Conversa de Sábado à Noite (Alagoas, 1 andar) – 2/8/1980 – [AC III ‑ 80/8.01 e 80/8.02] – p. 16 de 16

Conversa de Sábado à Noite (Alagoas, 1 andar) — 2/8/1980 — [AC III ‑ 80/8.01 e 80/8.02]

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Recolhimento, troca de vontades, “pulchrum” * “Até o João começar a batalhar para restaurar a Oração da Restauração, ela estava completamente esquecida” * Tudo numa Civilização Católica deve comunicar uma nota sacral * A Sra. Da. Lucilia prepara as almas através de uma série de “flashes”, para a troca de vontades

Índice

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* Com a camáldula, Jasna Gora perdeu aquele ar de vila cafajeste

Inapreciável. Não sei se foi em sua presença ou não, estávamos comentando, mas Jasna Gora perdeu aquele ar de vila cafajeste e parvenu ordinário que tinha, aquele pseudo Fontainebleau, aquilo tudo. Está menos agressivo, pelo menos.

E quando a gente está na sala de reuniões, ou no quarto do Luizinho, ou naquela sala com os móveis do pai do Luizinho, sente um certo… não é? Sobretudo na sala do Luizinho, aquilo ficou muito “luizinhesco”, com aquele cuidado, aquelas coisas bem arranjadas do Luizinho, aquilo tudo.

E a camáldula concorreu muito para isso, aquilo é uma bênção sem nome nem qualificação.

Eles cumprimentam as pessoas?

(Sr. –: Não tem a menor comunicação com ninguém.)

(…)

* Alguém que por fidelidade ao bem não tem com quem comunicar‑se em vida, é razoável que receba como prêmio esta possibilidade depois de morrer — Exemplo da Sra. Da. Lucilia

(Sr. –: Ela dá uma disposição temperamental que possibilita a ação do senhor.)

Isto ocorre muito, mas muito!

Foi uma coisa que, com o tempo, com a reflexão, se tornou clara para mim no caso dela. É o seguinte:

Uma pessoa que, por fidelidade ao bem, é incompreendida e não tem com quem comunicar‑se, essa pessoa é razoável que receba como prêmio a possibilidade de se comunicar enormemente depois de ter morrido; é um prêmio proporcionado.

Bem, para recorrer ao exemplo divino, Nosso Senhor foi isso, porque Ele foi odiado, mas O odiado em alguma parte por ser incompreendido, quer dizer, os mais próximos d’Ele não O entendiam.

A gente vê que quando Ele diz que o Corpo d’Ele era verdadeiramente carne, e o Sangue era verdadeiramente bebida, etc., alguns discípulos o abandonaram achando que essa era forte demais. Ele voltou‑se para os Apóstolos e fez uma pergunta que, no plano humano… porque às vezes Ele falava como homem e às vezes como Homem Deus, mas às vezes como homem, quer dizer, como se não tivesse outra ciência senão a do homem. [Ele] voltou‑se para os Apóstolos e disse: “E vós, quereis abandonar‑me também?”.

Você vê a incerteza, como quem diz: “Também em vocês eu não tenho confiança. Querem me abandonar?”.

Aliás, São Pedro deu uma resposta que não era de toda confiança, porque, ao invés de dizer, que não, jamais; ele disse: “A quem iremos se só Vós tendes palavras de vida eterna?”.

Quer dizer, “se outro tivesse palavra de vida eterna, nós íamos experimentar. Mas como, por assim dizer, não temos onde cair mortos, ficamos convosco”. Quer dizer, não foi compreendido.

Resultado: post mortem, nunca ninguém foi tão compreendido. É verdade, tem incompreendidos também, mas, de qualquer forma, nunca ninguém foi tão compreendido.

Então, a gente entende bem que ela que não se comunicou por causa desse refoulage da influência dela; depois de morta tenha recebido a graça de se comunicar enormemente aos outros. E de preparar, portanto, a troca de vontades.

Bem, mas isso era apenas um parêntesis, uma árvore plantada no caminho do meu Marcos. Continue, então, meu Marcos!

* Dificuldades de certas pessoas no relacionamento com a Sra. Da. Lucilia: o gosto de falar só do presente e do futuro, nunca do passado — As narrações pormenorizadas da Sra. Da. Lucilia

(Sr. Marcos R. Dantas: Que o senhor desse um empurrãozinho no tema.)

(Sr. –: Um dia me encontrei com um enjolras na Consolação, rezei o rosário ali e ele estava com a cara de quem não iria sair, estava no lugar dele. Me deu idéia de que ele ali entrara num estado de espírito temperante, muito contra‑revolucionário, que só tinha ali por uma influência dela. E aquilo estabelecia com ela uma relação muito misteriosa. Mas, eu notava que as pessoas mais velhas tinham maior dificuldade de entrar nesse estado de espírito, um estado de espírito muito propício a se orientar na linha do senhor. Pergunta: qual a atuação que ela exerce nesse relacionamento de alma? E como fazermos para entrarmos nesse campo misterioso?)

Isso é polígono, uma estrela que a gente pode agarrar por qualquer das pontas para manejar.

Para tomar o assunto por um lado acessível, eu notava muito que uma das coisas que estabelecia uma dificuldade de convívio de mamãe com as pessoas — não todas, [mas] muitas das pessoas que conviviam com ela — era que essas pessoas, em idade naturalmente escalonadas, já estavam postas na civilização moderna, pela qual só se fala do presente e do futuro e nunca se fala do passado.

O passado, mesmo fatos passados de uma família, o que aconteceu outrora, essas coisas todas, ao menos em São Paulo e no ambiente nosso, não se falava. E os assuntos que mais atraem são os assuntos mais novos, que ainda ninguém conhece e que tem consigo a efervescência da vida cotidiana. Esses são os que mais atraem.

Por causa disso, também os mortos da família: sobre eles não se falava nunca, era como se nunca tivessem existido, não há recordação desses mortos.

Comentários também podados, quaisquer comentários mais elevados.

Por exemplo, qualquer crítica de ordem moral, como tal ação é mal feita ou é bem feita e um outro dá uma atenuante ou dá uma agravante, então fazem uma análise da questão. Análise não. Desde que se faça comentários muito rápidos, assim: “Ele fez isso, não sei o quê”, uma exclamação elogiosa ou uma exclamação depreciativa, mas logo seguida de outro tema e a coisa corre assim mais rápida possível.

As narrações, quanto mais rápidas são, quanto menos pormenores contêm, e quanto mais as frases são simples e rápidas também, e quanto mais a pessoa toma a palavra passageiramente para dar ocasião de todos os outros de entrarem também, tanto melhor é a conversa.

Não sei se vocês são mais felizes e conhecem outros estilos de conversa, mas o estilo de conversa a que eu fui habituado desde pequeno, de todo mundo aqui, é esse.

Ora, nela era tudo ao contrário. Os fatos mais remotos eram os mais interessantes, os fatos típicos que ela contava para explicar situações humanas, isso, aquilo, eram dos pais dela, dos avós, de tios que a gente não tinha conhecido, e às vezes nem sabia bem que relação tinha com a família, enfim, esses eram os arquétipos. Depois os comentários eram longos comentários em voz tranqüila, muito matizada: “Tem tal lado, mas também tem tal outro lado, pondere tal coisa assim, etc., e então chega a tal conclusão assim”.

O temperamento moderno se revolta contra isso.

* A alma capaz de recolhimento tem todo um mundo interior, com o qual ela se entretém

Para dar a vocês uma idéia, esses dois quadros que tem aqui na sala de jantar estavam naturalmente na casa de minha avó, onde eu fui educado mais ou menos até eu fazer 20 anos. Eu não sabia quem elas eram. Estavam pendurados na parede, por hábito, não sei o quê, mas não sabia quem eram. Foi mais ou menos quando eu tinha 20 anos que me ocorreu perguntar:

Quem são essas duas?.

Então me explicaram:

Essa é tal e essa é tal outra.

Mamãe vinha logo com a biografia preparada. As outras pessoas tá, tá, tá, e está acabado, toca para frente.

Quer dizer, era uma espécie de estar à margem do fluxo da vida, fora da trepidação, fora da torcida, na calma e no bem‑estar de quem reflete, quem olha, quem eleva a alma, quem, enfim… tem um tonus religioso no espírito. Agora, eu tenho a impressão de que as gerações que vieram depois da minha, ainda caracterizaram muito mais esse estado de espírito do que na minha geração, embora, na minha geração se caracterizasse a tal ponto que, por exemplo, quando eu falava, comia letras e às vezes comia palavras. E ainda conservei esse hábito hoje, porque há tanta coisa para se corrigir, as pequenas coisas a gente não corrige. Mas eu, até hoje, em vez de dizer boa noite, digo “ba noite”. Outro dia uma pessoa ia saindo do meu escritório e eu queria chamar o Amadeu, eu disse “chamadeu”. É o hábito de atravancar as palavras para andar mais depressa.

Bem, mas isso que parece uma bagatela, de fato não tem nada de bagatela, é toda uma impostação fora do tempo, uma impostação fora da efervescência e da torcida, e uma impostação da alma para elevar‑se, para aprofundar‑se.

O não ter essa vontade do que aconteceu, faz com que eu possa passar um dia inteiro nesse escritório com um voile, para não ver o que tem do lado de fora e sem ir uma vez à janela para olhar o que está se passando na rua.

Agora, tenho certeza que a maior parte dos homens da minha idade, já velhos, portanto, passando um dia como passei vários nesse escritório aqui, se levantariam para ver o que está acontecendo lá fora. Na geração de vocês deve ser a fortiori isso. Nem sei. Agora, qual é a importância que tem isso?

A importância que tem é que isto é o tal recolhimento que é uma condição prévia, segundo todos os autores espirituais, para a gente ter vida espiritual, precisa ter alma recolhida, alma recolhida é isso. É fora do burburinho, fora da encrenca, pensando, refletindo, no bem estar de si mesmo, esse é o recolhimento.

Agora, o que é aí a alma recolhida?

Alma recolhida é aquela que, quando não está com os outros, não fica só, esse é o problema, porque ficar só é contra nossa natureza social, mas a alma que é capaz de recolhimento, quando não está com os outros não está só, ela tem todo um mundo interior com o qual ela está. E que lhe permite então, começar a pensar, etc…

* Troca de vontades: a atração por um determinado estado de alma de uma pessoa, o qual transfere‑se para outra

Agora, o que é aí a troca de vontades?

Seria um fenômeno de troca de vontades uma pessoa que é muito recolhida praticar o recolhimento diante de nós, de maneira tal, que a gente perceba como é que é esse recolhimento. Em segundo lugar, sinta atração por esse recolhimento. Terceiro, a pessoa nos transfira seu recolhimento. Aqui propriamente está a tal troca de vontades.

1º) Perceba como é o recolhimento;

2º) Nos torne deleitável, faça perceber que este recolhimento é deleitável;

3º) Nos transfira esse recolhimento.

Quer dizer, é uma série de degustações que ela tem na alma e que a alma dela transmite a nós para que comecemos a degustar também, de maneira que começamos então a nos sentir bem dentro desse recolhimento.

(Sr. –: Irradiação.)

A palavra irradiação não é muito boa, porque dá a idéia de uma intensidade evidente, o que não se dá no caso. Seria quase uma capacidade de insinuação, de embebimento, como azeite no papel, por onde as coisas de que ela gosta, vê e sente, ela nos transmite, começamos a gostar, sentir e ver do mesmo modo quando estamos recolhidos.

Bem, isso é um exemplo para dar idéia do que é o recolhimento. Também para dar idéia do que eu considero que as pessoas em oração junto a ela obtêm.

* A alma recolhida é aquela que se encontra embebida a si própria de Deus

(Sr. –: A pessoa, mesmo tendo essa qualidade, tem a capacidade de insinuar aos outros o recolhimento ou uma outra virtude?)

Não. É um dom especial. Aliás, é preciso dizer o seguinte:

Recolhimento não é o fato de uma pessoa separar‑se do convívio para pensar, mas é nesse convívio, conviver com Deus.

Vamos dizer, por exemplo, Catarina de Médicis, ultrapolitiqueira, vivia com problemas, etc., aos quais não é alheia a artificiosa península onde ela nasceu. Bem, ela usava numa bolsa o Maquiavel, “O Príncipe”. E quando saia algum problema, ela folheava Maquiavel para ver qual era a solução.

Aliás, todos os reis, príncipes, potentados daquele tempo não usavam bolsos, ou se usavam era de pouco volume, usavam uma bolsinha com o Maquiavel. Os livros naquele tempo eram grandões, mesmo o pocketbook não era pocket. Bem, então edições do Maquiavel. Havia uma encrenca, ela ia para o lado para não verem que estava folheando o Maquiavel, ou às vezes era diante dos outros. Ela estava pensando, de repente parava, abria o Maquiavel, lia e depois retomava a urdidura dela.

Isso não é recolhimento.

No recolhimento a gente se encontra embebida a si próprio de Deus e olhando para o interior de si mesmo. A gente vê a luz de Deus iluminando a gente, isso é o recolhimento.

(Sr. –: É um modo de ser.)

É um modo de ser, mas que começa em geral por momentos. Depois transforma‑se numa segunda natureza, mas, pela graça. E vida interior é isso.

* Uma pessoa insinuante é aquela que tem determinado estado de espírito, e dá à pessoa que a vê a vontade de possuir esse mesmo estado de espírito

(Sr. –: Essa capacidade de insinuação, quais são as almas que a têm, por que a têm? Não é ligado ao maravilhoso, ao sublime?)

É preciso dizer o seguinte: este fato que estou qualificando como sobrenatural, estou descrevendo uma pessoa que procede assim à luz da Fé. E como a Fé é uma virtude sobrenatural, é a primeira das virtudes teologais, ninguém pode ter a Fé sem o sobrenatural. Porque a natureza produz fenômenos parecidos com esse, embora em temas num nível incomparavelmente mais baixo.

E daí existe em português uma expressão que eu não sei como é que se traduziria, nem para o castelhano, nem para o alemão: um fulano é insinuante.

O que é o homem insinuante ou a senhora insinuante?

Ela tem determinado estado de espírito, e dá à pessoa que a vê, a vontade de possuir esse estado de espírito.

E ela deixa à mostra, pelo modo dela ser, uma certa clave por onde a pessoa compreende que, tomando aquilo, pondo aquilo como prisma, adquire o mesmo estado de espírito. E essas são as pessoas insinuantes, que insinuam.

Eu sei que a “geração nova” não gosta muito de etimologia, mas é uma coisa bonita. Insinuar vem de (insinuo1) quer dizer: “entrar no peito”. Então, insinuar é fazer penetrar no peito do outro uma coisa que está no peito da gente. Os senhores estão vendo que vale a pena aprender etimologia, dá uma riqueza ao vocabulário a gente saber a origem da palavra, uma riqueza de primeira ordem.

Então, há pessoas que são assim insinuantes.

Quando se é insinuante com uma multidão, é‑se um demagogo, no seguinte sentido da palavra, que o homem que faça dessa capacidade de insinuar o único modo de persuadir e levar, é um demagogo ainda que seja um contra‑revolucionário.

(Sr. –: Nosso Senhor tinha que ser um insinuante.)

Mas, com quanto raciocínio Ele acompanhava o que dizia! E tudo quanto Ele dizia, não é razoável, é a razoabilidade. E demagogo não!

* A troca de vontades é um fato sobrenatural, fruto de uma experiência interior, que muda o estado de espírito do outro

Eu conheci um padre que era demagogo, tido na pequena São Paulo de meu tempo de moço, como um orador de desmaiar de tanta emoção que produzia, não em mim, naturalmente. Ele usava cabeleira. Cabelo um pouco a la garçon, cabelo de mulher aparado e assim… muito cacheado. Não sei porque tinha um dedo cortado. Então, ele falava assim… para não aparecer o dedo cortado.

Me lembro um discurso dele, todo o pessoal de pé para começar o discurso, ele começa assim… meneia a cabeça e todos os cachinhos tocavam. Se tivesse um sininho em cada cachinho seria uma comunicação geral. E ele começava: “Não, não pode ser!”.

Aquilo já dava um frisson no auditório predisposto. Começou!

Não, não pode ser que, tá, tá”, um declamatório. A gente ia apertar, era zero.

Quando saíamos… “altos píncaros dele”.

Eu não dizia nada, ficava quieto. Isso é demagogia, ele insinuava um estado de espírito. Era uma coisa que partia do peito dele, passava para o do outro.

Bem, então há fatos naturais assim.

Agora, a troca de vontades é um fato sobrenatural, que não se passa assim, mas que é comparável na ordem sobrenatural, ao que é esse na ordem natural. Quer dizer, com poucos argumentos, ou sem argumentos, muda o estado de espírito de um homem.

Eu acho que eu contei o peso de um padre que fez um sermão, e, terminado, veio uma beata falar com ele:

Padre, muito obrigado pelo sermão, que bem fez à minha alma…

O padre pergunta:

Mas, em que parte do sermão que fez tanto bem à sua alma?

Ela diz:

Quando o senhor disse: passemos à quinta parte.

Isso é um colchete apenas. Mas é possível que ele tenha dito com uma forma de calma, ou se fosse uma meditação sobre o Inferno, com uma calma e forma de severidade, disse: “Passemos agora para a quinta parte!”, e isso tenha insinuado alguma coisa no outro, no sentido próprio da palavra.

Mas, troca de vontades, há uma diferença capital com isso, e que é a seguinte:

A troca de vontade é uma experiência interior por onde a pessoa, o outro fez‑nos intuir uma coisa que nós percebemos que é verdadeira e que é ordenada e reta, portanto, um ato de inteligência inteiramente lúcido. Enquanto que do demagogo é pura tapeação.

* Na troca de vontades há algo de Deus que embebe a uma alma e que, com a influência pessoal, passa a embeber a outros

(Sr. –: Não é também que a pessoa dá idéia do gosto delicioso que o outro teria assumindo a vontade dela?)

É, mas começa aí, não é propriamente a vontade dela que a gente assume, mas é assumir um certo bem extrínseco à vontade dela, que na vontade dela nós vemos, de maneira que troca de vontades é mais ou menos como você trazer para dentro de seu quarto uma lamparina com azeite, você trouxe a lamparina, mas veio dentro o azeite.

Também, na troca de vontades é algo de Deus que embebe aquela alma e que, com a influência pessoal daquela alma, passa a nos embeber a nós, esse é o fenômeno sobrenatural. Quer dizer, na troca de vontades, em última análise, é Deus enquanto presente em “A”, que se comunica e torna presente também em “B”.

Agora, o trabalho da pessoa que fez a troca de vontades não é indiferente a isso, porque Deus, presente em “A”, é como a luz presente num vitral. O vitral é ele, e quando entra a luz, através de um vitral, numa catedral, entra a luz do sol e entra a cor do vitral, porque a luz do sol entrou por dentro do vitral.

(Sr. –: Podia repetir.)

Você conhece aquela coisa que nós repetimos sempre aqui, porque está em D. Chautard, “A Alma de Todo Apostolado”.

Conta que um advogado francês foi a Ars, foi ver São João Vianney, voltou e alguém perguntou a ele:

O que você viu em Ars?

Ele disse:

Vi Deus presente num homem.

Bom, ele não viu Deus presente num homem como uma pessoa pode me ver a mim presente nesta sala, porque não é assim que se passa. Como é a presença de Deus num homem? É como a presença do sol num vitral. Você não vê aqui o sol e lá o vitral. Mas o sol atravessa o vitral, ilumina o vitral e, você, com o mesmo olhar vê o vitral e a luz do sol.

Então, as características pessoais do vitral, enquanto iluminadas internamente pela santidade infinita de Deus, que tem analogia e afinidade com o vitral, fazem ver através daquilo a Deus.

* A recusa da pré‑TFP e dos meios católicos à manifestação do “pulchrum” pelo Sr. Dr. Plinio

(Sr. –: Dr. Luizinho outro dia disse que lá por volta de 1928 mais ou menos, havia uma vocação dos mais velhos para a troca de vontades…)

(…)

exatamente em que eu percebi uma recusa gradual do Grupo, dos imponderáveis que a minha pessoa poderia significar.

(Sr. –: Aí seria uma autodefesa do senhor.)

Não. Aí é um fato diferente do primeiro, é uma adaptação intencional. Portanto, não é uma defesa de minha pessoa, é uma defesa da causa, uma adaptação intencional. Não tem, portanto, a natureza que teve aquele primeiro fato, mas teve efeito parecido.

Eu achei curioso, por exemplo, o seguinte:

Outro dia, não sei quem, João ou Fernando, ou alguém da “enjolrolandia”, não sei, veio comentando com muita atração, um artigo que escrevi no “Legionário” quando terminou a Segunda Guerra Mundial. Aquele artigo foi determinante de uma intencional adaptação minha ao modo de ser, um pouco do Grupo, um pouco da Opinião Pública em geral. Talvez tenha sido disso que o Luizinho quis falar, recusando um certo modo de falar um pouco imaginoso, um pouco literário, um pouco esmaltado, como coisa que não tem significação nem conteúdo, e aceitando apenas como válido o raciocínio do tipo matemático.

(Sr. –: Recusa do “pulchrum”.)

Recusa do pulchrum. Nesse artigo, fiz o artigo com intenção de ser pulchrum. Fiz com muito empenho, porque tinha a impressão de que fazendo o artigo bem pulchrum teria mais ressonância, mais repercussão do que não fazendo pulchrum.

E que, com isso, seria possível fazer bem às almas e conseguir mais adesão das pessoas que iam tomar conhecimento desse artigo, que no fundo era uma tomada de posição da pré‑TFP contra o espírito norte‑americano que ia começando a soprar pelo mundo.

Eu verifiquei que o artigo não teve, em nenhum meio católico, ressonância absolutamente nenhuma. E, dentro do Grupo, se tivesse passado um boi na rua e tivesse dado um mugido, teria produzido precisamente o mesmo efeito.

E aí eu cheguei à conclusão de que era preciso, para as mentalidades americanizadas e comercializadas, apresentar um raciocínio mais “matematizado”. E não me enganei em nada, eu acertei. Porque, um tanto de pulchrum que eu não tive tempo ainda de escorraçar do meu modo de falar, esse tanto de pulchrum não causa a menor impressão, a menor impressão, as pessoas não se incomodam com isso.

Se eu mugisse ou ladrasse, era exatamente a mesma coisa. É. Não adianta dizerem que não é, porque é exatamente isto.

* A verdadeira convivência humana tem que ser adornada com “pulchrum”

(Sr. –: Hoje em dia também?)

Eu vejo o meu bom João fazer um esforço hercúleo para levantar isso. Falando com toda franqueza, vejo meu Andreas muito propenso a isso, muito, muito propenso! Eu creio que se eu fosse um puro matemático de raciocínios, eu teria o pesar de ter menos a simpatia de meu Andreas do que tenho.

(Sr. –: Essa fórmula já é pouco matemática.)

É pouco matemática. Eu estava pensando comigo o seguinte:

Essa fórmula, por exemplo, se eu dissesse para o Andreas a coisa claramente: “Você daria menos adesão às nossas teses e teria menos calor com a nossa Causa”, para as pessoas hoje em dia seria absolutamente a mesma fórmula, o mesmo efeito.

Ora, eu acho que o convívio humano, a verdadeira convivência humana, ou é adornada com pulchrum, ou não é convivência, é gado no estábulo.

* “Até o João começar a batalhar para restaurar a Oração da Restauração, ela estava completamente esquecida”

(Sr. –: Esse último artigo da “Folha”, o senhor se perguntou se notariam algo?)

Me perguntei se duas ou três coisas que tem um minimozinho de pulchrum, se notariam. Querem ver a indiferença para com o pulchrum?!

Peguem a Oração da Restauração.

Até o João começar a batalhar para restaurar a Oração da Restauração, ela estava completamente esquecida, como naquelas casas antigas com sótão, o que se guardava no sótão em cima. É isso.

E no momento… Eu ditei a Oração da Restauração no Giordanno, compus ali, mas notei que estava muito bonita. O bonito, como coisa literária não me incomoda. Mas é um belo sacral e que contém, portanto, uma graça, é uma ocasião de graça. Agora, não posso ser indiferente a que se passe por cima de uma ocasião de graça.

Não sei se alguns de vocês estavam presentes quando ditei essa oração. Talvez se lembrem. No momento, quando ditei a oração, não sei a quem — você deve se lembrar —, minutos depois de ditada a Oração, acabou.

Bem, e muitos começaram a guardar no bolso como amuleto, já não liam mais. Depois, sumiu a oração. Se não fosse o João fazer com esta oração como com um navio que está debaixo da água que um guindaste suspende, essa oração estava perfeitamente esquecida, mesmo porque, eu nunca daria um passo para fazer lembrar, isso nunca.

Bem, então, acontece que esse pulchrum diminuiu muito ao longo do tempo, e hoje é uma parte pequena do que foi.

* Tudo numa Civilização Católica deve comunicar uma nota sacral

(Sr. –: Como eram as conversas de 1928? Com era no senhor e como eram nas almas?)

A questão é a seguinte:

As conversas eram em geral…

(…)

o rapaz e disse:

Fulana Borghesi, sicrana Borghesi, duas princesas que conheci no navio quando vinha da Europa e que — até agora estão voltando da Argentina —, quiseram conhecer São Paulo, me telefonaram para visitar São Paulo, você não vai me dizer que não são pessoas bem educadas?!

O nome Borghesi é um nome famoso, título de princesa, todo mundo conhece. Resposta do outro:

Você, se se apresentar de novo em público com princesas cafajestes desse jeito, fique sabendo que eu nunca aparecerei em público com você, porque não quero arrastar por cima de mim a sua vergonha!

Por aí vocês podem ter a idéia de como isto estava decrépito a um grau incrível.

Bem, a troca de vontades estava numa… porque, por detrás da tese sobre a Civilização Cristã de que acabei de falar, havia no fundo uma tese religiosa:

Deus é assim e as coisas que são segundo Deus são assim; [é o] que as conversas traziam.

Quer dizer, qual seria a troca de vontades ali?

A meu ver estava começando a dar‑se e era aceitarem…

(…)

da Civilização Católica a forma de uma xícara, de uma colherzinha, de um telefone, de qualquer coisa, pode comunicar uma nota sacral e deve comunicar.

O homem não vive entre um temporal laico e um religioso sacral, isso é um erro. O temporal é sacral em grau menor, de uma sacralidade tão sobrenatural quanto o espiritual. E, vamos dizer, a forma, o barulho feito pelo motor de um automóvel é dessacralizante. Por exemplo: a tal ponto, que ninguém acompanharia uma missa tendo como ruído não uma música, mas um motor de trator ligado. Quer dizer, aqui entra uma coisa capital que é a visão totalmente sacral de tudo na vida temporal, conduz a essa posição de que falávamos há pouco.

E muita gente tem a mentalidade feita no contrário. Se tal coisa é temporal, pode ter a baixa de nível que for, não tem importância nenhuma, porque é elevado só o que é espiritual. [Vira a fita]

Mas, para essa ordem…

(…)

* A decadência das formas de respeito e das regras antigas de educação, pela coação que faziam às liberdades

não tem graça, mas enfim, ela dizia o seguinte:

Eu morava com ela, de maneira que ela contribuía para minha educação”, ela dizia:

Você não deve fazer tal coisa ou tal outra”, e dizia: “Se fizer e depois vierem as más conseqüências, torça as orelhas, porque não sai sangue”.

Realmente, mexer com essa cartilagem não sai sangue, mas você está vendo bem qual é o gesto do indivíduo que, de desespero torce as próprias orelhas, não é verdade?

Ela usava outra expressão: “Se te acontecer isso, você cai de costas e quebra o nariz”. Bom, é uma expressão ultratruculenta, mas você é livre. O dogma que mandava em tudo era isso: “Você é livre”.

Então, por exemplo, as regras antigas, de educação, iam caindo cada vez mais porque coarctavam as liberdades, iam desaparecendo. Então, quantas formas de respeito desapareciam, não sei quantas! Eram dos professores com os alunos, dos empregados com os patrões, dos filhos com os pais, dos menores com os maiores, do rapaz para com a moça, todas as formas de respeito foram morrendo.

Eu assisti o respeito morrer como uma árvore no outono quando entra no inverno: perde todas as folhas. Isso eu assisti.

Com isso, a mentalidade igualitária deu sinal verde para todo debandamento e para tudo o que constitui medidas reputadas antipáticas.

* Exemplo de uma revolução igualitária que derrubou o Metternich

Ora, não sei se estou claro nisso. Por exemplo, uma coisa que estou me lembrando, a presença do Andreas me sugere esta lembrança:

Eu li várias vidas do Metternich. Numa delas contava que havia uma instituição nos salões de Viena — no tempo ainda anterior ao reinado de Francisco José —, chamavam canapé, um sofá destes… bem, o canapé. Todo o salão da alta nobreza tinha um canapé e, nesse canapé, era um pacto tácito, só sentavam princesas e, quem não fosse princesa não podia sentar‑se no canapé.

Fez‑se uma revolução que derrubou o Metternich, era uma revolução “republicanóide”. Na primeira festa que se realizou depois da revolução, as princesas não sentaram mais no canapé. Ora, aquilo era uma afirmação de diferença de serviços prestados ao país por essas várias famílias, de ilustração, de importância, de brilho dessas várias famílias. Proibido!

Porque tudo caminhou para o debandamento. Era esta posição… eu acho que comunica um gosto tão intenso sustentar diante de alguém esta tese representa uma antipatia tão furibunda, que é quase nevrálgica, é perigoso sustentar isso no meio mais conservador do mundo, perigoso sustentar isso, porque as pessoas se levantam contra nós como cobras, mas como cobras, com ódio!

Esse gosto que está na raiz de todas essas afirmações, de tal maneira tomou conta de todo mundo, que é uma vontade única com a qual o mundo caminha. E tocou nisso há uma ruptura. E, não tocou nisso, no fundo as pessoas se entendem.

E, no fundo, a briga comigo é porque se percebe que eu não estou de acordo com isso. De um modo ou de outro, a pessoa tratando comigo, ainda que não diga nada, percebe que não estou de acordo com isso.

Então, há uma vontade de todo respeito, de toda hierarquia, de toda dignidade, impregnada de bondade, de cortesia, etc., mas existe essa vontade, que é o oposto da vontade de nenhum respeito, nenhuma cortesia, cortesia horizontal, comercial, caro senhor, assim. Mas é luz neon. Sobretudo não o respeito, o sentimento por onde o inferior cheio de confiança, num sentimento de justiça, se aproxima do superior, lhe dá homenagem e pede a proteção dele, isso não tem!

Bem, eu acho que sem uma troca de vontades, não se readquire isso, até o fundo, em toda raiz não se adquire.

Não há muita calúnia em dizer que entre os da TFP existem restos disso, não há muita calúnia.

Por exemplo…

(…)

E o visconde olha para o barão e diz: “Barão eu não sou”. E o barão olha para o plebeu e diz: “Metternich bem dizia que o gênero humano começa a partir do barão”.

Então, é‑se a favor da Revolução Francesa porque cortou a cabeça desses carrascos que levavam a humanidade inteira na humilhação, é isso.

* A Sra. Da. Lucilia prepara as almas através de uma série de “flashes”, para a troca de vontades

(Sr. –: Para haver troca de vontades é preciso extirpar isso, ou se extirpa por…)

A partir do momento em que a pessoa tem o “flash” de como isto é, essas objeções caem e a pessoa sente o aprazível, o deleitável, o honroso que há em respeitar, em honrar, em servir, etc… A troca de vontades muda o panorama interior por uma espécie de “flash”, e faz a pessoa, com facilidade, amar o que detestava.

(Sr. –: Só o “flash”?)

Não. É uma série de “flashes”, uma série de operações “flashosas”, durante muito tempo, provocam isso, estou dando o “flash” como é.

(Sr. –: Sra. Da. Lucilia.)

Ela prepara exatamente para isso. É que era uma coisa que estava muito nela, uma série de coisas que estavam muito nela. Uma era o respeito e a confiança nos superiores, a qualquer título. Quem é superior a qualquer título, ela respeitava e tendia a mitificar.

Para você ter idéia de até que ponto isso acontecia com ela…

[Ela] tinha uma tia que era só seis anos mais velha do que ela, muito amiga dela. Ela tratou essa tia, inclusive quando as duas eram avós, o tempo inteiro de “tia fulana, a senhora”, não de um modo forçado, conversavam como duas amigas, mas ela dizia: “Tia fulana, a senhora…”.

Por quê? Porque sendo tia e um pouquinho mais velha… compreendem, uma senhora de sessenta e outra de sessenta e seis anos não fazem diferença nenhuma. Mas, sendo um certo título, ela se sentia mais unida chamando de senhora e tratando de tia do que tratando de você.

Hoje se diria: “Nós somos amicíssimas, imagine se eu iria tratá‑la de senhora?! Senhora, afasta”. Pelo contrário, no espírito dela une mais. A idéia que ela fazia, por exemplo, dos pais dela, era perfeitamente mitificada e com um respeito, com uma confiança extraordinária. Diretrizes do pai eram palavras líquida; do pai ainda mais do que da mãe.

* A alegria da Sra. Da. Lucilia por ver pessoas que tinham mais do que ela — O gosto da Sra. Da. Lucilia pelo ornado muito enfeitado, ao luxo

Ela não tinha, eu nunca vi nela, o menor sinal de tristeza porque outros tivessem mais. Muitas vezes alegre porque quem tinha mais, tinha adquirido mais ainda, e nunca se lamentando da sua própria situação que era apenas o suficiente para ela ser quem era. Nunca, nunca se lamentando! Contentinha, alegre, satisfeita, era uma estado de espírito que conduz ao oposto do que nós estamos falando.

Depois, gostando de tudo muito ornado, muito enfeitado quando ela podia, até dado ao luxo, e muito luxo se ela podia. Mas com uma alegria de não poder ser, a coisa mais natural do mundo. Essa contentabilidade é o contrário do igualitário inflexível que lhe mandam tributar respeito a alguém, pensa logo: “Que carrasco!”.

Essa então, a troca de vontades é: a comunicação dessas disposições profunda de alma das quais nasce depois a série de conseqüências que estamos examinando. Não sei se está claro?

* A apetência dos homens para a igualdade completa sugerida pelo demônio: um meio para a libertação dos fantasmas que a inveja cria

(Sr. –: A troca de vontades com o demônio, eu imaginava que fosse dada no prosaísmo, mas o ponto que o senhor deu vem em primeiro lugar.)

Vem em primeiro lugar pelo seguinte: ele começa fazendo com que queiramos destruir o que está em cima de nós, mas, depois num segundo movimento a gente quer derrubar inclusive o que está abaixo de nós e querer vulgarizar‑se.

Todo movimento igualitário acaba sendo um movimento que quer estabelecer a liberdade, a igualdade completa para libertar os homens dos fantasmas que a inveja cria, porque isso é uma inveja.

(Sr. –: Identidade com o pecado de Revolução.)

É o próprio. Ele viu quem era Nossa Senhora e detestou por isso, era mais do que ele.

(Sr. –: Poder‑se‑ia dizer que a Sra. Da. Lucilia obtém uma graça por onde as pessoas se sentem propícias a aceitarem a ordem de coisas sacrais, ornadas e hierárquicas com agrado…)

Com apetência, como sendo o clima natural delas. Não é, portanto, resignar‑se, aceitar com apetência como sendo o clima próprio e natural delas.

(Sr. –: Uma insinuação…)

Primeiro a pessoa vê a coisa assim. Vê toda essa relação com outra cor, com outra luz e, ato contínuo, ama como sendo o ambiente próprio à sua natureza.

(Sr. –: Não tem algo nela…)

E por isso é melhor dizer que é uma comunicação da graça do que obtenção da graça, porque aqui vale o vitral com a luz, isto é nos transmitido como existia nela, como ela via.

* A alma do não invejoso é cheia de doçura

(Sr. –: Tenho a impressão que falta algo na linha da intimidade com ela, quando a pessoa se põe diante dela, começa se mexer algo de diferente na pessoa.)

É natural, porque a pessoa quando se aproxima dela toma toda essa doçura que é a atmosfera da alma do não invejoso, alma daquele que ama quem é mais do que ele, é uma alma cheia de doçura. Doçura é isso. Ela tinha muito isso. Ela sabia tornar doce o que era venerável. E a gente se aproximando dela, essa doçura circundava e convidava. Basta ver o Quadrinho para ver isso.

Uma pessoa que a idade tornou venerável, mas é com tal intimidade, que uma mocinha de quinze anos teria prosa com ela se quisesse. E toda prosa.

* A felicidade do católico é ter a Deus como Senhor

(Sr. –: …)

Procura se colocar dentro da mentalidade de um protestante, considerando o modo pelo qual o católico trata o padre, o bispo e o Papa.

O protestante vê no padre, no bispo e no Papa, homens que dizem aos católicos:

Eu tenho o direito de te ensinar, santificar e dirigir espiritualmente, você é feito para ser dirigido, ensinado e santificado por mim. Resultado, você tem que baixar a cabeça, porque quem pensa sou eu, você é um asno, você tem que quebrar a sua vontade, porque quem quer por você, sou eu, você tem que resignar‑se. Você não tem acesso à elevação de sua própria personalidade na ordem sobrenatural, a não ser pelas minhas mãos, porque eu possuo as mãos sagradas que podem te perdoar, que podem te ungir, podem ter dar o Santíssimo Sacramento, você não pode nada disso.

Portanto, eu fruo em relação a você das delícias desta superioridade conferida por Deus, e gozo de ver você aniquilado desta maneira diante de mim”.

Agora, isso é uma mentalidade. É a mentalidade daquele que afirma: “Eu existo por mim e para mim, portanto, não posso ser condicionado a ninguém porque meu interesse é a lei de minha vida. E um outro que me ensine ou santifique, ou me governe, esse outro eu rejeito porque vivo para mim”.

Lembre‑se de uma conversa que tivemos no Ca d’Oro entra em algo dentro disso.

Bem, na mentalidade Católica, entra exatamente o contrário:

Eu não existo para mim. Eu existo para o serviço de Deus infinito, onipotente, etc., e me alegro com isso, porque se eu existisse para mim, eu não saberia fazer de mim mesmo, o que fazer de mim mesmo. Eu seria como uma mula sem cabeça ou como um cachorro sem dono, eu seria um desgraçado. Minha felicidade é de ter este senhor que é Deus e que, diante das limitações de minha inteligência, me ensine; diante das misérias de minha alma, me santifique; diante do incompleto de minha personalidade, me governe. E eu, nisso, encontro meu complemento, mas uma coisa muito melhor do que meu complemento, é a glória d’Ele.

Bem, é uma outra mentalidade, quer dizer, um outro modo de eu me tomar a mim mesmo. Não é verdade?

* A atitude católica da Sra. Da. Lucilia se alegrando pelo bem alheio, em contraste com a posição igualitária do protestante

Agora, vamos mudar completamente de rotação.

A Frãulein, que sempre voltava nessas memórias… foi governanta, qualquer coisa assim, de uma família de Paris de uns condes poloneses riquíssimos. Ela contava que de manhã — o que é muito turismo do tempo da Belle Époque — essa família tinha um espelho tão bonito, que de manhã, ou certa hora do dia, quando os criados abriam as janelas do salão para limpar, etc., tinha gente do lado de fora posta para ver o espelho.

Era uma atração turística para certo gênero de curiosos, etc…

Agora, imagine que alguém estivesse do lado de fora vendo o tal espelho, Da. Lucilia, por exemplo, vendo abrir o espelho. De repente pára um caminhão na casa, enquanto ela olha o espelho, e percebe que estão desembarcando na casa um outro móvel precioso para ser colocado no mesmo salão. Reação normal dela: ficar alegre. “Como vai ficar lindo esse salão! Posso imaginar essa condessa como vai ficar satisfeita! Como é bonito isso!”.

E volta para casa contente, contando como é o móvel, imaginando como fica lindo no salão. Ela ganhou a manhã dela. Esta toma, diante desse fato, a atitude Católica.

Diante do bispo católico gostava que o bispo tivesse mais do que ela. Diante da condessa ou diante da senhora mais rica — essa senhora — gostava de ver que ela ficou mais rica ainda. Imagine a beleza da vida dela.

Imagine a atitude protestante: desembarca mais uma coisa bonita, a protestante diz:

Isso também é demais! Que ela tenha esse espelho, vá lá!, mas que, além desse espelho, ela ainda se tenha comprado tal móvel assim, é uma coisa que verdadeiramente passa da conta, e eu saio daí ofendida e concordando com a tese socialista de que essas coisas precisam ser limitadas!”.

Você dirá:

Mas eu tenho uma prima que é protestante, que está cheia de espelhos e de móveis, e não teria a reação que o senhor está descrevendo.

Eu digo:

Porque são dela. Eu não sei, se ela não tivesse nada, qual seria a reação dela. E se fosse uma reação Católica, eu diria que é uma protestante de espírito católico. Porque a atitude específica do protestante é de negar.

Não sei se responde a sua pergunta?

* Necessariamente o “Grand‑Retour” passa pela troca de vontades

(Sr. –: Em 1928 como se transmitia essa luz?)

Eu peço que Nossa Senhora restaure isso. Você me dirá:

Por que não pediu naquela época?”.

Porque eu não dei importância ao fato, eu não acreditei que aquilo tivesse maior importância. Achei uma coisa esquisita, não entendi o que era. Imaginação não; era porque nunca imaginei que aquilo pudesse dar‑se, toquei o barco.

Foi muitos anos depois que comecei a pensar e entendi o que era.

(Sr. –: Está claro. Mas valeria a pena uma campanha de orações para restaurar o lapso.)

Nesse caso, a ela. Não é? Eu acho que valeria muito a pena, e espero muito que ela dê.

Eu não creio em Grand‑Retour que não passe por aí. Sobretudo se se admite numa ponta de troca de vontades com o demônio, como pode haver um Grand‑Retour que não passe por aí?

Por exemplo: gosto de obedecer. É um gosto de um católico, ele fica contente em obedecer.

Já contei que quando eu soube da infabilidade papal, fiquei entusiasmadíssimo. Não fiquei triste: “Agora tem um velho lá em Roma que, quando disser alguma coisa, sou obrigado a crer… Não!, ele vai me impedir de crer no que estou pensando estupidamente. Isso sim. Percebo que sou capaz de pensar estupidezes, tenho essa experiência, então preciso dele, graças a Deus, aqui apareceu!”.

A Quarta Revolução do demônio levada ao auge, não tolera nem sequer corrimão de escada. E vocês devem ter visto escadas modernas que não têm corrimão. A coisa mais louca que pode haver. Mas porque é uma limitação. “Se quiser, me deixe cair, mas não me ponha um obstáculo que me impeça de cair embaixo se eu quiser”.

—— Mas, caso você se distraia…

—— Me deixe distrair e me deixe que a distração me leva para o abismo, mas não se meta comigo!

Agora, o contrário: o gosto da obediência!, da atenção, de tomar conselho, de se orientar, de agradecer, mas de modo eminente, eminente!

* A Sra. Da. Lucilia tinha a capacidade de ver em tudo a arquetipia e, por detrás, a imagem ou semelhança de Deus

(Sr. –: Nela também um outro ponto: querer bem ao senhor enquanto filho dela, certamente, mas também enquanto aquele que realiza a destruição do demônio igualitário. Precisamos ter um tipo de gostar, de ter simpatia para com o senhor, que possibilite também gostarmos da ordem Católica. Aí também a intercessão dela.)

Está perfeitamente bem.

(…)

(Sr. –: Há qualquer coisa que o vocabulário é insuficiente para exprimir, é algo que está mais além. Isso também [tem] muita relação com o futuro, o papel que o Brasil desempenhará no futuro. Onde repousa esse ponto?)

Eu acho que, pelo que ela disse, não tenho nenhum elemento para afirmar o que você está dizendo, mas pelo que me foi dado observar nela, eu concordo enfaticamente com o que você está dizendo.

Agora, eu acho que ela era dotada da capacidade de ver em tudo, o por onde era uma imagem ou semelhança de Deus, portanto, de ver a arquetipia da coisa e, por detrás da arquetipia, o que tem de divino. E isso ela via mais ou menos em tudo e fazia o tal unum da alma dela, unum que acabei de tentar descrever, falando do respeito, etc., que era a reação dela diante desse unum.

E assim a gente pode perceber em oblíquo como era esse unum no espírito dela. Não sei se está claro?

Mas acho que você tratou com inteira adequação disso.

* Através do sobrenatural, Deus nos faz ver coisas incomparavelmente superiores, do que por meio do natural

(Sr. –: Adquire a fusão com o absoluto?)

É, mas essa coisa que a pessoa adquire é mais algo de Deus que se deixa ver por ela, do que algo dela que é capaz de pescar Deus. Aqui é preciso ver a coisa. Quer dizer, algo de Deus que se deixa ver por ela.

Vamos imaginar, um cego de nascença, tem todo aparelhamento mental para pegar tudo quanto diz respeito a cores, mas é cego, não tem a matéria prima para refletir a respeito de cores. Resultado: se em determinado momento a cegueira dele é levantada e ele pode ver, imediatamente começa funcionar uma série de reflexões a respeito de cores, reflexões adequadas, etc…

(…)

*_*_*_*_*

1 )insinuo fazer entrar; introduzir.