceu numa tal altura que não era mais susceptível de ser santificada. Isso não é verdade, porque se Nosso Senhor crescia em graça, em formosura diante de Deus e dos homens, a graça era a graça, a santidade, e era a Humanidade d’Ele que crescia em graça. Ela a fortiori, que era só natureza humana, teria que crescer em graça também.

Mas imaginem, para nós termos uma idéia disso, um homem a quem Deus desse o poder de, por meio de uma vara, de qualquer coisa assim, fazer nascer o sol. E que, então, todos os dias, poderia escolher como fazer nascer o sol, onde… para determinar sobre a face da terra o mais belo nascimento do sol possível. Isso seria [a] vida desse homem. Ora, Ele fez isso com Ela, Ela é o sol que Ele fez nascer. Então, pode imaginar a consolação, o gáudio d’Ele atuando todo o dia sobre Ela e o dia todo, e Ela dando continuamente a mais perfeita correspondência possível e que então… de que — aqui a palavra é meio dulçurosa, que a “heresia branca” deformou, caberia perfeitamente — de que arrebol em arrebol Ela se iria desdobrando, iria subindo, e o encanto d’Ele com isso.

Agora tomem em consideração que Ela era o Paraíso de Deus e vocês compreenderão bem o que é, o que eram esses trinta anos de convívio d’Ele com Ela. Mas, com uma circunstância: é que nasce um mistério… Um segredo; não um mistério, um segredo.

Ele na Paixão d’Ele quis ter aquele desfalecimento, que quis ser ajudado por um Anjo. É no fundo uma coisa incompreensível, que um Anjo tenha ajudado a Ele, mas Ele quis isso. Bem, será que Ele não quis ser ajudado para a Paixão, na previsão da Paixão, Eles se entreajudaram mutuamente?

(Sr. Gonzalo Larrain: Com Nossa Senhora?)

Nosso Senhor e Nossa Senhora. É uma pergunta. Então, aquilo que toda a vida me causou uma impressão profundíssima: o encontro. O encontro é uma coisa que eu considero do outro mundo, não é?

No encontro dos dois foi o prelúdio da última ajuda, da última ajuda. Ela ajudou a Ele e Ele ajudou a Ela, quando Ele estava no alto da cruz. Eu não sei se está claro o que eu estou dizendo ou não?

(Sr. Nelson Fragelli: Muitíssimo.)

Eu não afirmaria uma coisa dessa se eu não tivesse… E eu não estou afirmando, eu quero dizer o contrário, que eu não afirmo enquanto eu não tiver a certeza de que, do que Teologia diz sobre isso, a Teologia católica.

Mas parece que se não [foi] isso, algo desse gênero havia também. Porque nós não podemos imaginar que Eles estando sujeitos à condição terrena, Eles pudessem passar trinta anos de mero gáudio. Nem parece, porque o gáudio é um gáudio inenarrável que Ele tinha. E o d’Ela nem sei o que dizer.

Bem, nem parece de que estaria nas condições de que o Homem-Deus que se encarnou para a cruz, Eles não conversassem sobre a cruz.

Como?

(Sr. João Clá: Impressionante.)

Eles têm que ter conversado sobre a cruz. E é claro que Ela tem que ter perguntado a Ele a respeito da Redenção a fundo, tanto mais que era Ela mesma co-Redentora do gênero humano, Ela tinha vocação para ser co-Redentora do gênero humano. Ela é venerada pela Igreja como co-Redentora do gênero humano.

Agora, se é assim, eu acho que é inconcebível que não tenham falado sobre a cruz. É inconcebível, portanto, que não tenha sofrido. E que o sofrimento d’Eles não tenham se misturado, não tenha se interpenetrado, pela união de alma intimíssima.

Eu vou dizer mais: eu tenho a impressão de que essa união atingiu o seu ápice, foi a propósito da cruz. Porque quando duas pessoas sofrem juntas rumo ao mesmo ideal, elas se unem de um modo que nada mais faz unir tanto assim. Também isso eu tenho em conta de uma coisa certa.

Por exemplo, vamos dizer, dois santos que são atormentados no mesmo martírio simultaneamente. Enquanto o martírio corre, eles vão se querendo mais. Me parece inconcebível que não seja assim, não é?

Então, Ele e Ela o que terão conversado sobre tudo isso? E o que é que Ele terá instruído a Ela? Que perguntas d’Ela a Ele. Não sei se…

(Sr. Gonzalo Larrain: A despedida dos dois…)

É uma coisa tremenda. A última despedida, quando Ela ouviu o brado: “Meu Pai, meu Pai, por que Me abandonastes?”

(Sr. Gonzalo Larrain: Mas eu dizia despedida de quando Ele deixou a Ela depois de trinta anos. Sóror Maria de Ágreda descreve a despedida e é muito bonito.)…

(…)

abre cominho para uma outra despedida que Eles sabem que viria, que é quando Ele bradou: “Meu Pai, meu Pai, por que Me abandonastes?”

Porque no “Meu Pai, Meu Pai [por que me] abandonastes”, tinha uma coisa terrível que é a seguinte — eu tenho impressão, mas seria preciso perguntar isso a teólogos, etc. —, mas eu tenho a impressão que Ele queria dizer ao mesmo tempo que a própria presença d’Ela tinha se tornado insensível para Ele, que Ela teve que fazer esse sacrifício e, talvez, também Ele tenha se tornado insensível para Ela mutuamente naquele momento. E que foi o apagar-se.

(Sr. Nelson Fragelli: É tremenda essa hipótese.)

Sim, porque tem o seguinte: como o martírio d’Ele era mais interior do que físico — por maior que tenha sido o martírio físico, o interior era maior —, o abandono pior deveria ser interno. E se Ele estivesse, por exemplo, inundado de consolação, Ele não teria bradado “Meu Deus, por que me abandonastes?”

Ora, Ele tinha ali a Mãe d’Ele que valia incomparavelmente mais do que toda aquela canalhada toda que estava lá. É até blasfemo comparar, não se pode comparar.

Bem, imaginar que a dor d’Ele por aquilo tudo que estava passando era tal que Ele sentia abandonado pelo Pai Celeste, quando o Pai Celeste mandou Nossa Senhora lá para ajudá-Lo. Você fazendo a comparação entre a taça do líquido que Ele bebeu no Horto das Oliveiras e a presença de Nossa Senhora, essa taça não era prenunciativa da presença d’Ela? Ela não foi exatamente quem deu forças a Ele? Agora, em certo momento abandonou. Agora, você pode imaginar qual foi a dor d’Ela nesse momento? Imagine a coisa em termos humanos.

Um homem que está morrendo de uma doença tragicamente dolorosa num hospital, qualquer coisa assim. A mãe dele está assistindo a morte com todos [os] mil desvelos possíveis imagináveis.

Ele diz para ela: “Mamãe eu vou lhe confiar uma coisa: de momento, sentir por sentir, eu não sinto afeto nenhum pela senhora, e tanto a senhora podia estar aqui como na Cochinchina, a sua presença não me adianta de nada. Tal é a dor em que eu estou absorvido e precipitado que eu posso dizer: In limun profundus fixum sunt non habi substantia, quer dizer, eu estou seguindo a minha dor, eu estou afundado nessa dor e não encontro resistência. Eu estou perdido no mare magnum dos tormentos.”

Na hora de Ela descer essa barreira entre Ele e Ela, e aquele “amar-se, estar junto e querer-se bem…” — É olhar-se? Como é? — “Estar junto, olhar-se, querer-se bem” romper. Na aparência, ainda que fosse na aparência, o tormento que isso devia representar para Ela, é uma coisa inimaginável. Ela teve que passar por isso.

Agora, será que Eles não conversaram sobre tudo isso, nos trinta anos da vida de Nosso Senhor em Nazaré? E fizeram várias vezes o comentário, etc., e se prepararam para isso, etc., etc.? É uma coisa para perguntar.

Agora, aí, se nós dizemos isso assim, nós podemos imaginar que a seu modo, essas coisas se repitam nas relações entre criaturas que sirvam a Ela e através d’Ela a Ele. Pode-se imaginar…

(…)

porque eu acho que eles se sentiram meio traidores também.

(Sr. Guerreiro Dantas: Os Apóstolos?)

Os Apóstolos. No sentido de que eles não foram fiéis, não cumpriram a missão deles, foi uma coisa que não tinha palavras, não é?

Mas, acho que alguns deles, pelo menos, senão todos, puseram-se a andar pelas ruas de Jerusalém assim meio desatinadamente entre as ruas, levados pela “ahnnnn!” Eu acho que quando se viam, não tinham coragem de se olhar e que passavam um longe do outro. É a impressão que eu tenho. Porque não dá para falar, nessa base não dá. Quer dizer, é tal o desprezo de si mesmo e do outro que não dá, não há base para uma conversa.

Mas, no meio de andar para cá e para lá, passa entre duas mulheres ou, vamos dizer, um homem e uma mulher, e a mulher se gaba ao homem que deu uma bofetada n’Ele. E que Ele gritou assim. E o homem diz: “Isso não é nada, eu o joguei no chão.”

Eu acho que um Apóstolo que visse isso, sairia de Jerusalém pelo campo afora correndo, sem saber para onde ir. Agora, imaginem um outro que estivesse numa casa — eles tinham aqueles terraços num alto das casas—, de repente o vento trouxesse para ele o eco da voz d’Ele bradando de dor em algum lugar… Vontade de… não sei… logo como primeira coisa — eles não se ajoelhavam —, do contrário seria isso, se ajoelhar de longe, oscular o chão e dizer: “Eu não ouso pedir que a minha voz asquerosa chegue até Vós, mas eu vou procurar a vossa Mãe. Não tem, isso não tem outra saída, não pode ser, eu vou procurar.”

Mas, parece que levaram muito tempo para procurar, porque ao pé da cruz só tinha São João.

(Sr. Nelson Fragelli: Muito bonita a noção do tempo que o senhor tem, do tempo que se deve levar para procurar Nossa Senhora.)

É imediato, imediato. Mas, também aí — hein! —, para se aproximar d’Ela, quanto mal-estar, mal à vontade, vergonha. Imagine que Ela viesse a ele com afeto: “Fulano, meu caro…” Vontade de dizer a Ela: “Esse afeto me esmaga, me queima, eu não posso viver sem ele, mas eu não posso viver com ele. O que eu fiz ao vosso Divino Filho…!?” O Confiteor. Que Confiteor! Que dilaceração! Não era sofrer mais do que se eu tivesse acompanhado?

(D. Luís: Indispensável.)

É, é uma coisa que não tem palavras. Se nós aqui, se um Anjo nos fizesse ouvir o brado d’Ele, o gemido d’Ele, bem, nós parávamos imediatamente de conversar, nos púnhamos de joelhos e ficávamos uma semana rezando, nem sei o quê. Aquele brado…

Agora, quem tinha ouvido aquela voz durante três anos, quem tinha admirado todas aquelas inflexões de voz, quem compreendia toda aquela dor, aquilo tudo, tudo, tudo. Aquilo era da gente… eu não teria a menor surpresa que algum deles morresse de dor. Até pensando bem a gente se pergunta se não dava para todos terem morrido. “Porque ter feito aquilo? Mas meu Deus do Céu, como é que era possível!?”

Bem, não quero que gravem…

(…)

alguém que estava apostatando no Grupo, eu fiz essa consideração — não subi tão alto como na nossa conversa agora, mas eu disse a ele: “Você já pensou o que é que vai ser a sua vida aí fora? Você sabe dos nossos horários o dia inteiro, você puxa o relógio e são tantas horas, e você tem que se encontrar com fulano ou fulana a tantas horas. Vem ao espírito: ‘Essa hora o Grupo está fazendo tal coisa.’”

(Sr. João Clá: E isto é tremendo.)

Bom, mais adiante, “Hoje é tal dia da semana: sábado. Eu estou indo não sei para onde e a esta hora está começando o alardo e eu deveria estar no alardo desfilando, e agora a essa hora assim, Dr. Plinio costuma chegar, e agora ele leva uns cinco a dez minutos da chegada até o alto do estrado, está começando a rezar, está todo o Grupo rezando. Bateu um sino, eles vão rezar pela Venezuela também, tá-tá-tá-tá-tá-tá, e eu o que estou fazendo?”

E aí foi que eu insisti com esse homem que estava querendo apostatar: “Quando um dia você no seu caminho ver vários de nós caminhando para o martírio, e você não está no cortejo dos mártires, você os vê passar, o que é que você faz?” Eu não comovi essa alma.

(Sr. Gonzalo Larrain: Eu, talvez por maldade minha, mas eu acho que conforme o caso não se consegue comover mesmo.)

Não saiu logo do Grupo, mas não se comoveu. Ficou no Grupo durante algum tempo, depois apostatou…

(…)

É uma coisa incalculável. Ou não?

[Vira a fita]

(Sr. Gonzalo Larrain: É coerente com a nossa semifidelidade.)

Não, e acompanhado de uma certa revolta, hein? Porque nestas estagnações assim entra um traço de revolta pelo meio. “Porque afinal o quê? Que posição eu vou ficar?” Enfim…

Vocês pensam num Fedeli [fogo na alma?]. Não é só aquele por onde a alma sob um determinado impulso faz o que lhe é, faz tudo. Mas, é uma outra coisa, é uma espécie de fogo frio, por onde a alma sem impulso e apenas no ato de vontade raciocinado e imperado faz ainda que não tenha nada. Esse fogo frio…

(Sr. Guerreiro Dantas: Não entra temperamento?)

Não, não é temperamento. A minha Fé, o meu rationabile obsequium, me ensina que tal coisa eu devo fazer. E eu, para com essa Fé, a essa Fé, eu voto uma forma de amor por ande ainda que eu esteja totalmente frio, eu estou inteiramente resolvido e farei mesmo. Isso é uma graça excelente, e sem uma ajuda da graça não se tem isso, o indivíduo pode ter até a impressão de que é um mero ato de vontade dele, mas que ele tem uma grande vontade e que, portanto…

É uma ilusão, isto é um auxilio excelentíssimo da graça, mas que funciona à maneira de um fogo frio, parece uma contradição nos termos, mas é isto, um fogo frio, mas que a pessoa resolve e faz, e leva mesmo e leva até onde quer. E para mim o modelo disso é Santo Inácio de Loyola.

(Sr. João Clá: É extraordinário.)

Modelo.

Quer dizer, são os Exercícios Espirituais, tem essas, aquelas, aquelas outras razões, e isto é uma resolução. Eu falava de seriedade hoje. Eu estou definindo a seriedade, ouviu?

Seja como for que, porque for, com ou sem entusiasmo, isso eu farei mesmo!”, e faz! Isto é propriamente o dar-se.

(Sr. Guerreiro Dantas: Logo, o temperamento precisa ser queimado por isso.)

Exatamente, absorvido. Todas as molezas os vais e vens, os impulsos fátuos, etc., tudo isto se testa nesse fogo frio. “Isto é assim, eu farei mesmo.”

(Sr. Guerreiro Dantas: A alma se mantém fria. Quando ele fala desse calor, é mais do calor do corpo?)

É, mas vem da sensibilidade, a sensibilidade é uma coisa muito boa, mas ela deve ser tratada de tal maneira que, com ela ou sem ela, a coisa vá tale e quale. E toda a vida eu tive entusiasmo por essa posição de alma, ouviu? Mas também um entusiasmo frio.

(Sr. Guerreiro Dantas: No senhor a gente vê muito disso.)

Pois aí está, é isso mesmo.

(Sr. Guerreiro Dantas: Parece que o senhor passou de rolo compressor sobre o seu temperamento e o reduziu a milímetros.)

Pelo menos eu gostaria que fosse. Quer dizer, está resolvido, está dado, eu não volto atrás. Era para ser, custou tudo isso, se eu tivesse que pagar o mesmo preço igualmente, mas o que Ele pedir eu darei. Naturalmente sei que preciso da graça, porque isso é uma ilusão falar disso em termos de mero ato de vontade, é uma ilusão, é uma ilusão até perigosa, mas deve ser uma coisa que compreendido que isso é uma graça, deve ser a graça.

E, eu me lembro que quando eu descobri isso, e descobri a possibilidade de chegar até lá, eu me entusiasmei. Mas quando eu comecei a ler os Exercícios Espirituais de Santo Inácio, anos depois, eu compreendi que ele era um manancial disso, para a minha alma e para outros.

E que aqueles Exercícios Espirituais de Santo Inácio é aquilo. A gente pega aqueles raciocínios, aquilo é aquilo…

(…)

(Sr. Guerreiro Dantas: A questão da vontade é inteiramente assim, mas a gente vê que o que se perdeu foi também um discernimento.)

Isto eu estou de acordo.

(Sr. Gonzalo Larrain: Porque sem esse discernimento…)

É, e por isso eu não falei do discernimento. Eu falei das consolações, etc., etc. O discernimento é indispensável. Aliás, o discernimento de Santo Inácio era agudíssimo.

(Sr. Gonzalo Larrain: Sem esse discernimento a pessoa não sabe como fazer.)

A questão é a seguinte: é que esse próprio discernimento o homem é convidado a ter ou não ter e ele pode rejeitar. Na maior parte dos casos o que há [é] uma rejeição do discernimento.

Quer dizer, o discernimento não move automaticamente a vontade. O homem pode recusar um discernimento.

(Sr. Gonzalo Larrain: Não foi tanto a vontade, mas é na linha do discernimento propriamente.)

Concordo, concordo. Porque feito esse discernimento era preciso aceitar uma série de outras coisas que deixaria a pessoa… Não era possível ser medíocre aceitando o discernimento. E o castigo de não aceitar o discernimento foi a mediocridade.

Bom, meus caros, mas agora eu tenho que ir andando.

Bem, vamos qualificar um pouquinho essa reunião, o que é que foi feito. Assim, no imprevisto de uma conversa, o que é que essa reunião foi? Foi a aplicação de um método muito bom porque nós analisamos em um determinado momento as coisas. O tema “Nossa Senhora”, depois esse tema foi transportado, foi sondado por nós e depois foi transportado para as analogias com a vida nesta terra, com a nossa vocação e os nossos deveres. É essa pesquisa em São Luís Grignion, do que é que ele diz sobre Nossa Senhora é inteiramente proporcionado que se faça assim, alternativamente, é perfeitamente direito.

Depois o que foi feito também foi um aprofundamento no nosso mistério em função do mistério d’Ela. Porque eu sou propenso a ter a idéia de que há qualquer coisa de nossa vocação que é iluminada pelo discernimento que diz o Gonzalo, mas que sem o discernimento para nós é perfeitamente misterioso. Nós não compreendemos.

(Sr. Gonzalo Larrain: É uma charada.)

É. E depois uma charada indecifrável, mas que com esse discernimento se compreende. Bem, e depois, foi, foram estudados alguns aspectos colaterais que todo o grande assunto trás consigo, como por exemplo, São José, e foram ditas coisas muito importantes sobre isso.

Agora do que é que adiante isso? Eu tenho a impressão de que isso fica como semente em nossa alma e que a graça no seu momento oportuno fará isso frutificar, fará isso dar, render, etc., etc., que isso no momento oportuno ela fará.

(Sr. Nelson Fragelli: E, sobretudo, o ter estado junto, olhado e querer-se bem.)

Exatamente, esse é o negócio.

(Sr. Guerreiro Dantas: Na parte final tudo isso que o senhor comentou da vontade, do fogo frio.)

São temas que são suscitados a propósito d’Ele e que por si já são montanhas das cordilheiras que é o Segredo de Maria.

(Sr. Guerreiro Dantas: Essa vontade, esse fogo frio, esse sacrifício do temperamento são noções…)

Reversíveis uma na outra.

(Sr. Guerreiro Dantas: Isto é mais da parte corpórea do homem, ou da própria alma?)

Eu acho que no fundo é mais da própria alma, do que parte corpórea do homem. Agora, o homem pode soltar as suas emotividades, etc., etc., físicas, mas em última análise, se ele retivesse bem o lado alma, ele acabava dominando isso. Não sei se está claro?

(Sr. Guerreiro Dantas: A raiz desse defeito é mais a alma do que o corpo?)

Mais a alma do que o corpo, isso para mim é uma coisa certa. E é um tal dar-se.

Afinal de contas é assim: nós em presença do que a Fé nos ensina sobre Nosso Senhor e Nossa Senhora, sobre a Igreja, nós estarmos juntos, nós olharmos, olhar isto na Igreja, sentir de algum modo, discernir que isso nos olha e nos querermos bem. Querer bem é isso, isso é que é querer bem.

Bem meus caros, Je regrete, enfinement.

* * * * *

1) Provavelmente o Sr. Dr. Plinio trocou mistério por segredo, como fica claro na intervenção do Sr. Gonzalo Larraín. Está deste modo no microfilme.