Conversa de Sábado à Noite ((1:25hs)) – 1/11/80 – Sábado [AC V 80/11.01] – p. 10 de 10

Conversa de Sábado à Noite ((1:25hs)) — 1/11/80 — Sábado [AC V 80/11.01]

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Uma matriz da intemperança está em desdenhar o que refletiu para ir atrás do que está sentindo * Uma tendência desenvolvida ao máximo pela televisão * “Sacrário”, lugar especialmente digno em si e segundo os desígnios da Providência * Em nós, “sacrário”é aquele aspecto da alma onde somos inteiramente nós mesmos e onde temos nossa melhor relação com Deus * As coisas em seu sentido altíssimo se imaginam no sacrário; as outras são de ambiente de santuário * O fim da pompa marca o último ponto da dessacralização da sociedade temporal, que era o aspecto por onde tocava no sagrado por símbolos * Um lumen de graça que não se discerne na pompa de outras civilizações * O lumen que está presente em toda a sociedade antes da guerra mundial, até mesmo num Nicolau II ou Jorge V, não se encontra nem em Garcia Moreno * A pompa do Reino de Maria, algo que se desdobrará de tal maneira, posta em florescimento diretamente por Nossa Senhora e tendo-A como intermediária de Deus * O thau intui o Reino de Maria, mas não é capaz de o exprimir

* Uma matriz da intemperança está em desdenhar o que refletiu para ir atrás do que está sentindo

(Sr. Nelson Fragelli: Como se aplicava na Reunião de Recortes aquela metáfora do marujo na nau de Colombo que esperava 24 horas a mais para cogitar no acontecimento do descobrimento da América antes de ir vê‑la?)

A propósito da temperança. Aquela forma de intemperança de ir correr, para ver, assanhado, etc.

E eu não entrei na temática até o fundo do fundo, mas minha idéia era a seguinte:

Esse tipo de intemperança leva o indivíduo ao prazer de viver principalmente dos sentidos e das impressões. Quando há um equilíbrio interno, que faz o indivíduo viver mais do que ele refletiu do que daquilo que ele está sentindo. E o desdenhar do que refletiu para ir atrás do que está sentindo é uma matriz de intemperança. Única ou das principais, eu precisaria pensar.

* Uma tendência desenvolvida ao máximo pela televisão

E a civilização moderna desenvolve [isso] ao máximo. Por exemplo, a televisão com aquela tendência a fazer o indivíduo a entrar dentro da realidade do vídeo e substituir uma impressão a outra, a outra, a outra. Ela faz uma espécie de controle do pensamento. A seu modo — aclaro que é só a seu modo — mais profundo e mais criminoso do que a limitação da natalidade comum, porque ela produz um pensamento abortivo.

O normal diante de várias coisas, de uma televisão que fosse o que devia ser, era a gente parar, tocar uma música de discoteca da gente e não que a programação está impondo. Ou não fazer nada, rezar, tomar um calicezinho de vinho e ficar sozinho. Muitas daquelas coisas imporiam isso!

* Estanque das impressões destiladas

Agora, ha! ha! ha!… estanca uma porção de processos mentais em estado pré‑natal. E, sobretudo, não é só a teoria, não é só que estanque a teorização, não. Já seria uma coisa medonha! Mas estanca alguma coisa que eu chamaria a impressão destilada, que é, depois que passou a primeira impressão, o que a gente filtra. Fica com o melhor da cena, o mais característico do aspecto ou o pior do aspecto, mais característico do aspecto, e confere com o senso do ser ou com o senso católico, de acordo com os modelos idéias, de maneira à gente ficar com uma impressão terminada, selecionada e mais real, mais degustativa, do que aquela impressão. Depois, dali, é que sobe propriamente à teorização.

Tudo isto constitui o nosso interior, que é mais ou menos a diferença que há entre a luminosidade comum de uma casa e a luminosidade fora, do Sol, que arrebenta. Isso dá uma espécie de estado de alma pessoal. A gente não é o terceiro, mas a si mesmo. E voltado para a religião, para Deus, para o seu íntimo, no qual o centro é o sacrário.

* A emotividade das fitas de comboys

É toda uma modelação que eu não tive tempo de expor, porque passam mil linhas em todas as direções de tudo isso. Mas que tem como oposto, não quero dizer o norte‑americano, mas eu digo o Yankee, emotivo, querendo impressões.

Por exemplo, vocês devem ter assistido em menino fita de cowboy, o sujeito sai correndo, pula num cavalo, dá três tiros, cai o querosene… toca fogo na casa… a fassura dele pula pela janela, ele nessa hora pega a fassura pela cintura, põe no cavalo atrás e sai andando…

A essa hora o prefeito da cidade dá um tiro na pata do cavalo dele… mas o cavalo é dedicado a ele… então continua a mancar e atravessam a ponte… e aquilo chama‑se — um nome mexicano qualquer — a ponte de San Antonio… E o nome do filme é “A ponte de San Antonio”…

O que é isso?!

* “Sacrário”, lugar especialmente digno em si e segundo os desígnios da Providência

(Sr. Nelson Fragelli: O que é o sacrário da alma?)

(Sr. Fernando Antúnez: Se o senhor pudesse falar desse sacrário, porque em nós não se vê…)

A minha familiaridade com o tema é porque na literatura do século XIX, cujas últimas… não diria últimos perfumes, mas exprimemo‑nos assim, ainda chegaram até os anos 20, em que me formei. Era freqüente usar a palavra sacrário para designar um lugar ou uma… um lugar especialmente digno em si e segundo os desígnios da Providência. Um vaso honorabile qualquer. Não Nossa Senhora que… mas um vaso honorabile qualquer.

Então, por exemplo, dizia‑se o “sacrário do lar”, ou o “santuário do lar”. Até me espanta que vocês não tenham ouvido essa expressão. Acho que alguns devem ter ouvido.

(Sr. Nelson Fragelli: Santuário sim, sacrário não.)

Você vê a correlação entre uma palavra e outra, quem diz uma pode dizer outra.

Depois falava‑se, por exemplo, “o sacrário do coração materno” e outras coisas assim.

Vamos dizer, para o civismo brasileiro o Ipiranga é um sacrário… Podia‑se dizer. Por exemplo, num discurso patriótico não espantaria que alguém dissesse.

Santuário é o lugar santo. O sacrário é o lugar mais santo do santuário. Então, onde se concentram muitas sublimidades, muitas bênçãos, etc., ali se pode dizer o sacrário, adequadamente. Desde que isso não seja empregado como banalidade.

* Em nós, “sacrário”é aquele aspecto da alma onde somos inteiramente nós mesmos e onde temos nossa melhor relação com Deus

Agora, na nossa alma o que é que é o sacrário?

É aquele aspecto de nossa alma, para usar uma expressão mal apropriada, o santuário de nossa alma, onde nós somos inteiramente nós mesmos, cada um é inteiramente si mesmo, debaixo de um aspecto, em que ele ali tem sua relação melhor com Deus. E ali também ele tem a sua melhor relação com o próximo. É uma espécie de tripé: ele se identifica, se distingue, se submete, se une e se comunica.

Por exemplo, aquele aspecto da alma por onde o homem é “tal enquanto tal”, é no sacrário do ser.

Isso me parecia notar imensamente nela, daí a expressão.

Aliás, creio que a palavra é muito bonita, que ela tem muito som da idéia que ela quer exprimir. Quando se diz o “sacrário” há um respeito religioso, cheio de afeto, cheio de… não sei, santificado por aquele que aprecia a palavra. Vamos dizer que o apreço da palavra santifica.

É um pouco como outra palavra muito bonita que é “relicário”. Essas três palavras acho‑as muito bonitas: sacrário, relicário e santuário.

Escrínio é muito bonita, mas é menos sagrada do que essas três. É muito bonita, na mesma linha, mas noutro nível.

(Dr. Edwaldo: Sacrário é muito bonito porque é o ponto onde se realiza a presença de Deus na alma.)

É, onde a graça toca, etc. É ali.

Vamos dizer, as impressões que a gente não comunica, as resoluções que a gente guarda com Deus. Também as tristezas que a gente não comunica. E, infelizmente, por vezes, os ódios que a gente não comunica… São coisas que habitam ou que infestam o sacrário, portanto, poluem o sacrário.

Por exemplo, uma coisa horrível, mas que quando entra nessa zona da alma estraçalha o homem é a inveja. A inveja é uma sensação que parte daí, uma obliteração daí: “Você tem e eu não tenho, não me conformo! E quero ter… Por isso vou negar que você tem, vou fingir que eu tenho. Não sossego enquanto não te destruir ou enquanto eu não me puser no seu lugar, superando e dando a idéia de que eu autenticamente tenho mais que você”. Tudo isso é… mas vem dessas dobras horríveis e profundas.

* As coisas em seu sentido altíssimo se imaginam no sacrário; as outras são de ambiente de santuário

(Sr. Nelson Fragelli: …palavra sacrário…)

Mas especialmente para as mais altas coisas. As coisas comuns, no seu sentido altíssimo, não se podem imaginar no sacrário. As coisas altíssimas, no seu sentido altíssimo, se imaginam no sacrário. As outras são do ambiente do santuário, não tanto do sacrário.

(Sr. Nelson Fragelli: […] Como torna digna de incorporar ao sacrário, como no exemplo que o senhor deu na Reunião de Recortes na única notícia lida?…)

O que diz respeito a Deus, à graça, naturalmente todo Céu, portanto Nossa Senhora eminentemente, hiperdulia, etc., por exemplo, à Igreja Católica, é tema de sacrário. O que diz respeito aos aspectos mais cotidianos da vida da Igreja e a quase toda a vida temporal, é santuário e não sacrário. Quer dizer, uma coisa sagrada, mas que não é — no sentido próprio da palavra — sacrossanto.

Em relação à palavra sacro, uma das mais bonitas expressões é sacrossanta. Carregada de sentido.

Num outro plano se poderia dizer: tudo quanto é sobrenatural, santuário. Os mais nobres aspectos da ordem natural que nos falam extraordinariamente de Deus, santuário. Portanto, o píncaro da ordem temporal — forçando a nota um pouco, ajeitando um pouco — ainda seria sacrário, toca no sacrário, o resto é santuário. Quer dizer, é o ambiente dentro do qual está o sacrário.

Esse é o sentido corrente da palavra e acho muito bonito.

* O fim da pompa marca o último ponto da dessacralização da sociedade temporal, que era o aspecto por onde tocava no sagrado por símbolos

(Sr. Nelson Fragelli: […] Na Reunião de Recortes o senhor falou do enxerto maldito posto pela Jezabel na Igreja. E na hora do exemplo do término desse processo o senhor deu a Primeira Guerra Mundial como a morte da pompa, do esplendor. O Sr. Guerreiro disse que ficou tocado aí porque compreendeu o papel da sociedade orgânica…)

É um pouco — talvez não — exagerado…

Eu falei longamente a respeito da eclosão do gótico… Estou sentindo um vento, estou com início de resfriado, tem alguma janela aberta aí?

É mais fácil tomar uma fortaleza do que fechar essas janelas que foram outrora muito práticas e modernas… Eu lamento produzir esse abafamento, mas…

Eu falei à tarde a respeito da Belle Époque, depois falei do gótico longamente, e da eclosão do gótico, do desenvolvimento do gótico, etc., como expressão, como florescimento de um estado de espírito.

E falei também que no declive do gótico apareceram, entretanto, algumas coisas, que prolongavam o esplendor e a pompa da Idade Média numa espécie de sobrevida. Falei do hino de Noailles e outras coisas assim. Uma coisa que gosto muito que é o minueto de Boccherini, numa outra ordem de coisas, mas é… coisa absolutamente superior, etc. Eram mais baixo, mas eram algumas pontas.

Não sei se conhecem uns telhados góticos em cuja crista aparecem assim uns desenhos assim… vai descendo, mas formando ondas que ascendem? Assim é o declínio até 1914, se vocês quiserem.

Aí eu precisaria dizer que se a gente compara esta pompa que assim foi deitando seu esplendor e que durou até o fim da Belle Époque, essa pompa eclodiu com características próprias muito afins ao gótico — mais do que afins, muito congêneres com o gótico —, ela eclodiu na Europa católica da Idade Média. Mas eclodiu com um charme próprio, uma graça própria, uma força própria. Para dizer bem o fundo do meu pensamento, uma rutilância meio sobrenatural que nós não encontramos nas congêneres do mundo pagão, o limite vai até onde termina a Cristandade.

* Um lumen de graça que não se discerne na pompa de outras civilizações

Tomem, por exemplo, a pompa de um marajá, a pompa de um xá, a pompa de um antigo rei egípcio, de um kirguiz, de um sultão ou do que queiram, de um micado, o que queiram! Coisas riquíssimas! São coisas de grande valor artístico. Têm alguma pompa, mas não é o gênero daquela pompa resplandecente, mais forte do que a do Oriente, mais graciosa, debaixo de certo ponto de vista mais frágil, mais espiritual, menos pesadona e absolutista, esmagadora do que a do Oriente. E que tem um qualquer lumen de graça que a gente pode discernir e pode sentir, que a gente não nota nas coisas do Oriente.

E é o fim deste lumen que eu creio que marca o último ponto da dessacralização da sociedade temporal. Isto era o aspecto por onde a sociedade temporal tocava no sagrado, por símbolos. Exprimia seu sagrado.

De lá para cá, a sociedade temporal enquanto tal, enquanto sagrada, teve apenas uma pós‑vida. Aquela pompa própria à sociedade temporal caiu no chão com aquilo.

* Há qualquer coisa na Igreja de São Basílio como sacralidade, como brilho sobrenatural, como união com Deus, que deixa o Taj Mahal à margem

Então há um verdadeiro discernimento de espíritos num conjunto de costumes, de estilos, de modos, que refletem um estado de alma. Nesse estado de alma se vê o sobrenatural.

Alguém me dirá: “Mas isso inclusive na pompa de nações protestantes? Na pompa de uma nação cismática e que caiu na heresia, como foi a Rússia?”.

Digo: “Sim. Enquanto prolongando uma coisa nascida anteriormente, sim”.

A gente toma, por exemplo, a Igreja de São Basílio, tão mencionada entre nós, em Moscou. Ela tem qualquer coisa que nenhum templo pagão tem. O mais bonito templo não católico não tem aquela… o que se vê na Igreja de São Basílio, o Taj Mahal não tem. Até talvez se possa sustentar que o Taj Mahal é mais bonito do que a Igreja de São Basílio. Artisticamente falando, como distribuição, eu talvez concordasse, precisaria pensar. Nunca me lembrei de fazer a comparação, mas eu talvez concordasse. Mas há qualquer coisa na Igreja de São Basílio que deixa o Taj Mahal — como sacralidade, como brilho sobrenatural, como união com Deus — à margem.

Para não falar do Parthenon, templo pagão, indiscutível como beleza, mas… que união com Deus tem aquilo? Não tem. É uma lindíssima caixa… mas uma caixa.

Não é, meu George? Eu me esqueci que tinha um heleno aqui…

(Sr. George Antoniadis: Não sei se é lindíssima, não.)

Não, é lindíssima, sim.

Por exemplo, você toma uma coisa que para mim fala mais, pode ser uma coisa pessoal, mas a tribuna das Cariátides. Lembra‑se? Você deve ter estado lá, deve ter visto a tribuna das Cariátides. Acho aquilo um portento, coisa fenomenal! Eu gosto mais daquilo do que Parthenon. Eu tenho a impressão que aquelas mulheres têm mais grandeza do que as colunas do Parthenon. Mas… não é, não, é uma certa coisa.

(…)

* O lumen que está presente em toda a sociedade antes da guerra mundial, até mesmo num Nicolau II ou Jorge V, não se encontra nem em Garcia Moreno

ela tem alguma coisa que um marajá não está a altura. Não tem dúvida nenhuma! Uma Chabanú não está à altura daquilo. É um quê que não sei como exprimir, mas é mais.

É isto que está presente em toda sociedade ainda antes da guerra mundial. E com a ruína… porque a Europa deixou de florescer, a Europa ficou com o cadáver com barba crescendo depois da guerra mundial. Os apartamentos de Paris… Paris dá a impressão de uma rainha que está crescendo a barba… com aqueles apartamentos, aquela coisa toda, aqueles prédios, arranha céus. Aquilo é uma monstruosidade! Simplesmente.

Vocês tomem a Paris de antes da Primeira Guerra Mundial: ela ainda sorri.

Não quero exagerar as coisas, mas eu comentava com alguém outro dia que a gente folheando a “Illustration” percebe até que ponto o mundo de pós-guerra mundial estava nascendo no mundo de antes da guerra mundial. É fora de dúvida. Mas, afinal, já [há] um limite, esse limite é a guerra.

(…)

há um número de “Illustration Française” que tenho aí com uma página inteira tomada por uma espécie de desenho meio fotográfico de Nicolau II. Mas é uma besta! é uma besta. Mas o que querem?… Ele tem esse lumen.

O sósia dele, o Jorge V, é um coitado. Era. Mas é um cretino! Muito menor em relação ao Nicolau II, mas sabe que às vezes eu passava pelo outro? Mas tem esse lumen.

O Garcia Moreno, homem inteligente, capaz, etc., um homem que a meu ver foi um mártir, ele tem o esplendor do santo, mas esse lumen específico, enquanto chefe de Estado, ele não tem. Ele tinha o lumen pessoal, mas esse não.

* A pompa do Reino de Maria, algo que se desdobrará de tal maneira, posta em florescimento diretamente por Nossa Senhora e tendo-A como intermediária de Deus

(Sr. Fernando Antúnez: […] Como seria a pompa do Reino de Maria que nasce do ato de virtude imenso?)

Não sei também. Porque eu acho que os católicos do tempo das catacumbas não podiam imaginar como ia ser a pompa da Idade Média. É uma coisa que se desdobrará de tal maneira, posta em florescimento, diretamente por Nossa Senhora e Ela intermediária de Deus, que nós não sabemos como será.

Houve um tempo que eu li uma série de histórias, etc., em coletânea, de santas do tempo que vai de Constantino e a queda do Império Romano do Ocidente. Uns nomes que nós estamos pouco habituados, um pouco risíveis para nós, mas eram grandes santas!

Melania, por exemplo, é um nome que acho que para o ouvido brasileiro soa muito mal, ridículo. Dá um pouco a idéia de melancia, de mamão de coisas dessas.

Outra um nome mais esquisito ainda, Eustóquium. É uma santa, Eustóquium. O “um” em latim dá idéia de gênero neutro e não feminino. Santa Eustóquium. Santa Eustóquium era filha de Santa Melania, é um colosso!

Havia muitas outras que eram plebéias, mas elas por coincidência eram nobres e ricas. Mas ricas como se era naquele tempo do Império Romano: elas tinham Estados pelo Império Romano, jóias, palácios, tinham tudo. Não dá o que deu um nobre da Idade Média. Eram nobres do tempo pagão, com a rutilância do tempo pagão. Ela era nobre, mas ela não impregnava com este espírito da Idade Média a condição de nobre. Sua pessoa, sim; mas a condição de representante da sociedade civil, não.

Você pega um basileu, um imperador bizantino. Ele está a meio caminho, mas ele não tem a carga sobrenatural, etc., que poderia ter, por exemplo, a Igreja de São Marcos, ou o grande canal de Veneza. É diferente.

* Seria explicável que Nossa Senhora desse um pressentir disso dentro do thau

(Sr. Fernando Antúnez: Mas com nós é diferente, porque no “thau” está contido todo o Reino de Maria e naquela época não…)

Na Igreja e no espírito católico estava. Claro. A Igreja sempre foi igual a si mesma.

(Sr. Fernando Antúnez: Mas ninguém tinha feito um ato — claro que Nosso Senhor e Nossa Senhora estão por cima disso — que resgatasse o pecado anterior.)

É melhor você falar em reparar do que em resgatar.

(Sr. Fernando Antúnez: Mas há algo novo…)

Eu vejo que se poderia encaminhar um pensamento nessa ordem da seguinte maneira:

Seria explicável que Nossa Senhora desse um pressentir disso dentro do thau. Seria uma coisa que caberia. Mas, de fato, é uma coisa tão alta e tão extraordinária, que excede ao que eu posso pressentir. É uma rutilância toda especial. Eu digo que não sei pressentir.

(Sr. Nelson Fragelli: Mas o ponto central o senhor discerne, que é o que diz respeito a Nossa Senhora.)

Não, no ponto que ele falou, da pompa… a coisa pega no seguinte:

No Reino de Maria até que ponto a presença — não a presença pessoal, física , mas a ação de presença — de Nossa Senhora será discernível e perceptível? Para ser o reino d’Ela tem que ser tanto mais do que é hoje como a gente custa a imaginar.

Isto posto, vai além de nossa concepção o que será, porque nós não sabemos como são as graças que Ela vai querer dar. Ao menos a minha concepção não chega até lá, há qualquer coisa que definidamente supera. Que Ela dará, no momento oportuno, aos que transpuserem os umbrais do Reino de Maria, etc., mas que…

(Sr. Marcos Fiúza: Mas terá alguma coisa de Idade Média, “Ancien Régime” e Antigo Testamento.)

Vou dizer mais: alguma até do século XIX. Eu custo a ver, dentro disso, o século XIX. Custo a ver, mas até do século XIX alguma coisa se compreende. Mas além disso… haverá algo a mais? Qual esse algo a mais é exatamente o que custo a imaginar.

* Tendo o moderno mais força de expressão do demônio do que o gótico do sobrenatural, evidentemente virá uma expressão do sobrenatural ainda maior para acachapar o moderno

(Sr. Poli: […] Na “RCR” o senhor diz algo quando fala da nova ordem de coisas que será uma superação de todos os pecados. Então um primado da Igreja como nunca houve, direitos do Papado como nunca tão respeitados, espírito hierárquico, etc.)

É, consigo agora pegar o fio da meada da questão. É o seguinte:

Vocês tomem o moderno nas suas expressões mais frisantes e horrorosas. Pode‑se fazer a pergunta sobre si: tomando a força de expressão do moderno para manifestar o preternatural e a força de expressão do gótico para manifestar o sobrenatural, qual dos dois tem mais força de expressão?…

Eu sei que são forças de expressão que estão nos antípodas, mas pode‑se comparar força e força. Então a minha pergunta tem todo cabimento.

Aqui, de momento, eu diria que… eu não posso afirmar bem, mas eu seria propenso a afirmar que o moderno tem mais força de expressão do que o gótico. Tem mais força de expressão do demônio, o moderno, do que o gótico exprime o sobrenatural. E por causa disso virá uma expressão do sobrenatural para acachapar o moderno ainda maior.

Aí a gente compreende em que clave é. Entende, mas não pode imaginar as expressões culturais, sociais e artísticas que isso pode trazer. Aqui há algo do fio da meada.

(Sr. Poli: […] Não será algo no relacionamento humano…)

A seu modo, nas pompas, nas grandezas, nas intimidades do Reino de Maria. Agora, como será, como se fará… Volto a dizer, é difícil de exprimir.

(…)

* Os homens do tempo de São Pedro intuíam que o Papado daria até os flabellis, mas não eram capazes de exprimir — O thau intui o Reino de Maria, mas não é capaz de o exprimir

É difícil de exprimir, mas muito bonito, etc.

Na Igreja de São Pedro — que minhas palavras hoje não foram propriamente de elogio para o estilo artístico da igreja, o esplendor daqueles mármores, é muito luxuosa a igreja — tiveram a idéia, a meu ver magnífica, de conservar aquela estátua de metal do Pescador, que é o contrário daquilo. O normal da Igreja de São Pedro é que aquela estátua fosse de ouro, ou pelo menos folheada a ouro, porque a Renascença é de todas as fraudes possíveis. E que fosse um gentil-homem romano, roliço, com as carnes risonhas — para usar uma expressão horrorosa — e todo gorduchete, dedinhos gordinhos, pálpebras gordinhas e dando um addio amável. É o que a gente imagina. Um Paulus quintus, Borghesi… eu imaginaria assim.

Bem, em vez de terem posto a ele, puseram aquele… aquela barba de ferro. Até o sorriso é de ferro. Não quero fazer malabarismos, mas até o ferro sorri ali. Mas até o sorriso é de ferro.

Na época em que os papas eram assim ninguém podia imaginar os flabellis, uma tiara, as tubas de Michelangelo e tudo quando se constituiu em torno do Papado ao longo dos séculos. Não se pode imaginar. Mas estava em gérmen contido ali! E aquilo é a imagem da infância férrea e esplendorosa do Papado! As fecundidades de todos os sorrisos, de todos os flabellis e do reluzir de todas as tiaras, está contido ali, naquele pescador, que a gente se pusesse uma rede na mão daquele homem, ele tirava do mar uma safra e vinha vender para ter com o que manter o culto e se manter a si próprio.

Bem, os homens daquele tempo, do pescador de ferro, intuíam que o Papado daria até os flabellis? Eu acho que intuíam. A única coisa que tem é que eles não eram capazes de exprimir.

O thau intui o Reino de Maria, mas não é capaz de exprimir. Há uma certa analogia aqui.

Agora, eu acho muito bonito…

(…)

um varão santíssimo! Aquilo não tem nada de comum ou pouco tem de comum com as hirtezas daquele pescador. Mas uma coisa representa a outra.

E todo mundo sabe que — é uma coisa muito bonita isso — os pés do pescador estão gastados de tantos ósculos. E é o único lugar do mundo onde os lábios humanos tanto oscularam que o metal teve que ir recuando.

Aí a gente vê o poder do ósculo cheio de fé no que pode no homem. Acho muito mais bonito que os ósculos tenham desgastado o metal, do que levantar um prédio de cinqüenta andares, cem andares, qualquer porcaria! É lindo isso!

Mas ele está sentado ali com o chavão na mão e olho assim… en bataille. Ensinando, abrindo. É uma proclamação a‑temporal, em que tudo quanto é Gregório VII, etc., está contido.

Eu acho aquela imagem estupenda. A meu ver a melhor imagem da Basílica de São Pedro.

Meus caros, com pesar para mim, a reunião da qual eu gostei está chegando até o fim, estou no último biscoito.

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