Conversa
de Sábado à Noite (Êremo de São Bento) –
8/1/83 – Sábado [AC VI ‑ 83/01.06] – p.
Conversa de Sábado à Noite (Êremo de São Bento) — 8/1/83 — Sábado [AC VI ‑ 83/01.06]
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Na história há uma coisa curiosa: diante um personagem de realce, os mais naturais possíveis, as gerações trabalham sucessivamente a sua figura histórica * Uma porção de coisas que com a pessoa viva não tem interesse, com ela morta passam a ter interesse — Exemplo de São Luís * Quando não se trata de um santo, aos poucos faz-se o grande sono histórico — Comparação entre a glória de museu e a glória da Igreja * Tentação para quem vive próximo de um grande homem: por uma certa atitude que não compreendemos, não reconhecemos a grandeza do personagem * “A vida de um santo pode ter fatos desconcertantes” — Pio IX e o cerco dos Estados Pontifícios * Toda reunião bem ouvida deve dar uma porção de estalactites e estalagmites que vão se encontrando com o tempo * Deus pode tornar grande uma inteligência humana de maneira que ela chegue a ver mais lucidamente as coisas do que vê um anjo, com recursos naturais
Quem é o pergunteiro? [Risos]
O Sr. João Clá Dias.
(Sr. João: Enquanto não chegam os outros… Na teoria dos fatinhos, tem o que o senhor dizia ontem: uma certa arte em pôr em realce coisas aparentemente comuns, da vida de todos os dias. Além disso há também um “flash” — daí o gosto pelos fatinhos — que é explicitado na narração.
Agora, acontece que pessoas históricas, infinitamente se dá o caso de Nosso Senhor, incomensuravelmente se dá com Nossa Senhora, por vê‑los na vida de todos os dias não percebem a grandeza de tudo quanto se dá com eles. O mesmo ocorre com outros grandes personagens…)
* Na história há uma coisa curiosa: diante um personagem de realce, os mais naturais possíveis, as gerações trabalham sucessivamente a sua figura histórica
Quer dizer, para eu poder falar é preciso desligar a atenção, inteiramente, de uma pessoa que você meio arbitrariamente resolveu tomar como tema habitual dos seus fatinhos. Vamos falar em abstrato.
Há uma coisa curiosa na história, que me tem chamado muita atenção. É um fato natural, dá‑se com os personagens os mais naturais, a respeito dos quais até seria mau espírito imaginar alguma coisa de sobrenatural, mas isso se dá. [É] que as gerações trabalham sucessivamente uma figura histórica, e com uma certa continuidade lógica, quando elas trabalham bem.
Vamos dizer uma pessoa de realce num determinado ambiente. Vamos dizer num país… vamos dizer, por exemplo… deixa eu imaginar uma pessoa… Quem é uma pessoa histórica, do passado, que eles assim como denominador comum conheçam bem?
(Sr. –: Carlos Magno.)
Não, vamos tomar um personagem, São Fernando de Castela ou São Luís de França. Os senhores têm noção. Dois grandes santos.
Qualquer dos dois durante a vida — às pessoas de bom espírito que seguem a vida dele, que seguem portanto com boa intenção, aproveitando aquele exemplo histórico santificante que Nosso Senhor colocou no caminho deles — fazem um esforço próprio aos contemporâneos: é o esforço próprio ao contemporâneo de apanhar sobretudo as grandes linhas gerais. Porque existe a possibilidade do tufo dos fatos grandes e pequenos fazer com que a pessoa não distinga bem os fatos grandes dos pequenos, que aquilo fica meio emaranhado e a linha geral daquela linha se perca. Então os contemporâneos fazem um esforço de atenção meritório para fixar o que é principal e pegar a linha essencial.
* Da relação entre a linha geral do pensamento de um homem e os pequenos fatos de sua vida temos a sua personalidade
Depois eles mesmos — quando o personagem vai ficando mais velho e que o essencial da fisionomia do personagem já se desprendeu, já deu para compreender — começam num esforço, também meritório, a querer relacionar com essa linha geral os fatos menores do personagem. Porque aí os fatos menores não são algo que atrapalha a visão.
Então há um ajuste dos fatos menores para cognição inteira do personagem.
Depois há um trabalho que é a composição do quadro: é considerar junto a linha geral e os fatos menores, uns se enriquecendo pelos outros, e dá o total da personalidade.
Em geral quando isso se dá, a pessoa está mais ou menos no termo da vida, ou ao menos da vida ativa, da vida pública. E a pessoa fica fixada assim, pelos últimos anos de existência, ou morre. Morrem.
E agora é que vem o fato, porque tudo quanto eu disse aqui se compreende, é o jogo natural da psicologia humana sobre um determinado tema, sobre alguém. Mas aí é que começa o fato mais interessante: morre e o trabalho anterior se repete ao longo das gerações. A pessoa morre, aquele passado vai se destacando da vida presente e uma série de coisas que compunham mais o presente do que o passado, e mais a vida de todos os dias do que a grandeza mítica do passado, aquela série de fatos vão sendo descobertos pelos historiadores, e há um trabalho de enriquecimento de dados, de enriquecimento de quadros, que se soma ao trabalho dos comentadores. Começam os poetas, os literatos a declamar a pessoa.
Então, ao mesmo tempo que o quadro é enriquecido com novos dados, o quadro é analisado por biógrafos, por tudo mais, para formar um grande todo. E aí se constitui inteiramente o mito.
* Uma porção de coisas que com a pessoa viva não tem interesse, com ela morta passam a ter interesse — Exemplo de São Luís
Então, vamos dizer, uma porção de coisas do tempo de São Luís, que na vida dele não tinham interesse, morto São Luís passam a ter interesse.
Vamos dizer o que o rei comia. Podia ser que na vida dele não tivesse interesse, mas quando se tratava de fazer a legenda do rei, morto o rei começam a tomar interesse. Então saber que o rei gostava de tais flores, que ele gostava de tal vinho, que ele gostava de tal pão e de tal manteiga, de carne vinda de tal lugar; que em vida dele não fazia parte nem dos fatinhos nem dos fatões, aquilo nesse primeiro trabalho post mortenm enriquece a biografia. E os historiadores vão correndo atrás dessa documentação.
Saber, por exemplo, que ele uma vez indo a tal lugar assim parou, encontrou um pobre e disse tal coisa para o pobre, agasalhou o pobre de tal maneira, todas essas coisas que não faziam parte nem sequer dos fatinhos, estava incorporado à realidade de todos os dias e tinha o prosaico da vida de todos os dias, aquilo começou a tomar vulto, a tomar vulto, a tomar vulto, e se incorpora, enriquece o quadro da vida do rei.
Mas ao mesmo tempo aparecem as canções populares de saudades do rei, aparecem os primeiros milagres na sepultura do rei que são cantados por bardos populares, aparece aquilo, aparece aquilo outro, e isso continua a enriquecer, já então com a literatura — às vezes até com a ficção, até com lendas — da figura do rei.
Começam então também os quadros, então os esmaltes e as iluminuras, os bordados, as tapeçarias representando o rei, as esculturas representando o rei. Ele vai enchendo os espaços da história.
Isso é uma geração depois da dele.
* Aos poucos vão surgindo novos dados e novos interesses a propósito do personagem — As gerações vão destilando tudo o que se conhece, até chegar o grande silêncio histórico
Aí há uma espécie de pausa histórica desse trabalho, em que todo mundo pára e fica ahhh, a respeito daquela figura assim constítuida.
Terminada essa pausa, começa de novo a mesma elaboração. Quer dizer, aparecem muitos fatos da vida dele que eram ocultos, que logo depois de ele morrer — ou anos depois dele morrer — ninguém podia contar, mas mortos todos os figurantes se pode contar. Aparecem documentos que ele só permitiu que abrissem vinte, trinta, cinqüenta anos depois de ele morrer. Aparecem as memórias dos contemporâneos dele, que estavam nos fundos das gavetas e que os descendentes entregam à publicidade.
E esses fatos mais uma vez contém dados enriquecedores da grande linha e dados que são pequenos. Mais uma vez se faz o mito, depois há uma pausa.
Depois, conforme for, se trata-se de um santo da Igreja, entra na glória definitiva, mesmo dos homens. São Tal. Aí é a glória definitiva, ninguém mexe naquilo. Se mexer — como ele está canonizado — só pode ser para de vez em quando, do fundo das poeiras históricas, aparecer mais uma gema para colocar no adereço dele. É mais algum fato que se soube e que se colocou, ou mais um literato que aparece e que dentro do silêncio glorioso que cerca, o enriquece de algum modo. Ou a piedade popular, ou a piedade da Igreja que de vez em quando acende mais alguma coisa.
Mas aí isto de évons em évons aparece qualquer coisa e pára afinal. E aí fica até o fim do mundo brilhando no firmamento da Igreja, aos olhos dos homens: São Tal! É a forma máxima de glória.
Nisso, as gerações se sucedem com uma espécie de coisa parecida com a pulsação, em que cada vez que uma geração tem apetência de uma coisa, a geração seguinte tem apetência do contrário. E quando uma geração tem apetência das linhas gerais, a geração seguinte vai correndo por cima dos fatinhos. E quando uma geração correu para os fatinhos, a geração seguinte presta mais atenção nas linhas gerais. Forma um balancé harmônico até o grande silêncio histórico.
* Quando não se trata de um santo, aos poucos faz-se o grande sono histórico — Comparação entre a glória de museu e a glória da Igreja
Quando não se trata de um santo como é que faz‑se? Faz‑se o grande sono histórico: cada vez mais aquela figura vai se apagando da memória popular e vai ficando apenas para os eruditos. E depois é tanta gente para os eruditos saberem, que fica para os eruditos mais ou menos maníacos recordarem de um e de outro. E depois… pssit, fica na poeira de glória dos museus. E acabou.
Mas há uma diferença profunda entre ser glorioso no museu e ser glorioso numa igreja, mesmo aos olhos dos homens.
A glória do museu o que é?
Os senhores tomem aqui o Museu do Ipiranga. Tem muitas coisas pertencentes a antigos personagens de São Paulo, por onde se tem a idéia da história antiga de São Paulo. Está bom, mas acabou‑se. Os senhores vão ver quanto por cento dos paulistas passa pelo Museu do Ipiranga por ano. O museu está cheio, mas São Paulo tem doze milhões de habitantes! Uma coisa enorme! Quanto por cento passa por lá? A grande maioria da população nem prestou bem atenção que lá tem um museu, quanto mais ir lá. É raro, é uma ninharia de gente que vai lá.
Olham um pouco para aquilo. Então:
— Ali tem uma caneta que pertenceu ao Barão do Rio Branco.
— Hummm.
— Ali está uma espada que foi tirada ao Francisco Solano Lopes durante a guerra do Paraguai
— Ohhh.
— Mais adiante está o casquete militar que o rei Alberto da Bélgica esqueceu no Rio ou em São Paulo quando andou por aqui.
— Ah — está acabado.
Santo não.
— Aqui é o dedo de São Tal.
— Ahhh! — e vem logo, floresce a oração, com santos a gente conversa.
Quem vai conversar com o Barão do Rio Branco? Só os espíritas. [Risos]
* Fazer a ligação entre os pormenores da vida de um grande homem com a linha geral é muito mais difícil do que compreender a linha geral
Essa seqüência — portanto, fatões, fatinhos; fatões, fatinhos — existe. Mas perturba ainda mais a visão do quadro, já um tanto embrulhado.
Um outro dado que é o seguinte:
Há uma palavra — eu não me lembro, é de um francês célebre qualquer, talvez os meus dois franceses saibam de quem isso é — [que diz]: “Ninguém é grande homem para o seu criado de quarto”, para seu valet de chambre. Quer dizer que quando a gente convive muito de perto com um grande homem, ele para aquele não parece grande homem.
Isso tem algum fundamento?
É difícil a gente fazer a ligação entre os pormenores da vida de um grande homem com a linha geral. É muito mais difícil às vezes do que a gente compreender a linha geral.
Vamos dizer, Metternich. Todo mundo sabe que foi um grande político. Meu Cornélio, todo mundo sabe que foi um grande teólogo. É fácil, pegando gestos da vida deles, montar qual foi a linha mestra da vida e relacionar. Agora, pegar o pequeno modo operacional de fazer cotidiano e descobrir ali a linha mestra, é preciso que a linha mestra seja muito nítida, e assim mesmo é preciso que quem olha seja muito bem informado.
Por exemplo, é por uma debilidade de espírito ou é por uma encantadora variedade de temperamento que Metternich, quando velho, na gaveta dele, alimentava um rato.
(Sr. João: Ele achou horroroso…)
Ahahah! [Risos]
Rato é um bicho prosaico.
(Sr. João: Era um rato branco.)
Como é que Metternich chegou a pegar o rato? Que idéia passou nele de ter o rato guardado na gaveta? Quem é que limpava essa gaveta onde estava o rato? Era o próprio Metternich? Isso era uma coisa semi‑escondida que ele fazia, ou escondida, ou era uma coisa que todo mundo sabia? Ele alimentava com chocolate o rato.
A gente pode imaginar qualquer das duas coisas.
O Metternich foi chamado o cocheiro da Europa e se dizia dele que quando ele espirrava… não, ele dizia da França, isso é diferente, que quando a França espirrava, a Europa inteira assoava o nariz. Mas podia‑se dizer dele, em certo momento, que quando ele espirrava, a Europa inteira assoava o nariz.
A gente poderia imaginar que esse homem grandioso, num dia — ou melhor numa noite — em que ele estava trabalhando no escritório dele, sozinho, com a lâmpada acesa, e ele tivesse um chocolate na mesa para ir comendo aos poucos, o que eu compreendo muito… Comer aos poucos eu nunca gostei, ficar lambiscando chocolate uma noite inteira não seria nunca comigo. E se fosse, não seria chocolate. Chocolate é uma coisa bem boa, mas tem suas horas, não é para a gente se abarrotar. Mas, enfim, Metternich podia gostar de chocolate.
Vamos dizer que ele fosse lambiscando, numa hora de muita preocupação ele tivesse parado para pensar um plano político, e de repente ele tivesse visto um ratinho, que tinha conseguido subir até a escrivaninha dele e de um modo muito engraçadinho tivesse começado a roer aquele chocolate. E que ele tivesse olhado o ratinho, tivesse achado o ratinho um mimo, que o ratinho o descansasse de elucubrações políticas profundas e muitas vezes decepcionantes e ele tivesse ficado uns minutos olhando o ratinho.
Em certo momento ele vê que o ratinho está olhando de um lado para o outro e que vai embora, porque já comeu o chocolate que queria, e ele pensa consigo: “É pena, eu nunca mais terei esse ratinho”.
Mas perto dele está uma gaveta aberta onde ele guarda todos os papéis que estavam em cima da mesa. O instinto imperialista leva‑o a agarrar o rato e pôr dentro da coisa. Diz: “Eu de vez em quando vou soltar esse ratinho e ver o ratinho comer”.
Se um músico tivesse composto uma melodia “Um ratinho em cima da mesa”, todo mundo julgaria encantador. Por que é que um grande estadista não pode ter, também, uma hora de enlevo com o ratinho em cima da mesa?
Não sei se aquieto assim o escândalo que lhe dei, mas isso poderia ser.
Mas a reação do meu querido Pedro Julião mostra bem como através do concreto‑concreto‑miúdo, uma pessoa pode perder, aparentemente, a coerência consigo. E nas mil pequenas coisas, a gente presenciando, ter impressão que ali a grande linha geral se perdeu.
* Tentação para quem vive próximo de um grande homem: por uma certa atitude que não compreendemos, não reconhecemos a grandeza do personagem
Não se perdeu, ela apenas fez as voltas que faz toda raiz quando aprofunda no chão. E é uma tentação para os que colaboram muito de perto com algum Metternich, é uma tentação — muito de perto, muito de perto — dizer: “Aqui eu não reconheço o meu homem”. E é a menor das coisas: é um modo meio desordenado de, não sei, de limpar os próprios óculos, um modo meio incompreensível de jogar a cadeira para trás e ficar pensando, homem, essas mil coisinhas incompreensíveis que só são compreensíveis se a gente entender um reflexo interno da pessoa, e aí a gente entender completamente.
E é uma obra‑prima de psicologia quando tudo, tudo, tudo, numa pessoa que tenha uma linha mestra consegue explicar como é que se liga a essa linha mestra.
Os senhores sabem como eu venero o Cornélio, mas de repente o Cornélio se deliciava em alguma coisa holandesa que eu não entendesse. Agora, eu dizer: “Aqui está meu batavo, está vendo? É preciso agüentar o peso da Batávia junto com o esplendor do Cornélio”? Não, está mal pensado. Isto se ajusta de algum modo na cabeça do Cornélio, e ainda que ele goste de um queijo da Holanda mal-cheiroso, isso psicologicamente tem uma interpretação.
Se alguém aqui é holandês não me queira mal, mas eu escolhi a Holanda de propósito, porque assim muito de momento eu não me lembrei de ninguém que fosse holandês. Eu precisava de um exemplo concreto.
Um gordo queijo holandês… vamos dizer, vamos dizer: quem é que haveria de compreender que o mais fétido dos queijos fosse produzido e saboreado pelo mais delicioso dos países? É o Camembert. O Camembert para um espírito trivial e leviano cheira mal. E é um queijo maravilhoso, cuja delícia se percebe no meio da fedentina. A classe do Camambert é o sujeito ter bastante classe para sumir a fedentina e encontrar dentro o gostoso do Camembert.
Se a gente fosse apresentar para uma pessoa:
— Quer um dos aspectos da França? Fecha os olhos.
A pessoa pensa que vai entrar um perfume maravilhoso e a gente põe um Camambert. O sujeito abre os olhos e diz:
— Você está brincando!
— Não, é o queijo…
— Não, leva embora isso!
— Eu vou comer um pedaço na sua presença e você vai entender o que tem o Camembert de gostoso.
O outro, se tiver classe, olha e diz:
— Dá cá um pouco — e se não tomar cuidado come meio queijo.
* O problema é decifrar as coerências no meios das incoerências da vidinha comum
Então há esse problema: decifrar as coerências no meio das incoerências da vidinha comum, é uma coisa muito importante para se ver o total de uma personalidade.
Fatinhos é um talento especial que pega essas coisas e filia à grande linha comum.
Eu ouvi dizer que no Praesto Sum — nunca ouvi nenhum — o João trata realmente de um grande homem, porque ele torna grande o homem de que trata, ele põe muito em evidência o fato grande e a linha geral. Mas que ele também tem uma aptidão toda especial — se eu chamasse de talento, ele se poria a rir — para distinguir, no fato pequeno, a expressão grande.
E aí está, meu João, a resposta que você pediu. Não está certo isso?
(Sr. João: Até a parte final está certo.)
Eu vou dizer uma coisa: é que o que eu falei dos fatinhos desconcertantes, do desconcertante de tantos fatinhos, isso que eu falei é preventivo, porque pode ser que algum venha a ter algum dia ocasião de trabalhar tão perto de mim quanto trabalha o Fernando Antúnez e não entender, por exemplo, porque é que eu não termino num determinado dia o Despachinho quando a gaveta está tão cheia, a pasta está tão cheia. E pareceria evidente que é muito menos importante se atender o membro do Grupo que está com dor de dente e quer dizer uma palavrinha — dor de dente no figurado — do que despachar cinco documentos que ainda poderia ser liquidados naquela noite…
(…)
… vou atender o que está com dor de dente e deixo os documentos do Fernando Antúnez. É desconcertante às vezes. É preciso saber encontrar a coerência, que muitas vezes são desconcertantes.
Então, para prevenir os senhores, se uma vez tiverem que trabalhar comigo entenderem como é. Aí estou eu com minhas precauções.
(Sr. João: Com um fundador de ordem religiosa isso é diferente. Um gesto, uma atitude de Santo Inácio não poderia jamais ser ponto de perplexidade para um jesuíta. Se fosse, é porque ele, jesuíta, estava errado e não Santo Inácio.)
É, é certo.
(Sr. João: Um jesuíta tinha que olhar para Santo Inácio não só a linha geral, mas também para todos os particulares, procurar pegar a personalidade de São Inácio no seu todo.
Tenho impressão que no nosso caso ainda muito mais, porque São Inácio não representava toda a Contra‑Revolução no tempo dele, não representava toda a luta contra o mal. Mas no nosso caso, hoje em dia, nós temos a Causa total da Contra-Revolução, diante de nós. Portanto, nossa dependência é muito maior do que um jesuíta com São Inácio. Donde para nós interessa tanto a linha geral, quanto os fatos pequenos, quanto tudo! E de uma forma calorosa.
Assim como diz São Tomás que os homens providenciais virão co‑julgar no dia do Juízo e eles serão leis vivas, serão a base do julgamento para todos os homens, no nosso caso o Fundador para nós é uma lei viva. Lei viva não só no que diz respeito à linha geral, mas nos menores fatos. De modo que tudo que o senhor disse… Mas é isso, é isso e muito mais.)
* A vida de um santo pode ter fatos desconcertantes — Pio IX e o cerco dos Estados Pontifícios
Em geral, os que escrevem vidas de santos — eles fazem bem nisso — colocam também fatinhos, mas os fatinhos que facilmente se ligam ao grande fato geral. Eu não vi ainda hagiógrafo — quer dizer, biógrafo de santo — que colocasse os fatos desconcertantes, mas a vida de um santo pode ter fatos desconcertantes.
O senhor veja, por exemplo, santo… não é santo, a Igreja tem o processo de beatificação dele em andamento, mas ainda não canonizou, eu não terei surpresa de saber que ele será canonizado. É Pio IX.
Pio IX foi um grande papa que fez a Revolução recuar, certamente, e de muito, que tem um grande papel na história geral da Contra‑Revolução, um grande papel. Foi ele que fez o Sylabus e uma porção de coisas assim.
Agora, alguns fatos da vida de Pio IX, fatinhos. Por ocasião da queda de Roma, a queda propriamente de Roma passou‑se assim:
Os Estados Pontifícios não tiveram, durante o tempo de Pio IX, um grande missionário. Ou não corresponderam às graças que esse grande missionário representava. De maneira que aquilo que poderia ter tido um resultado, que era de levantar a população dos Estados Pontifícios, a uma contra Garibaldi, fazendo contra o pífio Garibaldi aquilo que a Espanha tinha feito algumas décadas antes — com tanta glória e tanto êxito — contra José Bonaparte, em determinado momento contra os generais de Napoleão, eles mesmos, quer dizer, aquela luta, aquela coisa toda, aquela insurreição geral da Nação, os Estados Pontifícios deviam ter feito, não fizeram! E Pio IX percebeu que não tinham feito.
E para que os Estados Pontifícios não fossem invadidos pelas tropas de Garibaldi, ele ficou reduzido durante vinte anos mais ou menos — 50 a 70, talvez menos de vinte anos ele ficou reduzido — a se manter exclusivamente pelas tropas de Napoleão III, que ele mantinha ali para conter a invasão de Garibaldi. Como Garibaldi era um pífio como general, uma divisão francesa bastava para meter medo nele. E era mais ou menos o que Napoleão III tinha lá.
E Pio IX era rei — de fato, de direito, ele era rei —, mas de fato ele era rei só porque Napoleão III por razões X o mantinha lá.
Resultado: que em certo momento arrebenta a guerra franco‑prussiana e Napoleão III declara a Pio IX que ele ia retirar as suas tropas para segurar a invasão prussiana. Não segurou nada, foi uma vergonha, ele foi derrotado do modo mais porco que se possa imaginar em Sedan, em 1870, mas retirou as tropas. Então Garibaldi entrou.
* Reação de Pio IX diante da invasão de Garibaldi: um jogo de xadrez
Constitui‑se uma expedição mundial, da qual participaram uns dois ou três brasileiros, de voluntários do mundo inteiro, zuavos pontifícios, para lutar para a manutenção dos Estados Pontifícios. Mas era uma tropa pequena. Houve um general francês que comandava, Gal. de Piemodant. Mas essa tropa não aguentou o baque e Garibaldi entrou.
Estava o cerco armado. No dia da entrada de Garibaldi, em certo momento a artilharia garibaldina deu um tiro num ponto da muralha que ficava próximo à Porta Pia, e ficava aberto o campo para os soldados entrarem. Isso na artilharia daquele tempo levava umas horas para se montar. E como, apesar de tudo, havia uma certa resistência dessas tropas pontifícias, isso levou umas horas.
Pio IX prevendo a derrota, mudou‑se do palácio dele, residência, que era o Quirinal, ele mudou‑se para o Vaticano, junto aos ossos de São Pedro. Mudou‑se com dias de antecedência. Atitude grandiosa: esperar junto aos ossos de São Pedro o invasor que viria. Está muito bem.
Os senhores sabem o que ele passou a manhã fazendo nesse dia? Ele celebrou e depois passou [o dia] jogando xadrez.
Ora, era um dia em que se poderia imaginar o papa rezando na Basílica de São Pedro cheia de sacerdotes, de freiras, de laicos, orações em todas as igrejas pedindo o milagre in extremis. Não, ele passou jogando xadrez.
* Os embaixadores vão manifestar sua adesão a Pio IX e repulsa à invasão e este os recebe com piadas
Quando as tropas de Garibaldi invadiram a Itália, o corpo diplomático acreditado junto ao Vaticano teve uma atitude bonita: todos se reuniram e foram visitar o papa no Palácio do Vaticano para dizer da parte dos respectivos soberanos — era a Europa ainda dos reis, não havia repúblicas — que continuavam a reconhecer no papa o rei de Roma.
Os senhores sabem como é que ele recebeu? Com piadas.
A gente o imagina sentado num trono, em atitude de luto, talvez com paramentos de missa de defunto, e recebendo com… Não! ele disse umas piadas de debique de Garibaldi. Ele recebeu de pé, com um desprezo pelos acontecimentos, e mandou o pessoal embora. E assim foi seu primeiro dia de prisioneiro.
Espanta! Não espanta?
Demais a mais… Bom, vamos ficar nisso.
Entretanto, se sabe que ele era um homem que tinha muito espírito e que costumava animar os dele contando coisas curiosas nas ocasiões mais dramáticas de seu pontificado. A coisa já se explica de algum modo. E pode ser que ainda tenha outras explicações. De maneira tal que pode ser que se encontre aí um ato de virtude que esteja na linha das grandes virtudes dele, mas choca.
E se algum dos senhores fosse admitido como guarda suíço de Pio IX, naquele tempo, teria ficado chocadíssimo vendo isso.
Visto de perto, há dificuldade de interpretar.
Eu noto um silêncio meio consternado. Qual é a razão desse silêncio?
(Sr. João: Nenhum desses teria uma obrigação tão grave junto a Pio IX como um jesuíta junto a Santo Inácio…)
(…)
… normalmente viria para ter alegria de saber que os senhores vão ter maior número de horas de sono. E já me dou bem conta que são uma e vinte.
(…)
Está bom, uma e meia nós terminamos. Quem tem uma pergunta a mais para fazer, faça.
(Sr. Marcos Faes: A cavalgada que o senhor imaginou, na Reunião de Recortes, de Belém até Moscou.)
* A Cavalgada dos 70 Príncipes
É aquilo, por exemplo, aquela imagem que eu dei.
Aquilo é uma metáfora. Aquilo é só uma metáfora? Aquilo é a tintura-mãe de um plano que não se pode realizar, mas que se nós tivéssemos os cavaleiros de legenda capaz de realizar, teria possibilidade de realização incomparáveis.
Eu estava dizendo na hora do jantar:
Os senhores imaginem, para não pôr um número prosaico no caso, número redondo, porque os números redondos cheiram a sistema decimal… O sistema decimal tem até seus lados práticos, como tanta coisa que a Revolução fez, mas cheiram a essa adoração prática, adoração do prático que é característico da Revolução. Então cuidado com o sistema decimal! Ele não é ilegítimo em si, mas ele está psicologicamente carregado de conotações que merecem cuidado.
Então vamos imaginar um número bonito, possível. Eu vou imaginar — não vou perder tempo com número — o mesmo número que eu dei no jantar: 75.
Os senhores imaginem que fosse possível. A Europa tem no total — eu vou fazer um cálculo assim em bruto — pelo menos, tomando entre depostos e reinantes, uns 500 príncipes. Uns 500 príncipes entre príncipes e princesas, pelo menos. E incluindo nisso grão‑duques russos ultracomidos pela traças do exílio e tudo mais que os senhores queiram.
Os senhores imaginem que se fizesse uma cavalgata com 75 príncipes, das mais variadas casas da Europa, e que fossem de couraça de ponta a ponta, fossem realizar aquele plano, e fosse chamado “A Cavalgata dos 70 Príncipes”, o efeito que isso produziria, de qualquer maneira.
As pessoas se postariam pelo caminho, haveria gente que iria apedrejar, haveria gente que iria jogar ovos, haveria gente que iria pôr tapetes no chão para que eles passassem por cima, haveria de tudo.
Seria realizável se houvesse 70 príncipes, ou 75, seria realizável. Mas não é só se houvesse eles; se eles fossem quem eles deveriam ser, se eles fossem inteiramente, eles deveriam ser não tem dúvida nenhuma.
Vou dizer mais, muito mais modestamente…
(…)
… ocasião para adiar por dez minutos, ou quinze, o fim da reunião. E o Sr. Guerreiro dirá se tem alguma pergunta a fazer. [Vira a fita]
… mas não vamos perder esse tempo discutindo sim ou não. Isso é o que se chama um assalto truculento.
(Sr. Guerreiro: A propósito do filme ET, se seria uma parábola para a vinda de um profeta do lado de lá ou diretamente o demônio. E nesse sentido também, como será nossa luta contra essa carga de preternatural.)
* Toda reunião bem ouvida deve dar uma porção de estalactites e estalagmites que vão se encontrando com o tempo
É preciso ver que o senhor fez umas três perguntas… ahahah! E vão além do horário dos nossos enjolras.
Nós o que podemos fazer é continuarmos a conversar enquanto eles vão dormir… É uma solução boa, não acha?
Os senhores todos conhecem naturalmente o que se passa em certas grutas com estalactites e estalagmites que se encontram e formam uma coluna. Esse trabalho de estalactites, estalagmites, me lembra o operar do espírito humano nas questões nebulosas: vão pingando do espírito humano problemas, problemas, problemas, que aumentam o espírito humano. E por outro lado pingam questões na terra que vão por si mesmas explicando‑se umas às outras. Em certo momento há o encontro do estalactite com o estalagmite e há uma solução clara que se forma.
Toda reunião bem ouvida deve dar uma porção de estalactites e estalagmites que vão se encontrando com o tempo. É a condição da reunião bem ouvida. E eu gosto muito que um tema tão rico como esse do ET seja, portanto, objeto de perguntas dessa natureza.
Vamos entrar na pergunta um, o que eu imagino que venha.
* O desfecho mais provável para a Revolução é uma invasão da Terra por espíritos imundos
Uma invasão maciça, uma sarabanda fétida de moleques de prostíbulo, de facínoras de prostíbulo, agitando e apunhalando a terra? Quer dizer, uma desordem de discos voadores? Disco voador é um modo de dizer; eles são bonecos às ordens dos demônios, na realidade.
É isto que vem ou vem um homem ou um demônio fingindo de ET, que faz‑se adorar e tem uma biografia de longe parecida com o ET da fita? O que propriamente eu espero?
Compreendo a pergunta, mas pela pluralidade de discos que tem aparecido, está claramente dado a entender que segundo a falcatrua deles há muitos habitantes desses outros astros. O que eles comunicam evidentemente com a intenção de preparar para a vinda de muitos ou de todos eles.
Eles, quais? Os tais demônios que habitam os ares.
Realmente, um rei que invade uma terra, quer invadir com seu exército. E o rei do nferno quer invadir com todos os seus.
Normalmente, é mais provável portanto — não estou fazendo uma afirmação, mas é mais provável — que seja a corte geral dos espíritos imundos, que invadam a terra. Desfecho perfeitamente adequado para a Revolução. A Revolução é assim.
De um lado.
De outro lado, em virtude do princípio monárquico ao qual eles estão sujeitos, eles mesmos, tem que ser que eles apresentem um chefe. Com um título qualquer de pajé, de guru, uma porqueira qualquer, mas que seja o chefe em torno do qual se passa a sarabanda.
Portanto, eu acho mais provável uma coisa e outra.
Então, a biografia que a fita apresenta simboliza, de algum modo, a biografia do chefe, a obra do chefe. E não dos espíritos imundos que a meu ver já existem em quantidade por aí, a maior parte invisíveis, muitos tomando aparência, formando bonecos de homens e andando por aí.
Essa é a resposta à primeira pergunta, como probabilidade, não como certeza. Não sei se está claro ou se há estalactites ou estalagmites pendentes desse ponto.
A outra pergunta qual era, meu caro Guerreiro?
(Sr. Guerreiro: Posta a natureza angélica, como seria essa luta…)
* Deus pode tornar grande uma inteligência humana de maneira que ela chegue a ver mais lucidamente as coisas do que vê um anjo, com recursos naturais
Eu acho o seguinte:
Eu não estou bem certo porque nunca pensei no assunto que o senhor levanta, mas uma coisa é certa: é que pode haver criaturas humanas maiores que os anjos. Quer dizer, que por uma ação miraculosa da Providência sejam elevadas, recebam forças maiores que as que tem um anjo.
Agora, pode acontecer que uma criatura humana, sem receber uma graça de ordem propriamente sobrenatural de Deus, mas simplesmente porque Deus lhe comunica uma força natural própria, ele seja maior do que um anjo?
Eu vou usar uma palavra que é também arcaica, portuguesa, mas bonita, ao menos é arcaica portuguesa para o português do Brasil. Em vez de dizer aumentar, agrandar, tornar grande, tem seu sabor.
Pode Deus agrandar uma inteligência humana de maneira que ela chegue a ver mais lucidamente as coisas do que vê um anjo, com recursos naturais?
A esse respeito eu não tenho certeza, eu fico na dúvida, eu precisaria pensar, talvez recorrer ao bom Cornélio, eu não tenho certeza.
Agora, de momento pelo menos, essa distinção, que é bonita, carece de efeito prático. Porque a força que Nossa Senhora queira que nós tenhamos com Ela na luta, esta força nós teremos. Essa força tem que ser proporcionante à luta.
Qual é a essência da força da luta?
É um grau de espírito contra‑revolucionário que seja tal que oponha primeiro ao demônio uma recusa total a tudo quanto ele sugere, e que leve o homem a tender totalmente para o ponto pinacular do contrário do que o demônio sugere. Em segundo lugar, para que seja isso, ter uma união com Nossa Senhora como nós descrevemos hoje à tarde na Reunião de Recortes. É isso que eu considero.
Nesse ponto é preciso dizer que há uma espécie de virginalidade do espírito contra‑revolucionário, por onde um espírito que nunca diga sim ao demônio na menor coisinha, mas que basta perceber que o demônio quer uma coisa para ele dizer que quer o extremo do contrário. Mais ainda: na quase totalidade dos assuntos antes de o demônio convidar para querer, ele já quis o contrário.
Em relação a este a natureza angélica do demônio não tem importância nenhuma, ele pode tratar aos pontapés.
* As duas atitudes diante de um ataque do demônio: reação “wageneriana” e reação de filho da Igreja Católica
Então veja a cena:
Um de nós pode ver formar‑se sobre si, com nuvens e com outras figuras, um monstro grandioso que o ataca. Ele tem duas atitudes a tomar.
Uma atitude será uma atitude mais “wagneriana”: “Monstro imenso que eu odeio, mas cuja grandeza eu reconheço, eu me despenco sobre ti”. Outra atitude é: “Vira-lata, não te tomo a sério, entre naquela lata de lixo e fique ali”.
Pode ser que “wagneriamente” nosso modo de ser pedisse um duelo grandioso com um ser fabuloso. Ao demônio não se trata assim, é pas déchire: “Eu sou membro do Corpo Místico de Cristo, sou Filho da Igreja Católica, sou filho da Rainha dos Anjos, fora! Não te ligo, nem a ti, nem à tua inteligência, nem a teu poder, nem a nada! Você é uma pulga! Fora daqui!”.
Isso farão só aqueles que forem filhos da Imaculada, que pisa a cabeça da serpente, mas de tal maneira que se Ela estivesse pisando no cristal de rocha mais puro, Ela não estaria mais incontaminada do que pondo os pés celestes sobre aquela matéria imunda.
É assim.
Aí está respondida toda a sua terceira pergunta. E com isso, meus caros, chegou o nosso ponto de encerramento. Eu não os cumprimentarei pessoalmente porque estou muito resfriado, mas podemos rezar três Ave Marias e tomar os nossos respectivos destinos. Vamos então rezar.
Ave Maria Filia Dilecta Dei Patris…
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