Anotações Sr.
João Clá (CSN) – 28/5/1983 – p.
Anotações Sr. João Clá (CSN) — 28/5/1983 — sábado
Anotações do Sr. João Clá
(Conversa do Sábado Noite - Confidencial)
Pergunta inicial:
(Sr. GD: Quais são as qualidades do profetismo, da vocação “eliática”, qual é esse conjunto de qualidades que, pelo fato de ser conjunto, arranco ódio dos Revolucionários?)
Paz uma distinção, para responder, entre o muito dotado e o grandemente dotado. Uma pessoa pode ter muitas habilidades sem ser grandiosamente dotado. Uma pessoa pode ter muitas habilidades sem ser grandemente dotado. Então eu aceitaria em conversar na base do MUITO e não ba base do GRANDEMENTE, porque o grandemente não me toca avaliar nem analisar, nem nada.
Também harmonia. Pessoa pode ter qualidades bastante comuns, mas harmônicas. Isso não quer dizer que a pessoa saia do comum. Pode ser uma pessoa comum, mas suas qualidades são bastante harmônicas. Nessa perspectiva seria possível dizer alguma coisa de mim mesmo, sem dizer que possuo grandes dotes de inteligência, coisas assim, sem dizer também que essa harmonia me eleva a um plano maior do que a um qualquer. É a harmonia que pode existir também em outros.
E é só porque as coisas chegaram onde chegaram que ej posso consentir em fazer um pouco de [ciceronagem?].
...
Não faço aqui bipartição; o que eu seria se tivesse recusado vocação e o que sou hoje, não interessa isso. No por hoy como sou, o que dizer disso nessa faixa?
É preciso distinguir: inteligência especulativa e o amor que se tem ás coisas especulativas e, outro coisa, a inteligência operativa e o amor que se tem ás coisas operativas.
Um fato de inteligência especulativa: pessoa vê os armamentos que nós vimos agora. Desses armamentos é levado a pensar em outras guerras que foram conduzidas com outro tipo de amamento, de outra maneira. Depois faz comparação entre os dois tipos de guerra e nota analogias como nota também coisas diferentes.
Começa a especulação: o que é uma guerra? O que há de comum a todos os modos de combater, a ponto de se chamar guerra? Comparar, por exemplo, Guerra dos Horácios com os Curiácos e as complexidades da ultima Guerra Mundial, é uma diferença fenomenal. Mas eu digo que são duas guerras. Por que? Há traços em comum entre elas, e traços essenciais.
Então, minha alma gostaria de perguntar qual é a essência da guerra. O que faz com que a guerra não seja guerrilha? Defina o que é guerra. Isso é um exercício muito atraente para a inteligência de quem gosta de fazer.
Depois vem a pergunta: guerra boa ou guerra vá? Depois de definir a coisa, é como uma pessoa que entra na minha vida: gosto ou não gosto? E há um feito de inteligência que é muito dado ao amor ou ódio á coisa assim abstrata. Amor á guerra legitima, ato de ódio á guerra ilegítima ou ato de ódio a toda e qualquer guerra. Amor a todas também. Absurdo, mas existem. Então, há gente que toma a coisa em abstrato esse toma de entusiasmo por isso. São os espíritos contemplativos.
Agora, há os espíritos operativos. Não lhes basta acumular contemplação, mas são muito sensíveis ao que se passa em torno deles. Querem que as coisas se passem de acordo com aquilo que a contemplação ensinou. Então, são pessoas que tomam posição, operam atuam, são os espíritos operativos.
Exemplo: “ploc-plocs”, conhecedores profundos da Suma teológica, mas incapazes de um esforço operativo. Outros, homens insignes na [operatívidade?] mas incapazes de se deter um minuto na análise de uma idéia abstrata.
Como o homem foi feito para [inteligir?] e agir, ele deve saber tomar aquela qualidade que ele tem mais — vamos dizer que seja a operativa — e ter uma contemplatividade á altura da sua operatividade. Isso ele deve arrancar de si. Se não arrancar, é um espírito incompleta, desarmônico e mal formado. Recíproca também é verdade, salve vocações especiais: contemplativos devem exigir de si operação. Se interessa pelos fatos. Apenas não age porque compreende que o sacrifício dele, não agindo, vale como uma ação. Essa inter-relação: harmonia dos espíritos. Essa proporção, essa harmonia é um bem insigne da providência. É bom, é razoável que a alma seja assim, E isso pode ser dado a um homem comum, pode ser dado, por exemplo, a uma dona de casa.
Considero que Nossa Senhora, ou pela via da natureza, ou pela vida da graça, me deu uma boa proporção de ambas as coisas. Não estou me proclamando gênio, nem homem super capaz de ação. Digo só que essa propor;ao á boa. Dou graças à Nossa Senhora porque é uma proporção adequada.
Isso faz: minha ação sempre a serviço da contemplação e a contemplação sempre voltada a produzir efeito para a ação. Ver meus livros: o eu operativo: homem colocado diante de uma coisa concreta onde há o risco de se passar uma coisa que ele não quer.
Por outro lado: o contemplativo: percebe que isto não deve passar-se assim e tem “n” razões para isso. Estuda, chega convicção funda e então nasce o livro. È o produto da contemplação, e um esforço de ação.
[...]
Tomado de u lado muito deferente: meu pai, pernambucano. Minha mãe bem paulista. A unidade do Brasil, não se cogita de separatismo no Brasil, mas as diferenças regionais, naturalmente existem. E se afirmam sob forma de qualidades e de defeitos.
Pernambucano: forma de inteligência muito rasgada, muito aberta, pega uma porção de campos, uma porção de temas, uma porção de coisas, pega num olhar só estabelece correlações. Meu pai, inteligente, “flanador” como tudo senhor de engenho do tempo dele. E a flanar, quando é feito com arte, é um modo de contemplar. Me lembro a vastidão de temas nos quais ele flanava, era enorme. Um flanador por excelência e que tinha inteligência rasgada, que estava entre a contemplação e a ação neste ponto: subia de bom grado ás coisas mais altas — sobretudo jurídica — de largos horizontes doutrinários. E doutrina jurídica ele pegava muito bem.
Por outro lado, expectador da realidade, e divertido. Gotava de se divertir vindo a realidade. Quando a realidade não divertia, acabrunhava-o. Porque o nordestino, em geral, é mole. Não se prepara para a luta. Prepara-se para apunhalar alguém, mas para lutar a luta da vida na. De repente uma paulada, acabrunhava o homem.
Descreve como ficava o pai na cadeira, acabrunhado. Olhinhos, mãos apoiando nos braços da cadeira, meio amarelo. “O que aconteceu?”
“Você vê, as coisas da vida”... a vida tomava culpa. Mas daí há pouco se esquecia daquilo e estava do novo se divertindo e observando o fatinho miúdo. Era entusiasta do fatinho...
Resultado: interior da cabeça bem arranjado e pitoresco, mas uma vida esfacelada.
Minha mãe, paulista. E o paulista, sem ser o mais inteligente dos brasileiros, não é, tem um senso de uma coisa; organizar a vida. Arquitetura da vida, como se vive, como se organiza, como se estrutura a vida, como se faz o ambiente, como se tocam as coisas, isso os paulista do café tinha. Hoje em dia não é mais assim.
Para se ter idéia disse: casas de paulistas antigos. Palácio dos Campos Eilíseos e Casa da esquina Higienópolis — Dona Veridíana. Essa da Rua Veridíana era do tempo de São Paulo com 70 mil habitantes. Assim se instalavam os reis do café.
Essas qualidades, em mim, coabitam muito harmonicamente. Aquilo que havia de inteligência voltada para grande quantidade de temas, noto que tenho. Noto que sou observador muito atento. Gosto muito da observação. E vejo que isso tudo se conjuga muito bem com as qualidades herdadas do lado materno: dirigir a vida, os fatos, organizar, fazer, eu vejo que, em alguma medida, a tenho. Aí São Paulo e o nordeste se casam harmoniosamente. Sem afirmar que se casam de modo esplêndido, “faustosamente.” É uma coisa mais modesta, há uma harmonia.
Os Senhores nunca notaram em mim dúvida, se devo contemplar mais ou agir mais. Não. Contemplo assim, faço assim, é assim e está acabado.
Abstração: conversando com GN e enjolrras, percebi que não são astronautas dos ares da abstração. Conferencia puramente abstrata, só para daqui alguns anos... Mas, de fato, gostaria enormemente de ter ao lado desse público, eu gostaria de ter um público da pura abstração. Meu espírito encontraria muita alegria nisso.
Por isso tudo, se nota aparentes contrastes: sou da política da verdade. Onde as pessoa menos supõe, vou e digo a verdade. Mas também sou da política do jeitinho. Muita coisa não digo, muita coisa matizo, muita coisa mando outro dizer e não digo eu mesmo, etc., etc. Quer dizer, a diplomacia não me é estranha.
Ora, dir-se-ia contradição. Mas não, me parece que essas duas coisas se conjugam harmonicamente no meu espírito. Ambas as coisas me são próprias, faço-as com alegria, não me rasgo para fazer uma coisa deixar de fazer outra. Pelo contrário, gosto de fazer ora uma coisa, ora de fazer outra. Se não fossem minhas obrigações de apostolado, eu faria isso quase “flanosamente.”
[...]
Outra coisa: muita facilidade par me colocar na abstração daquilo que é metafísico. E Nossa Senhora me deu muita Fé, isso é verdade. E muito espírito sobrenatural. Me a é muito fácil compreender que há uma realidade sobrenatural, que domina a natural, etc., etc., que o pólo de atração está no sobrenatural, no invisível e não no visível, etc., etc., mas percebo, em sentido oposto, percebo que para muitas outras coisas sou absolutamente pão-pão, queijo-queijo. Ou tenho provas palpáveis ou não aceito.
Mas vejo que não é mania minha, não é veneta. Graça a Nossa Senhora não amanheço de um jeito ou de outro. Eu espero conservar-me igual a mim mesmo até a hora de morrer. Aliás, para ser igual a mim mesmo, eu devo dizer que gostaria de fechar aquela janela...
Pode acontecer que eu exija muitas provas e seja muito cauto, pedir pormenores insignificantes, etc.
Como se juntam essas coisas?
Se a pessoa tem espírito bem constituído, de maneira que compreende qual é a esfera própria das coisas especulativas e aí então não pede provas palpáveis, mas aí apela para a lógica e para a razão, depois para a fé.
Depois, quando chega a coisa concreta, não se pode demonstrar por raciocínio como as coisas superiores. Então, vem o fato concreto ou o negócio não está demonstrado. Então, vem cá, me diga o que é, me conte o caso. Pão-pão, queijo-queijo.
É uma mera conseqüência entre essa harmonia entre especulativo e operativo.
Operativo: 1) observação; 2) ação.
Tudo isso se reduz àquele tri-lema de São Tomás: ver, julgar, agir.
Isso tudo está ao alcance de qualquer um. E que em mim, por favor de Nossa Senhora, se realiza assim.
[...]
No final: eu vejo que se não forem dormir agora, dormirão escandalosamente ma. Julgo que isso não é bom. Ajo... terminando a conversa.
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