Reunião de Sábado à Noite – 22/5/1982 – Sábado [rsn - 031] – p. 16 de 16

Conversa de Sábado à Noite — 22/5/1982 — Sábado [rsn - 031]

* No Grupo os transtemas são tirados da observação feita da vida diária, o fato de torná-los habituais fura uma espécie de parede de aço em que a Revolução enclausuro os espíritos

(Sr. Guerreiro: O senhor, no MNF da semana retrasada, comentou todo o assunto do transtema. E disse que nem sempre comentava certos assuntos que gostaria de comentar. Então, eu gostaria de propor que o senhor comentasse algum tema, ou alguns transtemas, ou algum assunto que o senhor não tenha tido ocasião de tratar e que trataria hoje. De nossa parte haveria um sabor muito especial em saber qual é o tema que o senhor gostaria de tratar.)

Vocês gostariam que eu tratasse para conhecerem o transtema, ou para saber qual é o tema que eu gostaria de tratar.

(Sr. Guerreiro: Ambas as coisas. Mas a razão primeira era mais para saber qual é o tema que o senhor gostaria de tratar nesse momento. O senhor gostaria de tratar deste tema, mas por razões estas e aquelas não teve ocasião de tratar.)

Eu gosto muito de pergunta e vou entrando no assunto. Mas preciso preparar a entrada no assunto.

Eu não sei [se] a respeito da questão transtema vocês estão se dando bem conta do que está sendo feito, ou seja, do que está sendo feito no MNF e pelo MNF. Não é este tema que vou tratar; estou aplainando as avenidas para chegar até lá. Mas não, ou melhor, mas por não medir bem essas coisas, vocês perdem muitas vezes algumas das perspectivas mais próprias a impressionar, das coisas que a TFP trata.

É possível que transtemas sejam tratados por filósofos, um ou outro filósofo, um ou outro intelectual. Eu não posso garantir, porque o que se escreve no mundo de hoje é uma torrente, uma tonelada, há verdadeiros mundos culturais fechados em si que rolam por aí, e um homem precisaria ter uma pretensão do outro mundo para poder dizer que pode garantir isso. Não é o que estou afirmando. Estou afirmando outra coisa. É que fora do que se possa passar em mundos intelectuais que estão segregados, que vivem uma vida própria segregada do fluxo geral do pensamento de todo mundo, fora disso, pessoas que tratam da questão no nível em que nós tratamos, quer dizer, não é indo ler em tal filósofo etc., mas tirando das suas observações pessoais, tirando da vida de todos os dias os transtemas, e com intuito de fazer desses transtemas matéria de conversa, pólo de pensamento, ponto de referência das cogitações, isto significa furar uma espécie de parede de aço em que a Revolução enclausurou todos os espíritos do comum das pessoas.

Quer dizer, nós quatro conhecemos meios completamente diferentes. Eu não tenho dúvida nenhuma em afirmar que nos meios que cada um de nós conhece, a introdução de um transtema seria considerado um quimera, uma coisa completamente fantasiosa, quando não aloucada, que caracterizaria o que eles chamam um posta, ou seja, um sujeito que fica entre a loucura e o bom senso, e que ninguém acompanharia, e que absolutamente ninguém conversa sobre essas questões.

Portanto, é uma tentativa de fazer o espírito humano entendido como tal, a mentalidade da sociedade humana inteira, o espírito humano voltar a uma clave de pensamento de que estava expulsa há séculos; e portanto uma modificação. Encontrar o distrito interno desses na alma e franqueá-lo, é muito mais importante do que encontrar a América e franqueá-la à imigração de todos os povos. Não sei se as… [ilegível] …bem o alcance do tema que falam e do sentido que fazem ou não notam.

* O homem contemporâneo vive dentro de uma espécie de alvéolo de aço no qual está limitado pelos temas

(Sr. –: Eu confesso que explícito assim não tinha isto. Agora o senhor falando eu lembrei do contexto que o senhor falou na última vez, é uma operação no contexto; mais do que romper uma carapaça de aço.)

Eu poderia comparar o espírito de cada homem contemporâneo, tirado dos tais círculos que não sei o que são, mas que não têm comunicação com a massa, poderia comparar dizendo que o espírito de cada homem vive numa colmeia de aço, cada um colocando no seu alvéolo de aço, dentro do qual ele está limitado pelos temas. O tema para ele não ocorre; não ocorre, ele pensa que não existe, o outro [do] lado dele [também] pensa que não existe, e se um dos dois tocar um tema assim expõe-se a ser fulminado pelo outro. E porque todos sentem isto, todos ficam quietos e ninguém levanta.

Portanto, no sentido bom da palavra é uma Revolução. Eu acho isto uma preliminar tão importante para vermos bem de frente, que estou disposto a demorar-se um pouco nela.

* Negligência dos membros do Grupo em não perceber a incompatibilidade que há entre a clave do Sr. Dr. Plinio e a dos outros, por isso não se sentem bem nem fora nem dentro

(Sr. –: É uma perspectiva muito curiosa o senhor expor assim a introdução do tema, porque a gente estando perto do senhor é levado a ver o transtema com naturalidade, porque o transtema é conatural ao senhor. Mas ao mesmo tempo, a gente por influência do contexto, acha muito difícil, que não pega, que não sai. Então, a alma fica num movimento pendular: uma hora a gente acha simples como tirar um lenço do bolso…, vê a conaturalidade com que, ao mesmo tempo, o senhor acha uma coisa muito alta nisso, quando vê da outra perspectiva.)

Mais ainda. Porque o que estamos conversando agora não foi explicitado, acontece um certo estrabismo nos membros do grupo; por que eles não se dão conta — e entra nisso uma negligência — da incompatibilidade entre quem é conatural com o transtema e quem, pelo contrário, é conatural com a negação do transtema. Portanto, não se julgam obrigados a optar entre a clave dos outros e a minha clave. Ficam com uma idéia difusa de incompatibilidade, mas não mais do que isto.

O resultado é que quando assistem, por exemplo, a certas Reuniões de Recortes, certas reuniões feitas por mim, são sujeitos a dois movimentos diferentes: um movimento imediato é elevar-se muito; outro movimento é um desânimo em ficar de fora por se sentir vivencialmente coordenado só com os temas e, portanto, mais alheio ao mundo dos transtemas. Então, vivencialmente, uma espécie de dúvida sobre se o que eu apresento é uma super-verdade, ou se o bem… [ilegível] …não está como outrem. A questão existe e se põe difusamente.

(Sr. –: A opção é ou levitar ou ficar com os pés no chão e os olhos também.)

Exatamente. Em vez de fazer isto, elasticamente, indefinidamente ninguém escolhe isto assim, ninguém se põe diante disso como eu estou me pondo, e fica balançando entre essas duas coisas, com ares de decepção mais consigo mesmo, meio comigo; porque o espírito não está voltado para os transtemas, então dá uma decepção do que está sendo tratado. Muito sono durante a reunião é do sujeito que percebe que não conseguiu entrar no avião dos transtemas, então ele se sente no aeroporto e fica dormitando. Muitas outras vezes é entusiasmo, então é incompatibilidade com o [sujeito?] que está lá fora.

Resulta daí uma coisa curiosa: os senhores do Grupo se habituam a uma situação intermediária indefinida: não se sentem inteiramente bem nem no Grupo, e nem fora do Grupo. Fora do Grupo eles se sentem mal porque eles vêem a negação rotunda do transtema e isto os aborrece. Dentro do Grupo eles não se sentem bem porque eles não têm coragem de entrar na clave dos transtemas inteiramente.

Vocês sendo só três, é tão mais fácil tratar disso. Um está muito mais atento na máquina do que no que está sendo dito. Isto é para ser ouvido. Mas é uma ocasião tão boa para pegar este ponto e pôr em inteiro realce, que eu não quereria deixar de mencionar isto.

(Sr. –: Nesta reunião do MNF que o senhor tratou do transtema — o Sr. Fernando se recordará —, mas havia uma aprazibilidade no convívio com o senhor nesse dia que, pelo menos para a minha memória, ficou como um dia paradigmático do que deve ser o convívio com o senhor. Curiosamente, havia da parte do senhor uma alegria que, confesso, há muitos anos não sentia na minha alma: a alegria de ser católico inteiramente, e ser contra-revolucionário. Portanto, a alegria da inocência, e do aprazível, da ordem, da calma, da bondade, da afabilidade, que é própria da alma que vive no transtema.)

Eu quero crer que isso fosse uma graça de momento para ajudar a compreenderem que má escolha fazem escolhendo o contrário; como o contrário não é nada. Porque, realmente, não é nada. Por que, o que é ter uma fábrica em comparação com o ter um transtema?

* Dois membros do Grupo que se sentem incompreendidos por causa da apetência que tem para os transtemas

(Sr. –: Curioso é que na conversa, agora, a gente nota isto. O senhor está tratando de uma maneira muito afável o ponto de vista. Como o senhor sabe dizer, está dizendo o que tem que ser dito, e até o fundo. É como se estivesse diante do juízo de Deus, mas só que feito à maneira que não é o juízo ainda final, mas é uma espécie de convite.)

E um convite pelo qual se terá que responder. Porque está em mim fazer uma tentativa para tornar afável o que eu digo, mas não está em mim evitar o seguinte: Isto é uma graça dada a vocês; vocês vão responder por esta graça. Isto não está em mim evitar. Ordem posta por Deus, o Juízo Final é isto.

Tomando em consideração você e você. São pessoas muito diferentes. Se não pertencessem à TFP, não tivessem esse denominador comum, seria difícil estabelecer um nexo, um paralelo, qualquer coisa, a não ser num desses convívios sociais em que todo mundo convive como todo mundo. Não é isto [o] que eu digo; para terem um entendimento profundo seria muito difícil.

Vocês dois se caracterizam — cada um a seu modo, apesar dessa diferença — por um traço que atrai muito a minha atenção, que é o seguinte: os longos isolamentos, os longos silêncios. Esses longos isolamentos e longos silêncios a mim dão a impressão de que lhes deixa as almas… Imaginem que se tomar uma terra virgem, fecunda, mas não trabalhada. A gente vê a excelência da terra, vê que pode ali dar orquídeas, pode dar plantas muito bonitas misturadas com carrascais, com estagnações, com toda espécie de coisa junta como dentro da jungle. Cada um de vocês carrega uma jungle própria dentro da cabeça, dentro da qual se move, em certas horas, aflito ou entretido, isolado sempre, julgando que tem nas cabeças umas coisas que não podem ser contadas para ninguém, porque não compreenderiam, porque são coisas que não se compreende etc.

Uma boa parte disso é “enjolrise”, é “pré-enjolrise”, é “geraçãonovismo” etc. Mas uma boa parte é transtema para o qual nunca tiveram interlocução, que julgam que ninguém entenderia, e que vocês não renunciam a incorporar de algum modo como o sol de sua jungle, como cujos raios às vezes brincam e passeiam etc.

Daí uma das muito pouco características que vocês dois têm em comum… [ilegível] …notívagos. Eu não elogio essa notivagia, mas em parte ela os prende a isso, é a idéia de que todo mundo está dormindo em volta, e que o ambiente em volta está como que habitado por, digamos, entes meio imaginários, uma realidade mais imaginária povoa aquilo. Mas que tudo isso é uma unidade de alma que significa…, mas significa, de outro lado, alguma coisa de malsão, que é transtema não tratado.

Vocês, como certeza, tiveram muito disso em meninos e mocinhos; depois ficando moços maduros e depois homens, a prática etc., foi empurrando essa jungle para trás. Mas cada um de vocês ficou com esse estado de Boiás dentro da alma, aberto a umas coisas dessas, mas vocês mesmo têm medo de que seja meio loucura, e depois, de outro lado, consideram que alguma coisa que há de mais sensível em vocês, mais vocês em vocês está ali.

Eu provavelmente estou fantasiando e provavelmente isto não é assim. Mas eu vou a título de hipóteses, para vocês compreenderem bem ao vivo o que significa para os espíritos melhores dentro do grupo o não haver nenhum nexo entre os transtemas em que eu me ponho e os transtemas da jungle de cada um. Nenhum nexo é exagerado, mas haver pouco nexo. E que somente haveria esses transtemas próprios [se] fossem enunciados, fossem tratados! Seria verdadeiro semeamento, sem ser a esterilização da floresta. Seria transformar a floresta em bosque europeu, com a exuberância das coisas tropicais.

(Sr. –: Muito interessante e muito apetecível.)

Isto é com os mais aproveitáveis dentro do grupo, muitas vezes. Não quero dizer que seja sempre com os mais aproveitáveis, mas muitas vezes é. É uma coisa que dita assim, de momento não produz em vocês nenhum efeito, a não ser uma inesperada esperança, certo alívio antecipado, que depois vai dar em desânimo. “Não, não dá, nunca se tratará disso, Dr. Plinio vai passar para outros temas, isso vai ficar parado; ele voou de avião por cima da minha jungle, me disse um adeusinho, mas não é outra coisa senão isso”. Então, compreendam agora a resposta que eu dou à pergunta de vocês dois e do Guerreiro, que não sei se foi combinada.

(Sr. –: Houve uma combinação a “posteriori” com o Sr. Guerreiro.)

Esta expressão está ótima: “combinação a posteriori”!

* A epopéia do Sr. João está em que sabe dar vida a todos os temas transtemáticos que estão na cabeça dos “enjolras”, daí o encanto que produz neles

(Sr. –: [Não se distingue bem, mas parece pedir ao Sr. Dr. Plinio que trate de algo mais interno dele, Dr. Plinio.])

Isto é muito difícil. O assunto que eu tenho vontade de tratar com cada um é o transtema que eu trataria com ele se ele se abrisse comigo. Porque você suponha que eu fosse um músico que tocasse cinco instrumentos; eu não teria vontade de tocar harpa com o especialista de violino, e eu [não] teria vontade de tocar violino com a especialista de harpa. São coisas distintas. E quase que se poderia dizer que cada transtema, ou cada alma, tem toda uma escala, uma gama que ficam [para os (sic)][fora dos (?)] comentários não feitos dos próprios transtemas de que eu trato.

Por exemplo, você ou você, ouvindo-me falar agora teria algum comentário do ponto de vista de seu próprio transtema a fazer, ou alguma pergunta a pôr. Porque eu percebo, pela fisionomia que fazem, que uma certa impressão o que eu estou dizendo lhes causa. E essa impressão vocês relacionariam, querendo ou não querendo, com essa jungle interior. E é esse o tema que pegaria com você. Não seria o mesmo tema para cada um.

Como é, meu Fernando? Você está prestando atenção, ou está tocando essa máquina? Parece-me que de determinado ponto da reunião, você passou a prestar atenção no fator humano da reunião e deixou a máquina. Eu estava falando deles dois, mas estava pensando o tempo inteiro em você também…

[(…) (?)]

se aplica a você, tal qual, com a circunstância muito feliz que o João sabe simbolizar e dar vida a uma porção de transtemas que se mexem em você. De maneira que isso lhe faz muito bem. Aliás, o que é toda a epopéia — porque é uma epopéia — de São Bento e Praesto Sum, é exatamente o João saber, através das maneiras dele e das cristãs andaluzias dele, dar vida a “N” transtemas que estão na cabeça dos “enjolras”. Eles então ficam… [ilegível]…encantadíssimos etc. A verdade é esta. Houve um momento em que o firmamento da transtemática dos mais antigos…

[(…) (?)]

então com uma amplitude, com uma força muito grande. Depois fechou-se isto, e fechando isto fica uma dificuldade em reabrir, que é verdadeiramente muito grande.

(Sr. –: Coisa curiosa é que desde que o senhor chegou e começou a reunião, sentiu-se um certo convite nesta linha para abrir o transtema.)

Eu achei, e por isso eu pulei em cima desde logo.

* A Sra. Da. Lucilia eleva a alma das pessoas à clave transtemática — É a ela que se deve pedir a restauração do tempo áureo do “thau”

(Sr. –: Um convite como nos antigos tempos, que tem a bênção da Sra. Da. Lucilia, da casa dela aqui também.)

Aliás, eu acho que é precisamente neste ponto que ela, eminentissimamente transtemática, exerce um efeito sobre as almas das pessoas que vão rezar na sepultura para ela etc. Ela, com muita facilidade, eleva, ainda que muito furtivamente, a clave transtemática das pessoas.

Eu tenho certeza, por exemplo, que vocês têm uma fotografia dela, alguma coisinha dela vocês têm. Se alguém quisesse confiscar, vocês seriam capazes de discutir e até de brigar. Depois, em última análise, se não fosse ordem minha, seriam capazes de uma recusa peremptória: “Não dou e está acabado!” Por quê? Porque vocês sentem que, de vez em quando, aquilo, muito discretamente, é uma luz desse transtema que ela abre maternalmente; e depois, com uma delicadeza, e com [um] respeito ela faz isto, extraordinários. Quem não viu não pode ter idéia simplesmente.

E, portanto, eu acho que é a ela que se deve pedir essa restauração, para que ela obtenha de Nossa Senhora que é a Medianeira de todas as graças.

Mas aqui houve, portanto, o seguinte: a jungle, mas há um convite para aceitar serem elevados, de repente, para cima da jungle, e uma montanha muito alta, uma coisa inimaginável. De onde, um belo dia, a jungle se arranjaria; nem é tanto voltar para ela, mas tudo se arranja um belo dia. Isto é um convite sobrenatural, digamos, que me força a tratar da resposta do Fernando. Eu não queria que você, saísse daqui com a impressão de que eu não tratei o assunto numa questão de tanta importância.

(Sr. –: Uma coisa curiosa é que a gente mesmo não consegue ordenar essa “jungle”. Se for fazer, perde-se lá dentro.)

E depois tem muita perdição dentro da jungle. É onde tem cada reptil! São de tirar o chapéu! Eu não tenho ilusão a esse respeito. Nenhuma ilusão.

De maneira que é muito mais se ela eleva, e que foi o que começou a acontecer no tempo áureo da nossa vocação. A Oração da Restauração aplica-se muito ao tempo áureo do “thau”, não só da infância. O que está dito lá pode-se dizer do tempo áureo do “thau” perfeitamente. Vocês se lembram bem, no tempo áureo da vocação, o que era ir à Sede, e que era vir a São Paulo, o que era ter uma conversa! Por exemplo, o que vocês três sentiriam se soubessem que todo sábado, todo sábado, todo sábado lhes seria dado, à noite, uma conversa com um número tão pequeno, sobre esse tema. Vocês colavam no teto.

(Sr. –: Ainda agora, no começo da reunião, eu pensei um pouquinho nisso; avaliar a situação, o que estava se passando.)

Como dizer! Não há outro remédio. Há aí um pecado para expiar, tout court. Eu conto muito que ela [não (sic)][nos (?)] seja materna e que pelas orações dela Nossa Senhora abrevie, comute, dispense essa expiação porque não tenhamos coragem, enfim, que nos seja mãe. Mas que é isto, é. O que você está pensando, meu bom Guerreiro?

* O gosto pelo transtema é fruto da graça — A graça desta reunião traz consigo a promessa de um indulto e um perdão

(Sr. –: O que o senhor acabou de dizer colocaria uma série de perguntas; uma série, não, mas algumas perguntas. Apenas… [ilegível] …uma coisa com o senhor: O senhor acabou não comentando o tema que gostaria de tratar. Agora o senhor um assunto que é muito importante e eu fico então numa alternativa: Qual dos assuntos tratar: este agora, que o senhor desejaria, ou o assunto anterior?)

Por este assunto, podem chegar ao outro. Um é caminho do outro, de um lado. De outro lado, pela resposta que o Fernando deu, foi impossível abrir um terceiro ponto e foi impossível dizer o que eu disse há pouco. Em última análise, é a graça que nos convida, na hora, para alguma coisa. O gosto desse transtema, em concreto, em nós, é fruto da graça. E se não baixa uma graça especial, não pega. A verdadeira pergunta é: por que a graça, no momento, nos convida? Porque não sendo fruto da graça pode dar uma conversa, mas não é o que vocês estão pedindo.

Quer ver, muito de passagem, a ação da graça aí como é? Vocês tiveram, no momento, mais do que recordação da época áurea da vocação, e tiveram muito ligeiramente um regostar daquilo. E não há recordação que substitua um ressaborear. Não há, tout court. Ora, esse ressabor não sou eu quem dá, mas [é] a graça quem dá. Pode ser por oportunidade do contato comigo, não tem dúvida, mas acaba sendo que é ela que dá. Por exemplo, a que tema a graça daria sabor se nós tratássemos agora? Ela, no momento, está dando um pouco de sabor, mas que sabor delicado, impregnado de bons movimentos, uma graça; que convite, que promessa tem atrás disso? Do tempo áureo da vocação. Mas o que está sendo feito aqui não é absolutamente uma rememoração. Rememoração a gente rememora muitas vezes. É uma voltar para trás um pouco no sentido diferente da palavra, “elle… [ilegível] …un tempo perdu”. De repente pega, aqui está!

(Sr. –: Uma coisa assim para o lado misterioso, porque cada um de nós sabe bem quanto o senhor tem razão em dizer que foi um pecado e que nós temos que pagar esse pecado. Agora, se não for pela misericórdia que o senhor obtiver de Nossa Senhora nessa linha, a gente não tem como pagar isso. A gente se perde num… [ilegível]. Não é que eu queira fugir de pagar isto, mas a gente vê que se for entrar por esse caminho, se não for guiado de modo especial pela misericórdia do senhor, nas… [ilegível] …numa “jungle” como esta e daria toda espécie de desespero, coisas mal partidas, desânimos etc.)

A tal ponto que nem sequer, de um lado, essa reparação é necessária, mas de outro lado nem sequer se pode muito falar dela porque ela extingue a recordação desta coisa dourada que tivemos. Extingue. De maneira que eu aludi a isto e passei adiante. O que traz consigo uma promessa de que virá um indulto, uma anistia, um perdão. Traz consigo. Porque se isto extingue a graça, não é o caminho da graça.

* É por meio do desejo e da oração que se deve pedir a volta desse luzimento da época áurea

(Sr. –: Foi bom o senhor tratar disso. Eu não estou fugindo da reparação, não é que esteja vendo o pecado, mas sinto que há uma parte fechada por este lado para fazer a gente se afastar mais do senhor ainda.)

O que é preciso é lembrar disso e passar adiante, mas é pegar a graça onde ela luziu e fixar o seguinte: Meu rumo, dentro da confusão do meu espírito é alcançar, pelo menos por meio do desejo e da oração — mas aqui eu coloco e desejo antes da oração, porque a melhor forma de oração, nesse caso, é o desejo — alcançar um pouco desse luzimento que eu tive outrora. Porque o que me está sendo dado a entender é que eu vivendo de saudades, meu passado prepara o futuro.

(Sr. –: E o que parece bonito é que este convite, esta volta vem através do debruçar do senhor sobre nós…[faltam palavras (?)] …, a gente não pode se fechar a essa misericórdia.)

Pelo contrário, é abrir o quanto possa, escancarar o quanto possa.

(Sr. –: … devesse esperar não a misericórdia… [faltam palavras (?)] …mas a gente vê que veio superabundante, dada.)

Dada. Por uma dessas formas de bondade que não tem tamanho e não tem explicação. É uma coisa que tudo quanto se diz corretamente sobre misericórdia não tem proporção com o que se sente diante da idéia de um perdão desses que caminha em direção a nós benigno, desarmado, sorridente, com vontade de reparar, de ajudar etc.

Isso seria o que seria preciso colocar com o seguinte: Dentro do dédalo da vida interior de cada um — porque o caso dos dois é um dédalo; Fernando é um pouco diferente — dédalo são caminhos que se entrecruzam… [faltam palavras (?)] …essa volta pela regustação, pela rememoração, volta àquele período áureo e aquela compreensão, tudo quanto veio depois foi erro, foi desatino, embora eu saiba que alguma coisa progrediu, que alguma coisa melhorou, mas o que é o que melhorou em comparação daquilo que entortou. Ó Minha Mãe, Salve Regina, Mater Misericordie, vita, dulcedo, spes nostra salve. E… [ilegível]. Poder-se-ia conceber.

E um pouco disso [está] insinuado naquelas palavras com que eu abri o Livro I, embaixo da minha fotografia. Aquilo não é poesia, quer dizer, não tem estrofes, não tem cadência, não tem nada da poesia; mas tem qualquer coisa de um sabor poético naquilo.

(Sr. –: É uma transdeliberação.)

Isto. Mas que é um pouco um convite às almas a que façam isso, e as nossas que se façam com o próprio “thau”.

(Sr. –: Só que para nós não são as ruínas da Cristandade, mas os esplendores da Cristandade.)

Nós voltamos para os esplendores da Cristandade mas deixamos depois o que ficou, ou melhor, mas depois deixamos e o que ficou disso em nós é um pouco parecido com ruína.

* O perdão de Nossa Senhora virá pela sua misericórdia gratuita e unilateral, a traves da pessoa do Sr. Dr. Plinio

(Sr. –: Eu sinto muito que é exatamente no contato com o “tau”[do senhor], que o “tau” da gente se sente mais com forças e com ânimo, com desejo novamente de andar, de ver, de olhar; por onde, sozinhos, no nosso canto, é praticamente impossível se voltar a caminhar.)

Eu acho que é impossível.

(Sr. –: É uma graça. Porque eu creio que o que se passou conosco não se passou com Adão; uma vez [que] pecou, ele perdeu o Paraíso, e para ele aquilo era uma fatalidade. E a solução era esperar que um dia Deus se compadecesse dele, se… [ilegível] …e redimisse o gênero humano.

Mas acontece que conosco, o nosso Paraíso, que era o “thau”, esse Paraíso que de repente começou a refletir em nós, que vinha do senhor, nós, por loucura, destroçamos. Mas acontece que para nós há uma graça imensa, em dois sentidos: Primeiro, ter recebido isso na alma; segundo, como destroçamos isso na alma, como veio (?) para o senhor, há esperança de que o senhor novamente nos dê isso. Nós não estamos numa situação tão terrível quanto a de Adão. Realmente, o acabrunhamento seguiu por toda a vida dele.)

Nosso pecado não foi tratado como foi o dele. Foi como Moisés; se existisse Nossa Senhora, ele teria entrado na Terra Prometida.

Ao menos vamos dizer que a solução para o nosso problema é como a solução para uma alma do Purgatório. Porque bem entendido, no meio disso tudo, nós sofremos muito mais do que teríamos sofrido com a fidelidade. Não tem comparação! Porque foi muita lábia do demônio, afinal de contas.

Luizinho me disse, agora que ele está levando esta vida muito mais austera: “Minha vida é um encanto. Eu me privei de mil coisas que, para mim, era inimaginável eu me privar, e a minha vida é uma encanto! Ficou mais ligeira sem essas delícias.” Vocês não tiveram, talvez, delícias do tipo que teve Luizinho, psy-delícias de toda ordem. E é isso que importa. Porque para Luizinho essas coisas eram mais psy-delícias do que delícia material. Das certas coisas que ele tinha. De outro lado, tem esse lado parecido com o Purgatório. É preciso Nossa Senhora ir considerando a pena já cumprida, ou melhor, abolida a pena que não foi cumprida, por uma misericórdia de que não foi resgatado, e por uma bondade toda ela gratuita e unilateral, uma dessas bondades que desconcertam, paralisam e salvam.

(Sr. –: E o que é muito mais impressionante é essa misericórdia vir por intermédio do senhor.)

Depois, um homem tão acusado de ser sem misericórdia, nas entranhas.

(Sr. –: Ninguém nunca ouviu dizer que alguém tivesse a paciência e o perdão que o senhor tem.)

Aí fora ninguém imagina isso.

(Sr. –: Depois na linha da volta do Paraíso, não está correto o que eu vou dizer, mas é como se esse Paraíso tivesse vindo ainda melhor do era antes.)

Mas é isto. É correto, é isto sim.

* O Paraíso que receberemos na hora que a graça escolher será maior do que perdemos

(Sr. –: Depois de tudo isto, o Paraíso veio ainda melhor do que no tempo áureo, mais do que as saudades que a gente tinha.)

Vejam, por exemplo, o gáudio das pessoas que conheceram Nosso Senhor com a felicidade que tinham no trato com Ele, não tinha comparação com nenhuma das felicidades que Adão tinha no Paraíso. Ora, Nosso Senhor era o perdão; o perdão que se encarnou, que veio, que sofreu, que padeceu, que ensinou, que fez tudo quanto nós sabemos, é Ele.

(Sr. –: A coisa é de tal modo que a gente custa a acreditar no que está acontecendo. É porque está vendo, está sentindo, mas custa a acreditar.)

Nesse sentido, eu tenho certeza de uma coisa: que a espera de vocês é grande, mas o que vocês receberão no momento em que a graça escolha, os deixará desconcertados.

(Sr. –: Posto que nós nascemos para o senhor ….)

Então estamos tratando do tema que era preciso tratar esta noite? Estamos ou não tratando desse tema?

(Sr. –: A pergunta do senhor é tal que não tenho condições inteiramente satisfatórias para responder com toda certeza.)

* A única condição que a Providência põe é que essa graça do perdão se deve pedir

(Sr. –: Como o senhor está tratando desse assunto, que é o assunto do perdão, do arrependimento e da graça de Nossa Senhora, … [faltam palavras (?)] …é isto. E como nós nascemos para o senhor esta é a idéia que me ocorria, que me vinha ao espírito.

A pergunta é a seguinte: Essa graça, que o senhor acabou de referir, e que virá para nós, para todo o Grupo, pergunto: Posto que o tempo passa, e posto que estará ordenada para o senhor, essa graça pode demorar muito mais tempo, porque de duas, uma: Se nós nascemos para o senhor, nós nascemos para realizar um plano que o senhor tem no espírito, com relação à Igreja, à Cristandade, ao futuro, para o qual temos que ser não sei de que maneira, um instrumento do senhor para isso. Posto que até agora a situação é de nós termos nos recusado a ser um instrumento do senhor, e é esta que é a nossa tragédia, a pergunta fica: Isto não pode ser num belo dia num fugace meio longínquo; isto tem que ser logo, senão passa a vida em vão!)

Nota-se o seguinte, uma coisa aflitiva. Mas se for usar a imagem clássica da vida como uma ampulheta, a minha vida está se indo e a juventude de vocês está se indo também. Estou com 73 anos.

(Sr. –: A vida do senhor não está indo; não se coloca para nós, com relação ao senhor, a problemática da idade. Eu acho perfeitamente normal que o senhor viva 130 anos. Eu tenho dificuldade em pensar que vou atingir os 65. O senhor fala que temos um pouco de “thau” também, é uma impressão que tenho. A gente vê que no senhor há algo por onde a questão do tempo como se põe para o comum dos homens, não se põe.)

Mas pense então na sua vida. O que já foi. Eu às vezes me pergunto: Vocês vão, às vezes, no São Bento, está toda aquela “enjolrrada” lá. vocês devem pensar: Eu ontem era dessa idade, e eles já vêem em mim um homem provecto e maduro, como eu, quando tinha a idade deles, via um homem que tem a minha idade hoje. Vocês não fazem alguns raciocínios assim? Têm que fazer!

(Sr. –: Então, como fica esse assunto da graça de Nossa Senhora, do perdão?)

É preciso pedir a Ela; o sentimento da indulgência e do tempo que corre devem nos levar a pedir. Não tem outra saída. É preciso pedir.

(Sr. –: E a gente tem a certeza de que Ela tem muito mais pressa do que nós a respeito disso.)

É verdade. Mas a Providência impõe condições, a essa mínima e misericordiosa condição Ela põe: Pedir. Então, quando vocês rezam o Rosário, por que não pedem? Há uma liturgia, creio que no Advento, uma antífona ou coisa assim, que diz uma coisa que eu gosto de rezar: “Vinde, Senhora, não tardeis e raladai, distendei os vínculos do teu povo”. A liturgia diz Domine, dirigindo-se a Deus diretamente. “Teu povo” aqui seria teu filho, teu escravo.

(Sr. –: Aquele “Veni Creátor” que se canta no São Bento quando o senhor chega tem algumas coisas assim.)

Tem exatamente. Muito bonito, aliás! É uma ação d’Ela que está tardando e você está recebendo um convite para pedi-la.

* Diferença que há entre contrição e penitência — Pedir a Nossa Senhora que também dissolva nossa dureza de coração

(Sr. –: Gostaria de fazer ainda uma pergunta relativa a esta questão: é a questão da penitência dentro desse quadro todo. O senhor desculpe, mas vou dar uma impressão que tenho a respeito dessa situação que nós, mais velhos, vivemos. O Sr. João Clá, há um mês atrás, comentou um assunto que… [faltam palavras (?)] …coragem de levantar esse assunto com o senhor. Mas é que eu nunca cheguei a entender bem, no fundo da alma do senhor, como o senhor vê toda essa situação nossa, com relação à questão de penitência.

Eu vejo bem o seguinte: que o senhor tem uma noção tal da penitência, que é levado a um ponto tão extremo, que eu não peço para o senhor ser diferente com relação a essa noção extrema que o senhor tem da penitência. Porque eu vejo que tem que ser assim mesmo.)

É verdade, é assim. É a doutrina católica sobre a penitência.

(Sr. –: Posto que nós pecamos e temos que fazer penitência, a impressão que me vem é a seguinte: a penitência que o Sr. Dr. Plinio quereria que eu fizesse é uma penitência que, no fundo, se eu passasse toda a minha vida me penitenciando, não seria suficiente para atender o desejo de penitência que o senhor tem.)

Nesse sentido é verdade. É verdade que a intensidade pode suprir o fator tempo. Mas…

(Sr. –: Mas o ponto terminal do senso de penitência que o senhor tem está num ponto do horizonte, digamos, da alma, que eu vejo que precisaria passar toda a minha vida, ressuscitar e continuar a penitência para poder atender isso tudo. Como isso é o senhor, e eu tenho que ser um discípulo do senhor e ser como o senhor, o senhor compreende a dificuldade que fica no espírito? E como eu posso entender algo que eu vejo que é de acordo como o espírito do senhor, sem ter as condições de atender?)

Eu compreendo perfeitamente. Aí você deve fazer uma distinção entre contrição e penitência. A contrição é a noção clara do pecado cometido, da maldade do pecado cometido e do ódio ao pecado cometido. Portanto, o ato de humildade diante de Nossa Senhora, que a gente tem que praticar, o desejo intenso, operativo, eficiente de fazer diferente do que fez. Isto é uma coisa. Outra coisa diferente é a expiação, que se chama propriamente penitência, que é o pagar o que se faz no Purgatório. O pagar que a gente roubou de Deus sob a forma de fruições, pagar por meio de tormentos.

Ambas as idéias, graças a Nossa Senhora, são muitíssimo radicais em mim, muitíssimo. Porque a idéia da emenda, da contrição e da emenda, quer dizer, é preciso mudar, mudar inteiramente, completamente etc., essas idéias são muito radicais em mim.

A questão é que a idéia da penitência propriamente dita é muito completada pela idéia da misericórdia, que exatamente vem que, por uma bondade que não tem nenhum fundamento em nós, exclusivamente d’Ela. Porque Ela é boa, embora não sejamos, Ela, com uma doçura que não merecemos, nos perdoa o pecado que cometemos; quer dizer, nos perdoa de arcar com os sofrimentos do pecado que cometemos; ou pede um ou outro sofrimento, mas que está na proporção de nossas forças; não é aquela coisa esmagadora que a gente deduz da idéia do pecado.

Eu acredito que toda a minha conversa tenha esse pressuposto: que Nossa Senhora, de um momento para outro, baterá à porta de vocês e os despertará; todo o meu trato com vocês é isto; e acredito que isto se dê pela mera bondade gratuita d’Ela, de que eu conheço muitas provas, muitas manifestações. Ela entra gratuitamente, senta ao lado de nosso catre e, Rainha que é, conversa conosco, sai andando conosco; acabou-se a prisão, meu filho não pense mais nisso, veja outras coisas. E começa uma outra vida.

É essa coisa repentina que me leva a ter tantas e tantas vezes ânimo ao cabo de um sábado esmagador, e conversar com vocês, eu, o mais esperançoso da sala. Esperançoso em vocês, de que Nossa Senhora fará isso por vocês. É a espera dessa bondade d’Ela: que dissolva a dureza de nosso coração.

Agora, esse curso de coisas, de fato, seria desconcertante se não fosse como eu apresento. O que você está dizendo é pura verdade; uma verdade evidente, que eu não dissimulo, é. Mas a essa verdade eu tenho a opor essa esperança. Veja bem que aí é a esperança do falido, que não tem com que pagar a sua dívida, porque não tem mesmo; e que vai dizer isso ao credor que o pode prender, e o credor diz: “Meu amigo, não pense nisso! Entre em minha casa, aqui há um banquete para você. Pouse aqui, eu o incorporo à minha família etc.”, contra qualquer expectativa dele. Depois dele ter feito para esse homem as piores. Esta seria a imagem.

* Dureza de alma dos próprios participantes da conversa, insensíveis ao sacrifício que o Sr. Dr. Plinio faz em dar as reuniões de sábado na noite

(Sr. –: Eu me sinto nessa condição. Quando estou ao lado do senhor, eu me sinto assim. Sobre isso não tenho a menor dúvida.)

Para falar com franqueza de pai para filho etc., falou-se há pouco de dureza. O símbolo da dureza de alma é um homem que vê um necessitado no lado de fora, que bate na porta, e ele não atende. E depois acaba não atendendo de nenhum modo; deixa-o desfalecendo do lado de fora. Ou seria mais dureza de alma, um doente que está num quarto, e um bate do lado de fora para tratar dele; o doente, por qualquer razão, não vai atender e não se incomoda com a bondade do outro, nem com a súplica, não se incomoda com nada e continua na sua doença e na sua maldade. Isso seria requintar. É uma coisa que quase não se poderia conceber que uma pessoa possa fazer isso.

Agora, ao longo desses quinze anos de convívio, há algo de parecido com isso nas nossas relações. Para falar com franqueza paterna. Por exemplo, essas reuniões da noite. Nós medimos bem o que eu ponho de sacrifício nessas reuniões da noite? Depois, sacrifício alegre, sacrifício esperançoso etc. Quantas vezes se sai desta reunião sem nem ter medido isso, pensando em outras coisas e jogando fora tudo isso como se não fosse nada. Eu não guardo nenhuma queixa, vocês vêem bem como eu perdôo. A prova é esta conversa desta noite. Mas é muita dureza de alma! Eu não posso deixar de qualificar isso de muita dureza de alma. Como eu posso deixar de qualificar assim? Pois eu a noite inteira bati do lado de fora da porta com remédios que vocês sabem que são os bons e por uma mania qualquer vocês não se incomodaram.

Depois, não tiveram nem sequer uma gratidão proporcionada. Julgam talvez ter um ato de misericórdia em permitir que eu fique batendo do lado de fora da porta. Se isso não é dureza, eu não sei o que dureza quer dizer.

Se Nossa Senhora põe essa bondade em mim em relação a vocês, quanto há nEla em relação a todos nós! E quanto Ela deseja, em determinado momento, dizer: “Eu vi isto, mas passo por cima o meu manto. Veja, meu filho, acabou-se”.

* Nossa Senhora arranjou uma medianeira menor, mais miúda, mas quão bondosa e jeitosa! — A Sra. Da. Lucilia é uma bondade de Nossa Senhora para nós

(Sr. –: É notável a bondade de Nossa Senhora por intermédio do senhor. É o caminho nosso. Se Ela aparecesse para nós não seria tanto como por intermédio do senhor. A gente sente que no senhor Ela tem todo o perdão, a longanimidade.)

Que vocês não encontrariam em nenhuma outra pessoa do mundo. Vocês sabem disso… [faltam palavras (?)] … Nossa Senhora Medianeira de todas as graças, como ao cabo de muito tempo nós não atendermos as bondades d’Ela, arranja uma medianeira menor, mais miúda, quão bondosa, quão jeitosa! Mamãe é uma bondade de Nossa Senhora. Nossa Senhora que cogitou, que pediu, é evidente.

Mas nEla uma enorme majestade, a sabedoria por cima dos Anjos, excogitando e conseguindo, ao pé da cruz, no Calvário, chorando, mas dizendo: “O Sacrifício de meu Filho está bem empregado, porque quando chegar no século XX eu vou conseguir tal coisa”. Porque é fácil crer que Ela tenha tido a previsão de tudo. Aí vem a esperança que, em certo momento, o perdão imerecido, pleno, pouse sobre nós.

(Sr. –: Agradeço muito o senhor ter falado em nossa dureza porque nesta parte somos tão sem senso de justiça, de agradecimento, que inclusive o fato do senhor nos ter dito isso, da nossa dureza, isso tudo restaura um pouco em nós os nossos deveres, as nossas obrigações; o que temos, portanto, de dependência do senhor; a vocação do presente para o futuro. Porque se no futuro nós [não] nos corrigirmos, nós estaremos dependentes desses momentos de sacrifício do senhor, de complacências inenarráveis. Portanto, o senhorio do senhor sobre nós é absoluto. Nós não contamos com nada.

A Igreja está no estado em que está, o senhor faz a luta que faz, o sacrifício que o senhor faz, e chegamos nós com este estado de calamidade. Este quadro todo nos deixa tão reduzidos a pó e cinza, numa condição tão desprezível, que fico até sem condições de dizer mais alguma coisa. Eu gostaria que o senhor dissesse como fazer, do nada que se não fosse tão inadequado, se o senhor pudesse adiantar um pouco isso, eu agradeceria.)

(Sr. –: [faltam palavras (?)] …, virtuoso não se tinha idéia. Mas… [ilegível] …esta intensidade, com esta força!)

E é este o relacionamento.

(Sr. –: Dá para a gente entender um pouco o passado, Carlos Magno, … [faltam palavras (?)] …, o suco da Idade Média.)

* Uma coisa incompreensível para o homem moderno é o vinculo feudal, baseado na lealdade — Exemplo: o relacionamento que se dá entre o Sr. Dr. Plinio e seus filhos

Por exemplo, uma coisa que esses historiadores que estão por aí não entendem porque não são capazes de entender esse relacionamento: é o feudalismo. Um senhor que tem terras, e que chama outros e diz o seguinte: Está aqui esta parte para você, esta outra para você; a garantia que eu tenho de que vocês vão ser fiéis é um juramento que vocês me fazem. O resto eu lhes dou todo o direito de propriedade e de governo sobre isto. Eu fico na dependência de vocês, porque se vocês não me ajudarem em relação a meus adversários, eu que lhes estou dando tudo, não serei nada. Ponho minha sinal na mão de vocês. Vinde e sejais meus vassalos. Com a cerimônia fica estabelecido o vassalo.

Como pode alguém compreender esse sistema sem ter tido um pouco a experiência de alma que estamos tendo esta noite? Não pode compreender. Os senhores dirão: “Mas é um sistema que não é prático”. Para este tipo de homem de hoje em dia, o que é prático? O que põe essa gente em ordem? O que pode evitar que eles sejam corruptores, adúlteros, ladrões, bandidos e que eles levam tudo a breca? É organizando de um jeito ou de outro?

Feudalismo é isto, é a lealdade. Imaginar esta coisa incrível: o vassalo, entre as obrigações que ele assumia com o senhor, havia de dar conselho ao seu senhor quando ele o chamasse. Podemos imaginar hoje um homem que obrigue outro a lhe dar bons conselhos? Há uma candura nisso! O bom conselho não se pode pedir de ninguém hoje em dia. Ninguém é bom, como vai dar um bom conselho? Dá um conselho de perdição, ou um conselho de cúmplices; há um conselho de cumplicidade. Não existe outra coisa. Mas que faz parte exatamente daquele charme da Idade Média que, sem isto, a gente não entende.

Nós estamos exatamente medievalizando intensamente enquanto conversamos. Já ouvi gente dizer: Você não dá uma idéia positiva de como as coisas devem ser; aponta apenas o mal. Como eu posso dar uma idéia positiva de como as coisas podem ser para esta gente? São incapazes de uma idéia positiva. É dar aula de pintura para um cego de nascença. Não se pode conversar sobre isto. Mas, por exemplo, dentro da contextura do Grupo, uma coisa dessas cai bem, e muito mais ainda.

(Sr. –: A gente entende por aí um certo nó que há do relacionamento dos “enjolras” com o senhor e do senhor com os “enjolras”. Porque é tão fora dos padrões habituais e comuns, que as pessoas acham que o que está fora não pode ser inteiramente… [faltam palavras (?)] )

Nada. Aliás, entre todos nós há um relacionamento que, sem desprezar as diferenças de idade, entretanto passa por cima disso. Eu converso com os “enjolras” e muitos deles poderiam ser meus netos. E não é a conversa clássica do avô com o neto. É, certamente, a conversa do general com os companheiros de arma. Mas existe alguma coisa nesse nível que não é o teor do avô com o neto, nem do velho patriarca em relação a seus descendentes. É uma outra coisa, e que de modo menos barrento, nem muito real, se estende entre nós. Vocês são de outríssima geração. Vocês já davam tempo de ser meus filhos. Mas neste sentido não é conversa de pai para filho. Os pais se colocam em geral mais à distância. Mas o que eu estou fazendo? Estou dando para vocês, como dom feudal, meu tempo e minha vida.

(Sr. –: Que tempo e que vida!)

* O Sr. Dr. Plinio teve que optar entre utilizar o tempo para estudos ou para o apostolado — “ Se vocês disserem “sim”, minha vida acertou; se disserem “não”, minha vida errou”

É dado a vocês como antigamente se davam feudos. E é muito mais dar isto do que dar terras. Aqui é dado para projetos de gente que a gente não sabe o que dará. Eu poderia ter dado à minha vida uma outra orientação. Eu poderia, por exemplo, ter dado aos estudos o que eu dei a vocês.

E várias vezes, aliás, eu me fiz esta pergunta: Escrever uma obra que fosse, mas que fosse uma obra de arrebentar; eu escreveria no meu isolamento, na minha tranqüilidade. Vamos fazer uma super-“RCR”. E esperar de Nossa Senhora que Ela me desse os meios de propaganda. Como apareceu um desses nossos amigos que fez propaganda da “Mensagem”, Nossa Senhora poderia fazer um que fizesse essa propaganda, e essa obra poderia fazer seu caminho.

Esse plano tinha uma grande vantagem: é que essa obra não ficava dependendo dos outros, mas ficava dependendo de mim. Tinha outra vantagem: as aflições, as angústias, as decepções, as esperanças, nada. Eu seria como um homem que caminha num rio, quer dizer, levado pela correnteza e não como quem caminha numa estrada, subindo em montanha, caindo em buraco e tudo o mais. Eu optei por fazer o que eu estou fazendo. Optando, eu fui colocado nessa alternativa: Se isso não der certo, eu errei minha vida. Isto é assim. empenhei-me nisso e dei.

(Sr. –: Pena que o Sr. João não está aqui hoje.)

Pena mesmo. Mas ele tem um alter-ego diligentíssimo.

O que o senhor antigo, ou melhor, o que o antigo senhor feudal fazia eu fiz com vocês. Se vocês disserem “sim”, minha vida acertou; se disserem “não”, minha vida errou. Eu sei que se pode fazer objeções contra o plano de um livro. Não foi sem razão que eu optei por vocês. Mas o plano de um livro é muito menos arriscado. Esse risco eu resolvi correr. Cada um de vocês fica obrigado, aceitando o que vocês aceitarem.

Minha acusação não é de que vocês não tenham aceito; é de que vocês [não] tenham valorizado as terras que receberam, deixando-as incultas, improdutivas. Mas aceitaram. Aceitando, vocês contraíram comigo as obrigações daí decorrentes. Passaram quinze anos de apelo gentil, de bondade etc., eu sabendo que a cada minuto desse dia que passava a ampulheta marcava para mim um caminho para o desastre. Essa é a contrapartida, mas que vocês vêem bem que eu menciono sem amargura nenhuma, nenhuma, nenhuma, e que eu dei na alegria de minha alma. Nós os acolhemos, de lá para cá os perdemos continuamente, sem parar um só instante. E ainda dando tarefas e tudo o mais. Quer dizer, não se pode levar mais longe… [faltam palavras (?)] …um homem que pegue sua vida inteira em determinada direção e a dê inteira.

(Sr. –: No meio de tudo isso, fica bonita a super-fidelidade do senhor esse tempo todo, idêntico a si mesmo. Isso realça mais ainda.)

Creio que contei a vocês um oferecimento que Rosée me fez quando eu era moço. Eu tinha deixado de ser deputado e estava lecionando na Faculdade de Direito, quando um dia ela chegou para mim e disse: “As coisas como estão não podem ser. Você está mantendo mamãe, está se mantendo, já é muita coisa no caminho que você tomou — em toda família se julga o respectivo membro um colosso — , mas se você seguir o plano que eu vou dar a você, é o único plano que está em sua proporção: Você deixa tudo isso, eu te dou minhas jóias, você vende todas e vai fazer um curso na Sorbonne, de maneira que quando você voltar aqui você põe toda essa gente no… [ilegível]…, mas de perder de vista. E você modifica sua situação completamente. Eu dou por muito bem empregado isso”.

Ela era uma senhora muito moça naquele tempo. Eram jóias boas; dar as jóias dela significava um sacrifício muito grande; mesmo a ascensão social dela era quase proibitivo à vista disso. Mas ela resolveu jogar essa carta. Eu vi que tinha duas coisas ali …

(…)

A R M



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