Conversa de Sábado à Noite (Êremo de São Bento) – 2/1/1982 ‑ [AC V ‑ 82/01.05] – p. 9 de 9

Conversa de Sábado à Noite (Êremo de São Bento) — 2/1/1982 ‑ [AC V ‑ 82/01.05]

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Com D. Chautard o conhecimento da graça sem a qual a lógica na ordem sobrenatural nada consegue Na * vida de apostolado verificando os efeitos da graça e a “inutilidade” da lógica * O poder da graça em transformar almas de pedra em branda cortiça; a experiência no Grupo * No interesse “desinteressado” de procurar a noção do ser e a ordem natural perfeita de todas as coisas a solução para as almas egocêntricas * A facilidade do Sr. Dr. Plinio em conceber metáforas partindo dos altos horizontes que sua inocência lhe dava * O espírito de oração e recolhimento do Sr. Dr. Plinio ao relacionar todas as coisas com Deus * O modo todo peculiar do Sr. Dr. Plinio fazer recolhimento contrário ao estilo “heresia branca”: as correlações que fez ao ver um burrinho puxando sua velha carroça

Índice

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* A reunião de sábado a noite: ocasião de graças para o próprio Sr. Dr. Plinio

Então, meus caros, quais são as perguntas? Senhores do sábado!

[O Sr. Guerreiro Dantas agradece tudo o que o Sr. Dr. Plinio fez pelo Grupo no ano de 1981, pois esta é a primeira Conversa de Sábado à Noite do ano de 1982 e é o momento de agradecer, pedir perdão e, a Nossa Senhora, as bênçãos e graças de união com a Causa d’Ela.]

Meu filho, meus filhos, é verdade que eu noto isso, eu sou muito grato a Nossa Senhora pelo fato d’Ela dispor que isso seja assim, que, ao longo desses sábados e do nosso contacto o ano inteiro, etc., etc., Ela serve do fato de estarmos juntos para que o senhores recebam graças. Me alegra sobremaneira.

Mas eu devo dizer que a munificência d’Ela e a bondade d’Ela é de tal maneira ilimitada, que também eu recebo graças, embora de uma outra ordem. Vou explicar como são essas graças.

* Com D. Chautard o conhecimento da graça sem a qual a lógica na ordem sobrenatural nada consegue

Eu me lembro que a primeira vez que a palavra graça me chamou a atenção — “graça”, nós católicos ouvimos falar desde que somos pequenos, mas me chamou atenção, fui levado a analisar bem o conteúdo, o significado da palavra, etc… — foi quando eu entrei para o Movimento Católico, etc., comecei a ler mais coisas de caráter religioso, até o dia bendito em que me caiu na mãos o livro “A Alma de Todo Apostolado” de D. Chautard, em que ele desenvolve a tese católica, — o livro tem até umas palavras de aprovação de São Pio X, tudo — ele desenvolve a tese católica de que, sem o auxílio deste dom criado sobrenaturalmente que é a graça, — uma participação do homem na vida divina — sem esse dom, nós não conseguiríamos nada em matéria de apostolado e não conseguiríamos nada em matéria de vida interior.

Imaginem os senhores, que, por mil razões, enfim, explicáveis pela… — não quero dizer aqui desculpáveis; explicáveis no sentido literal da palavra — pelo ambiente racionalista que havia no mundo daquele tempo, — explicáveis por mil outros fatores — eu que hoje, diante dos senhores proclamei a inutilidade da lógica diante do homem contemporâneo, eu tinha como um pressuposto normal que a lógica era uma verruma, se quiserem, era um saca‑rolha à qual nada resistia. E que se uma pessoa apresentasse um raciocínio inteiramente lógico, ela rechaçava os obstáculos que ela tinha diante de si.

Aliás, é uma das razões pelas quais eu, desde muito pequeno, fui levado a amar a lógica e me entusiasmar pela lógica.

Primeiro, porque ela me revelava a verdade. Mas, em segundo lugar, porque, por meio dela, eu tinha o meio de abrir o caminho para ela, para a verdade da Igreja Católica. Então, entusiasta da lógica. E comecei as minhas primeiras “esgrimadas” em matéria de lógica, nesta convicção.

Quando eu dei com o livro “A Alma de Todo Apostolado” afirmando que toda a lógica…

Sentem‑se!

Olhem, o coronel deu bom exemplo.

(Coronel Poli: Imposto pelas circunstâncias.)

afirmando que a lógica só por si não consegue nada e que ela é… — conforme a ordem deve‑se usá‑la, mas que sem a graça de Deus, ela não consegue nada na ordem sobrenatural — eu caí das nuvens. O que é essa graça? Como é isso? Então minha tão bem amada lógica não vence tudo, não fura tudo, não vara tudo, etc., etc?

E eu disse: estou vendo que o que esse frade trapista diz, a Igreja ensina. E se a Igreja ensina é verdade. Eu a entenderei mais tarde como é, e vou funcionando como se não fosse, porque eu não entendo como é, preciso ver como é.

* Na vida de apostolado verificando os efeitos da graça e a “inutilidade” da lógica

E começo verificar na vida de apostolado a inutilidade da lógica. Em quantas e quantas situações a lógica vencia! Mas, em quantas e quantas outras situações ela fracassava miseravelmente, porque diante do raciocínio mais claro, da situação mais evidente, etc., etc., quando se queria daí deduzir que alguém deveria fazer um sacrifício, dar um certo passo, às vezes: “não!”. Está acabado. “Que razão você tem para isso? Não!”. Está acabado.

De repente também eu via um como que movimento interior e, esse ou aquele que opusera uma barreira de ferro às sugestões boas que eu fazia, muito tempo depois ou algum tempo depois, mover‑se por dentro, às vezes até alegando raciocínio dado por mim, às vezes não alegando. As vezes dizendo: “você sabe, outro dia caiu‑me na cabeça o que você tal ocasião disse e eu vi que era inteiramente verdade, resolvi fazer tal coisa”. Outras vezes não, não dando razão ou dando outras razões, de repente põe‑se a mover pelo bem.

* A graça: uma gota de orvalho que cai sobre a lógica sem a contrariar

Às vezes era o contrário, era para o mal. Então, todo jogo é diferente. E eu dizia: “sim senhor, hein?! É o tal fator graça que entra, que decide, que dispõe das almas, que nunca contraria a lógica, que sempre é uma gota de orvalho que cai sobre as folhas da lógica, mas que, sem embargo, a mera lógica não produz. Oh! graça!”.

Hoje ainda, voltando de Jasna Gora, durante um certo trecho do caminho, eu conversava com o Sr. João, com o Sr. Arnolfo, com o Sr. Gugelmin a respeito dessas ou daquelas coisas, e eu comentava que eu tenho aprendido muito em contacto com as pessoas, e analisando‑me a mim mesmo, essa coisa espantosa, mas é assim: o homem é capaz de durezas fenomenais e ele nunca é tão duro quando se trata de Deus.

* O homem nunca é tão duro quando se trata de Deus

Quer dizer, um homem que fosse igual a uma dureza, — vamos dizer que se pudesse transpor isso para nós, para comodidade da expressão de meu pensamento — um homem que é capaz, em relação ao próximo, de uma dureza que vá até oitenta, este homem comodamente, em relação a Deus vai até cem: “pam‑pam!”. E tem para com Deus Nosso Senhor, para com Nossa Senhora, para com a Igreja, brutalidades incríveis, ingratidões negras com o maior desembaraço, é ali! Que ele não teria com outros. De maneira tal, que não se sabe, verdadeiramente, como qualificar a alma humana, como qualificar as infâmias a que tão facilmente a alma humana é propensa.

E isso nos faz ver ainda mais o que há de sobrenatural, de milagroso ao pé‑da‑letra, que o homem pratique prolongadamente, estavelmente a totalidade dos Mandamentos. O normal era dar pontapés nos Mandamentos, blasfemar contra Deus, fazer toda espécie de desordens, é para onde nos leva o pecado original dentro do qual nós fomos concebidos.

Quantas e quantas vezes, na minha experiência no Grupo, na minha experiência com estes, aqueles, eu verifico isso, a gente diz alguma coisa, a alma responde, sem se dar conta, às vezes ela responde o seguinte: “eu não lhe digo nem sim nem não, nem talvez, eu lhe digo, em alguma medida sim, em outra medida não e acabou‑se! Eu aceito em tal medida, em tal medida não aceito, e arranje‑se! Está acabado!”.

Mas, se a gente disser:

« Mas, você então se perde, você vai para o Inferno!

« Não tem importância! Além desta medida eu não vou!

* O poder da graça em transformar almas de pedra em branda cortiça; a experiência no Grupo

E ai começa a ter realidade a metáfora do saca‑rolha em cima da pedra. Por mais que vai, que seja, que fez, não adianta nada!

De repente o saca‑rolha percebe que ele encontra um vazio e pode ir ao fundo e, que tudo em torno dele é cortiça. Houve uma ação sobrenatural e aquela alma de pedra transformou‑se em cortiça; o saca‑rolha maciamente, amigamente, pode aprofundar e tirar. É o quê? É a graça.

Nos nossos próprios contactos, eu vejo as almas que param e dizem: “não em tal medida”. Outras que vão para frente, etc., etc., etc., e depois eu vejo, de repente, a graça que vem mais abundante e a alma, no momento que Nossa Senhora deu a graça mais abundante, Nossa Senhora perdoa, a alma se dobra e começa andar de novo ou, levanta‑se, começa andar de novo. E isto é do cotidiano do contacto no Grupo.

Os senhores me dirão: “mas, no Grupo? E no mundo aí fora?”.

Eu respondo em três palavras: “não, não e não! Os senhores têm o mundo aí fora. Preliminarmente não! Não quero!”.

* No apostolado a confirmação dos ensinamentos do magistério infalível da Igreja sobre a graça

E os senhores não calculam, quando os senhores tiveram muito tempo de apostolado, tiverem tido muitas alegrias, muitas apreensões e muitas decepções e depois muitas alegrias de novo, aí os senhores compreenderão o que é isso: a beleza é a gente ver a graça que penetra, que toma amigamente. Ver isto é uma coisa que, nestes ou naqueles, — eu de propósito não estou fixando ninguém — nestes ou naqueles se vê, inclusive nos nossos contactos.

E é uma espécie de confirmação, pelos fatos, daquilo que o magistério infalível da Igreja nos ensina, que me encanta examinar, e que eu não conheceria se não fosse esse manuseio com almas que tantas vezes dizem sim e vão para frente. De maneira que, aqui fica o que a Providência me dá, pelo que Ela me dá de dar aos senhores. Tudo é dom d’Ela por meio de Nossa Senhora, a Medianeira de Todas as Graças.

Que tudo seja, para nós, dom d’Ela ao longo de 1982, eu estarei muito satisfeito, para os senhores e para mim.

Agora, como que nossos anjos da guarda estão à espera de que nós comecemos a conversar sobre os temas da noite. Para eles nos favorecerem e começarem entre eles a locutio angelórum, enquanto nós fizermos a locutio hominum. Mas isso é de tal maneira, que eles esperam que nós falemos para eles falarem. Falemos, portanto, para que no Céu a locutio deles se faça sentir. Quem me põe uma pergunta? Diga lá meu Guerreiro.

(Sr. Guerreiro Dantas: Fico um pouco incomodado de levantar outra pergunta, o Sr. João Clá tem…)

(…)

conhecem menos, porque moram mais longe. A regra, esse fator existe, o senhor aponta bem, mas não é o único.

* As vulgaridades que povoam as preocupações de uma alma egocêntrica

(Sr. Guerreiro Dantas: Como era no senhor, quando menino, o rezar, o refletir, o pensar nas coisas históricas, o pensar sobre a graça, como a oração na alma do senhor… como o senhor se relacionou com todo o tema da oração? Depois a perspectiva histórica, como o senhor foi formando isso? Então são três coisas: oração, pensamento a respeito da ordem do ser e a noção histórica, como isso foi se formando na alma do senhor?)

Ainda hoje, assim muito de passagem, o assunto se apresentou ao meu espírito com um aspecto um pouco diferente, mas que, afinal dá nisso. Eu vejo muitas pessoas que são, ao pé‑da‑letra, egocêntricas, neste sentido que elas, quer dizer, para cada uma delas, ela e os problemas pessoais dela ocupam o centro do campo visual.

Mas um centro tão espaçoso, que fica uma casquinha na periferia. E o que interessa aí são elas, elas, elas‑elas, elas‑elas. E a gente vai ver o interesse, são as vezes interesses tão miúdos e tão pequenos, essas pessoas querem com tanta ênfase coisas tão “pócas” ou tão poucas, que a gente fica sem entender o que se passa naquela cabeça.

O “teleférico” participa disso. Eu falo de “teleférico” por gentileza, mas não é nada de “teleférico”, a pessoa não está pensando em outras maravilhas, está pensando em vulgaridades, em coisas comuns da vidinha de todos os dias. Noto de repente, que eu não trouxe minha caneta tinteiro ou minha lapiseira, onde será que eu deixei? “Pá, pá, pá!”.

Bom, eu tenho uma outra lapiseira em casa se essa me fizer falta. Essa lapiseira tem tal estalinho, porque “perépépépé”, lá vai lapiseira, lapiseira, lapiseira. Depois a lapiseira do outro é melhor do que a minha, eu não posso mostrar porque o outro fica vendo, “babá, bá, bá”, e lá vai por aí, são torrentes.

Eu me pergunto, eu me perguntava isso: “eu nunca fui dado a isso, e não quero que os outros sejam dados a isso. Como é que a gente faz, para uma pessoa viciada nisso, se interessar por outra coisa?

Porque isso forma uma espécie de muralha, de vedação, por onde a pessoa — porque não se interessa por outra coisa — não se interessa pelo problema que estou pondo, porque não é a lapiseira dele. É um círculo vicioso”.

Depois é qualquer coisa. Se não é a lapiseira é a saúde, se não é a saúde é a tia, se não é a tia, é o desaforo que outrem fez para ele. Importa lá. É ele, ele, ele e no ângulo mais afunilado, menor, mais reles que pode haver, aquilo enche a cabeça.

* No interesse “desinteressado” de procurar a noção do ser e a ordem natural perfeita de todas as coisas a solução para as almas egocêntricas

E a resposta que eu encontrei está nas exposições feitas no MNF a respeito da inocência. Quer dizer, o movimento pelo qual a pessoa procura a noção do ser que tem, projeta a pessoa em tendência a conceber tudo na forma de sua própria perfeição, e a pessoa procura conhecer essa perfeição, é um movimento interessado ou é um movimento desinteressado?

Aqui é preciso responder com cuidado porque até há equívocos a esses respeito que são danosos. É uma coisa que está para além da distinção clássica do interessado e do desinteressado. Eu fui feito para conhecer essas coisas e sou, portanto, como uma flecha a caminho da meta que é aquela.

Se uma flecha se pusesse a raciocinar se ela está caminhando rumo à meta porque é interesse dela ou, porque é serviço da meta, ela cairia numa espécie de cegueira. Porque ela [é feita para rumar para aquela] meta, o interesse verdadeiro dela é a meta, é o alvo. Todo ser dela pede o alvo. O interesse dela é ser desinteressadamente quem procura o alvo.

A diferença, a distinção entre o interesse e o desinteresse não se põe nesses termos vulgares: interesse meu ou interesse do meu ideal. Não! Meu ideal é aquilo para o que eu vivo. Ainda que fosse só interesse meu, eu para ele viveria. Ainda que eu não tivesse nenhum interesse, eu para ele viveria.

É o que Santa Teresa diz: “ainda que não houvesse Céu eu Te amara, ainda que não houvesse Inferno eu Te temera”.

* “A tendência para esta ordem natural perfeita, era desde a infância, muito forte em mim”

Eu estou me colocando ainda no plano das realidades naturais, não estou falando [do] sobrenatural. Com uma porção de circunstâncias, a tendência para esta ordem natural perfeita, era desde a infância, muito forte em mim. Eu me punha naturalmente a pensar nisso, a procurar isto, por movimentos de fundo de alma que, creio eu, ampliava a minha capacidade intelectual enormemente, porque, cada ponto alto donde a gente vê as coisas, abre um panorama e dá um conhecimento de mil coisas que a gente não aprenderia no livro.

Por exemplo: meus olhos pousaram sobre esse tapete. Quando eu digo que esse tapete é bonito ou, eu digo um “blá, blá, blá”; ou eu tenho a idéia do que é a beleza perfeita de um tapete e comparo este com o tapete perfeito, e me pergunto até que ponto este tapete está em ordem ao tapete perfeito. Há um ponto a partir do qual eu posso dizer que ele é bonito, um outro a partir do qual vou dizer que é bonitinho e, outro a partir do qual vou dizer que é um tapete regular. E, à contradição, direi que é feio.

Agora, se eu, olhando para os primeiros tapetes fui, como uma espécie de decorrência, de proche en proche da minha noção do ser, eu fui para a idéia do tapete ideal, eu aprendi mais sobre o tapete do que se tivesse lido dois ou três álbuns modernos com fotografias, com técnicas, “tá, tá, tá”, [me?] dá um “ploc‑ploc”.

[Vira a fita]

* O auxílio da graça no olhar as coisas naturais e a conseqüente afinidade com o sobrenatural que ia se descortinando

Eu estou certo, embora esse modo de fazer fosse muito freqüentemente sobre matérias naturais, [que] isto era por causa da graça. A graça ajudava meu intelecto a olhar as coisas naturais assim.

E o pouco que eu tinha de coisas sobrenaturais, as verdades da Fé Católica, etc., eu que nunca duvidei, — graças a Nossa Senhora, mas que figuravam pouco, inicialmente, nesse panorama — ficava no lugar devido, no píncaro, mas pouco, à medida em que esses horizontes foram se alargando, ia nascendo uma afinidade com o que havia de sobrenatural enorme, uma apetência, um desejo do sobrenatural, aí a valorização exata da Igreja Católica e a respiração da Fé.

Não o ato de Fé, que eu já tinha, mas a respiração da Fé. Aí novos horizontes. Isso torna facílimo pensar. Tornar facílimo descortinar horizontes, fazer correlações, etc., etc., porque o espirito adquire a agilidade, não de um atleta, mas de quem voa. Mas vem daí.

* A facilidade do Sr. Dr. Plinio em conceber metáforas partindo dos altos horizontes que sua inocência lhe dava

Por exemplo: as metáforas. Eu tenho uma tal ou qual facilidade em fazer metáforas. Essas metáforas, os senhores devem notar, são totalmente improvisadas e em geral até, — em geral é um pouco exagerado — com freqüência, sobre matérias que ignoro, em que eu vou falando, eu sei às meias, eu vou falando e vou apalpando o terreno enquanto falo.

Eu não invento, mas eu mesmo vou sondando o que é que eu sei e limitando a metáfora que eu sei.

Por exemplo, hoje à noite, a respeito de caçada. Eu nunca prestei atenção neste assunto de caçada.

(Sr. João Clá: Nunca um caçador conseguiu caçar com tanta beleza quando hoje à noite.)

Ah! Você precisaria ver fotografias de caçadas do Ancien Regime, coisas soberbas, la saint… [inaudível] …, com a bênção dos cachorros, todos partem, entram pelo mato, amazonas, homens, tudo é bonito. A floresta é bonita, os cachorros são bonitos, o veado é bonito, o corne [du ?] chasse é bonito.

Bem, eu fui dizendo e raspando no fundo da memória o que eu tinha de desconexo a respeito da caçada, para servir para a metáfora. Tudo improvisado. Mas, o pouco que eu sabia de caçada, era aproveitável e relacionava com toda facilidade com aquilo.

Por quê? Por causa deste horizonte que a inocência dá. Não sei, meu filho, se eu respondi de modo claro.

(Sr. Guerreiro Dantas: O senhor tem insistido, de uns tempos para cá, em que rezássemos mais.)

Muito!! É claro!!

(Sr. Guerreiro Dantas: Agora, no senhor, inicialmente, essa oração explicita…)

O Amadeu está para passar aí para me trazer um remédio. Ele não se apresentou ainda, não?

[Risos]

Diga meu caro!

* O espírito de oração e recolhimento do Sr. Dr. Plinio ao relacionar todas as coisas com Deus

(Sr. Rodrigo Dantas: E a gente vê a infância do senhor muito mais preocupada com esse outro gênero de oração, do que pedir tal graça, tal outra graça.)

É verdade, é verdade! Quer dizer, eu verifiquei no D. Chautard e em outras coisas que tenho lido, enfim, mil coisas assim, que — depois se sabe, São Tomás dá e tudo — a oração não é apenas — como consta na linguagem corrente — um dos quatro atos de culto, a prestação de um dos quatro de culto: adoração, ação de graças, reparação e petição.

Atos de culto nos quais a gente, como que, conversa com Deus por meio de Nossa Senhora, mas conversa.

Não é nisso só que consiste a oração. Isto é oração. Mas toda elevação da alma a Deus, ou seja, sempre que a gente considera qualquer coisa em função de Deus, de seus anjos, de seus santos, da Santa Igreja, da doutrina católica, sempre que se considera algo em relação a isso, é uma oração.

E há uma graça chamada “espírito de oração” pela qual a alma com muita freqüência é levada a relacionar as coisas com Deus, assim, nessa perspectiva. E é o espírito de oração que nos destaca dessas misérias, da lapiseira, — sei lá! — de mil porcarias, que nos eleva para essas coisas, chama‑se espírito de oração.

* “Dissipação é a alma pensar nas bagatelas sem nenhuma relação com Deus”

E o que se chama recolhimento é a alma habitualmente só pensar nessas coisas, não pensar nas bagatelas. Isso é recolhimento.

E o que se chama dissipação é a alma pensar nas bagatelas sem nenhuma relação com Deus.

Agora, para obter isto precisa rezar. O senhor me dirá: “mas como é que o senhor tinha sem ter rezado ou, rezando pouco, o senhor nem sabia que isso era uma oração?”. Eu não sabia mesmo que isso era oração.

Eu digo: porque a graça vem ao nosso encontro e muitas vezes nós a recebemos sem ter pedido. Outras vezes ela nos espera e quer que nós peçamos.

* “Inocência é o espírito de oração desde os primórdios”

Se aconteceu de na nossa infância nós termos pecado contra a inocência, pecamos também contra o espírito de oração. Porque inocência é o espírito de oração desde os primórdios. Faltou‑nos recolhimento, fomos dissipados.

Quanta criança dissipada a gente [vê] por aí pela rua. No meu tempo é só o que eu conhecia: criança dissipada. Ou então criança um pouco gagá, dessas que ficam quietas, carrancudas. Mas isso não é concentração, é gagueira! É outra coisa.

Mas, eu, enfim, acabo de dizer, com certeza deu‑se no tempo dos senhores também, a mesma coisa.

Então nós temos que pedir esse espírito de oração, esse recolhimento, ter esse horror à dissipação, que consiste no que acabo de dizer.

O senhor me dirá: “mas por que o senhor não emprega ainda mais essa palavra: espírito de oração e recolhimento, etc?”.

Eu acho as palavras muito próprias, elas dizem o que devem dizer, e eu as venero muito, mas elas tomaram uma tal conotação de “heresia branca”, de outras coisas assim, que eu as emprego para mim, eu as chamo assim de mim para comigo, mas não emprego com os senhores que vêem a cavalgada dos outros sentidos.

* O modo todo peculiar do Sr. Dr. Plinio fazer recolhimento contrário ao estilo “heresia branca”: as correlações que fez ao ver um burrinho puxando sua velha carroça

Então, os senhores terão conhecido — os que ao menos tiveram idade para isso — padres pré‑conciliares e freiras, piedosos e que têm recolhimento: andar na rua olhando para um ponto fixo e mais nada. São recolhidos. Eu concordo que pode ser um bom método de recolhimento, mas eu não conseguiria fazer isso nunca, eu preciso olhar e relacionar, pensar a respeito daquilo.

Estou me lembrando, outro dia, um dia desses, era domingo à tarde, eu ia andando para o cemitério, — talvez eu tenha contando isso, eu não me lembro — eu ia andando para o cemitério, — os senhores sabem para o que é que eu vou ao cemitério aos domingos à tarde… — e quando chego ali mais ou menos perto da Rua Mato Grosso, na Rua Sergipe, rumando para a Rua Mato Grosso, eu vejo um carrinho desses puxados a cavalo, com um animal.

Os senhores acreditarão que eu nem sei distinguir cavalo de burro, égua, essas coisas eu não sei distinguir, é um quadrúpede, com aquelas duas orelhas, aquele rabo… Há casos em que é muito claramente um cavalo, é raro a gente ver, hein?!… Há casos em que é muito claramente um burro, mas eu acho [que] há animais, como que, híbridos entre cavalo e burro por aí, dentro dessa confusão.

Bem! Um ente híbrido desses levando uma pobre carrocinha que me deu pena, uma carrocinha sujinha, quase um pouco desconjuntada, que a gente via que tinha sido usada, usada, usada — se madeira cansasse o carrinho estava exausto — para usos completamente anacrônicos, eu não sei como ainda há um uso prático para esse carrinho, nessa época de caminhões horrendos.

* “Pedi a Nossa Senhora que eu fosse assim, que eu levasse a minha carroça até o fim”

No varal ia um cavalo…,burro…, égua, — sei lá o que! — um quadrúpede desse gênero, trotando. Comoveu‑me o bicho, comoveu‑me porque era um bicho cansado até o último, cansado!

Mas sujinho, mal alimentado, feinho, não valia nada! Mas que, como que é… um animal não raciocina — mas como que sabia que o seu dever era puxar a carrocinha.

E restava‑lhe um resto de “vivacidadezinha” com que ia trotando com umas gotas de uma pobre alegriazinha: “pan, pan, pan, pan…”, com tanta resignação, com tanta animação, com tanta decisão de ir trotando alegre até o momento em que caísse morto, que era uma imagem da perfeita conformidade com a vontade de Deus.

Eu fiquei no fundo de minha alma comovido vendo aquilo. Pedi a Nossa Senhora que eu fosse assim, que eu levasse a minha carroça até o fim nesse… [inaudível].

Bem! Eu tenho certeza que eu fiz um ato dentro do recolhimento, quando olhei para a carroça, quando examinei o carro, etc., etc. Segundo certos conceitos de recolhimento eu não deveria ter olhado o carro: “aquilo era o dia de Santo Espiridião, de acordo com o livro de vida espiritual… [inaudível] …”. É muito respeitável, mas eu não… [inaudível]. Eu quero profundamente bem isto, mas não sou assim.

Então, por isso que eu não uso a palavra, mas isto é o espírito de recolhimento, é a concentração, é tudo mais.

Está claro, meu caro?

(Sr. –: Sim.)

No momento sou tomado de desejo de rever meu quarto… de ver… como há uma bela fotografia que está lá… admirar o meu quarto que o zelo de alguém arranjou tão magnífico e, recolher‑me lá. De maneira que, então, em espírito de oração eu vou me despedir dos senhores… e caminhando para o repouso.

Há momentos minha Mãe…

(…)

Eu gostaria de cumprimentar a todos individualmente, mas se faz tarde, etc…

Meu Fernán, representante dos “enjolras”.

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