Conversa de Sábado à Noite (Alagoas, 1º andar) – 22/3/1980 – Sábado [AC III - 80/03.12] – p. 12 de 12

Conversa de Sábado à Noite (Alagoas, 1º andar) — 22/3/1980 — Sábado [AC III - 80/03.12]

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A imensa maioria das pessoas acha que a vida lhes foi dada exclusivamente para ser fruída em seu próprio interesse — O jogo que os “fruitivos” fazem em relação aos Mandamentos * A radical diferença que existe entre um ideal e uma causa está em que enquanto o primeiro desperta admiração, o segundo pede o sacrifício * Na “atitude privatista” dos que recusam o verdadeiro ideal católico, chega-se até a “argumentar contra Deus” para conservar o apego * O “privatismo” impede ver o “todo” do Sr. Dr. Plinio e ter uma compreensão da vocação pelo seu cume * O filho da luz que se mete a cuidar muito de seu interesse privado está selado de antemão para a ruína * Quanto mais o indivíduo vai se tornando o centro de gravidade das coisas, esquece da vocação * O gosto de sentir-se a si próprio leva os religiosos aos piores descalabros — Exemplo da Mère Marie de Gonzague * O eremita é uma pessoa destacada por Deus do privatum para o publicum * Os três graus de radicalidade no dar-se e o papel do cálculo ou da intuição na escolha da vocação * Perfil moral da alma verdadeiramente elevada * No romantismo a sensualidade se disfarçava sobre a “afinidade de almas” — Descrição da psicologia romântica * A causa mais profunda do divórcio é a “saciedade” do convívio * Deus completa sua obra na sociedade outorgando carismas especiais àqueles que detêm o princípio de autoridade * O crime capital do aggiornamento foi tentar assassinar o lumen carismático para dessacralizar a sociedade * Discernir o lumen em tudo * O respeito materno com que a Providência trata a alma humana * A auto-suficiência conduz diretamente às torcidas, comparações e invejas da graça fraterna

Realmente, você imagina uma pessoa que tivesse conversando naquelas arcadas, por exemplo. Como isso é freqüente na Europa, naquelas arcadas conversando sobre assuntos da politiquinha de Pavia, por exemplo. Está cheio… e perdem a capacidade de ver as arcadas, porque chega até lá. É um certo estado de espírito.

Enfim, você, meu filho, que vai embarcar tão brevemente, quer me perguntar alguma coisa?

(Sr. Paulo Henrique: Talvez no decorrer da conversa.)

Mas entre mais especialmente com o jogo do que nas outras ocasiões, que eu queria que você saísse inteiramente atendido. Pensar que daqui a uma semana pode estar em Roma, hein? Já é um outro mundo, outras obrigações, outras tarefas, outros encargos, é completamente outra coisa. Enfim, vamos tratar de viver.

(…)

* A imensa maioria das pessoas acha que a vida lhes foi dada exclusivamente para ser fruída em seu próprio interesse — O jogo que os “fruitivos” fazem em relação aos Mandamentos

O ponto de partida da coisa gira em torno da idéia que tem a grande maioria das pessoas de que sua vida lhes foi dada para elas mesmas, para viverem confinadas dentro de seu próprio interesse e sem idéia de causa.

O fato de a pessoa se contentar inteiramente em viver sem ser para uma causa, a tal ponto que a pessoa nem tem idéia do que é uma causa, abre uma impossibilidade de ter uma alta idéia de causa. Porque não tem alta idéia de algo quem não compreende nem sequer esse algo o que é que possa ser!

Por exemplo, um cego não pode ter uma alta idéia do valor de uma cor.

E eu caminho para a seguinte tese, mas precisaria estudar mais, eu tenho a idéia que se pode sustentar em termos de doutrina católica isso, que o raciocínio que o indivíduo faz é esse: “Eu existo! Deus de um modo ou de outro me criou, estou aqui. Agora, uma vez que estou aqui, para a vida ter uma razão de ser é preciso que ela me proporcione das fruições que são próprias a uma vida. Se essas fruições não me forem proporcionadas, eu não vivi”.

Então a razão da vida dele é fruir.

Essa idéia se choca evidentemente com a idéia de amar e servir a Deus sobre todas as coisas, etc.

Mas que há uma equívoco dentro disso que funciona da seguinte maneira: “Não, eu sirvo a Deus não fazendo o que Ele proibiu. Dos mandamentos, três referentes a Deus e sete todo negativos: não pode isso, não pode aquilo… sete recusas. Se eu me abstiver desses sete atos, eu implicitamente terei praticado os três de cima. Portanto, o campo de batalha são só sete atos. Eu posso praticar os mandamentos sem pensar nos três.

Então posso reduzir ao seguinte: se eu for bom para os outros, se não cometer pecado contra os outros, a propósito dos outros, eu terei dado a Deus aquilo que Ele mandou. Fora disso, Ele mesmo já dispôs as coisas que houvesse a fruição. De maneira que eu fruo, porque toda fruição que não é essa, não faz parte do fim da vida”.

Ora, aqui está o erro!

* A radical diferença que existe entre um ideal e uma causa está em que enquanto o primeiro desperta admiração, o segundo pede o sacrifício

Isso é uma coisa. Outra coisa é a idéia de causa.

Causa não é [apenas] um ideal, mas é um ideal posto em luta, em choque, que pode ser visto sofrer danos gravíssimos a favor do qual se trata de batalhar.

(…)

Há uma diferença entre tese ideal e causa. Tese é uma certeza que você tem e demonstra, mas a tese em si não traz consigo nenhum engajamento… [inaudível]. Enquanto tese, tomada em abstrato, não traz nenhum engajamento de dever.

Por exemplo, vamos dizer que você sustente a tese de que o Fernando deve dormir cedo. Uma tese que se pode sustentar com muitas boas razões…

O R me disse que há uma coisa qualquer aqui, occipital, que só funciona bem de horas tantas ou quantas da noite e cuja cooperação é indispensável para a integridade do repouso. É uma secreção, uma coisa qualquer no occipito aqui atrás que funciona só de tantas a tantas da noite e pára de funcionar de madrugada. E é indispensável para a integridade do repouso. De maneira que uma pessoa que queira ter o repouso integral deve fazer um horário — para usar a expressão horrível de hoje — conservador de ir deitar‑se, por exemplo, às onze da noite e, se quiser, levantar às sete da manhã.

(Sr. –: Depende do occipital da pessoa…) [Risos]

O fato concreto é que eu me sentindo inteiramente repousado…

Tenho uma prima que telefonei sobre negócios ontem à noite, mas eu há muito tempo não tenho contato com ela, e ela me disse:

Você sabe como nós somos.

Nós é a família. Ela é viúva, está com as filhas todas casadas, casando os netos, não tem compromisso. Ela disse:

Eu me deito lá pelas quatro da manhã.

Eu disse:

Eu mais ou menos estou tendendo a isso.

E acrescentei:

Mas, olha, o médico me disse assim e é um bom médico — para ver o que ela dizia.

Ela disse:

Você dá o recado meu para ele: ele que vá para o inferno com o occipital dele…

Enfim, cientificamente compreendo que isso possa ser assim e acabou‑se. Mas é essa é uma tese.

Ideal já é uma tese que desperta em você uma série de atitudes, de entusiasmos, de enlevo, etc., e que te convida para uma dedicação. Agora, causa é quando o ideal não convida só para a dedicação, mas para o sacrifício, para a luta.

Então, a veracidade da doutrina católica é uma tese, quer dizer, pode‑se demonstrar. Ela é um ideal. E o ideal não é um ideal, é “o” ideal! Mas ela é uma causa. Quer dizer, nós a devemos ver como continuamente negada, contestada, conspurcada, etc., ou em perigo de o ser. Por causa disso, nossa posição constantemente de luta em defesa dela.

Esse é o traço distintivo da Igreja: é militante.

* Na “atitude privatista” dos que recusam o verdadeiro ideal católico, chega‑se até a “argumentar contra Deus” para conservar o apego

Portanto, isso supõe as seguintes conclusões: a pessoa nasceu não para fruir a não ser no conhecimento dessa causa. Porque o resto é um fruir completamente secundário, tem um pouquinho e está acabado, não vale nada.

Depois é o ideal. Quer dizer, nenhum ideal é digno desse nome enquanto não tenha uma relação que se resolve depois no ideal católico. Encontra seu mais alto gancho no ideal católico.

E é a causa. Quer dizer, bem definida a religião e a Cristandade, tudo corre bem. E mal defendida nada corre bem. Essa é a posição.

E essa atitude privatista: “Não, tal coisa não é pecado, é um direito meu que eu posso eventualmente argüir até contra Deus — porque no fundo chega até lá — ou pelo menos Deus pode desejar muito que eu renuncie a essa coisa, mas Ele não deu ordem. Logo, eu me salvo não dando isso para Ele”, esta posição torna impossível compreender inteiramente qual é o ideal católico, que é o ideal da TFP.

(…)

* O “privatismo” impede ver o “todo” do Sr. Dr. Plinio e ter uma compreensão da vocação pelo seu cume

Eu me referia ao seguinte: uma compreensão deste cume — portanto, não só do que acabo de dizer, mas depois da causa como ela é — muito poucos; uma compreensão do cume com todos os seus corolários no total inteiramente desenvolvidos, ninguém.

(Sr. –: O que nos separa do senhor…)

É esse privatismo que impede de ver o resto.

(…)

é verdade que é algo por onde não querem ver a totalidade, mas esse algo não tem um denominador comum entre eles. É inteiramente pessoal, de cada um.

(Sr. –: Aqueles que têm senso da causa estão mais próximos do senhor.)

Para quem tenha realmente, pode‑se dizer.

Tem muito aí presente a idéia de que é por assim dizer um rapto de Nossa Senhora que tem que se fazer sentir em determinado momento, fazer cessar isto e conquistando‑nos. Essa é outra impressão. Porque esse senso do privado é tão tremendo, que mesmo gente tendo a Bagarre em vista, a pessoa não abre mão.

Eu vejo as perguntas, etc. Acaba sendo a pergunta: “Como é que eu sobrenadarei pessoalmente na Bagarre? O que vai acontecer comigo?”, etc.

O que é uma pergunta legítima, desde que eu me pergunte vendo em mim um soldado da causa. Mas mesmo isso independente da causa não está bem.

(Sr. –: É como com o occipital, o sujeito pensa nele e acaba não descansando.)

Aliás, não falha essa regra: as pessoas que exageram o cuidado com saúde acabam com má saúde.

* O filho da luz que se mete a cuidar muito de seu interesse privado está selado de antemão para a ruína

Tem uma coisa muito engraçada que é a seguinte: a gente poderia se perguntar se o homem que cuida demais de seu interesse privado [não] acaba arruinado. E a resposta é: filho das trevas, não; filho da luz, sim! Filho das trevas que cuida de seu interesse privado de modo frenético, a vida pode lhe pegar outras por disposições da Providência. Mas acontece que filho da luz que se mete muito a cuidar de seu interesse privado está selado de antemão para a ruína.

(…)

* Quanto mais o indivíduo vai se tornando o centro de gravidade das coisas, esquece da vocação

(Sr. –: Por exemplo, as “RCRs” em francês que sepultaram no Êremo de Elias.)

Aquilo é pungente. Eu disse para fazer bem aos que foram responsáveis e que estavam lá.

(Sr. –: Foram salvas pelo Sr. Ivo.)

Vamos dizer, pelas mãos, eu quase diria pelas mãozinhas, do Ivo, aquilo foi posto ali sem demérito. Porque é realmente um trabalhador manual, as coisas não vão além disso. Mas seria muito censurável que um outro vendo isso não dissesse: “Olha, aqui tem mil ‘RCRs´, é bom que Dr. Plinio saiba, avisa a comissão da França, avisa quem quiser dentro da TFP. Quem sabe se valia a pena dar uma comunicação à noite, alguém que queira ver a ‘RCR´ em francês, tem essa edição magnífica, etc.”.

A questão, Paulo Henrique, é toda ela de senso de gravidade. É a pessoa ter a coragem de pôr o seu senso de gravidade na causa. Esse é o problema. Enquanto não for isso, à medida que o indivíduo vai fazendo renúncias, ele vai se agarrando a fórmulas cada vez mais tênues e veladas de coisas em que ele possa continuar a ser o centro de gravidade do que ele faz. E o grande problema é deslocar de dentro de si o seu próprio senso de gravidade.

* O gosto de sentir‑se a si próprio leva os religiosos aos piores descalabros — Exemplo da Mère Marie de Gonzague

(Sr. –: Certos trabalhos que se faz para a causa, mas que tomam o espírito dificultando o prestar atenção em reuniões.)

É característico. Mas no fundo é o gosto do indivíduo sentir‑se a si próprio.

Por causa disso acaba tendo nos religiosos as manifestações as mais desconcertantes. Lembro‑me que por uns dez anos atrás andaram publicando coisas da vida de Santa Terezinha que por ocasião do processo de canonização não foram publicadas. E uma das coisas era ao estilo daquela Mère Marie de Gonzague.

Ela era carmelita, reclusa, portanto de pura clausura, quase uma camaldulense. Ela reunia lá no parlatório gente que vinha contar para ela as novidades sociais e as futricas daquela minúscula nobrezazinha que havia em Lisieux. Na Europa tem uma poeira de minúscula nobreza, minúscula, minúscula, que faz seu papel — fazia, hoje não tem mais — nas várias cidadinhas. E ela antes reunia a comunidade depois para dizer: “Vou lhes contar o que aconteceu com Mlle. de Tal Coisa. Ela ficou noiva de Mons. Tal e ficou em tal situação. Eu então intervi, salvei o tal caso”. Mas não é salvar do pecado, não; é família tal que está sentida com tal família… Futrica de sociedade daquele tempo.

E a comunidade tinha que ouvir.

Quer dizer, é uma coisa… pior do que isso só imoralidade que naquele tempo não era cabível num convento. Mas era só isso; era só a imoralidade que seria pior do que isso.

Mas por quê? É que ela tendo deixado tudo, queria ter esse contacto com esse mundozinho para dizer‑se a si mesma que ela era uma participante desse mundozinho com o qual ela tinha rompido. Mas não era para o mundozinho, era para ter algo dela que era ela. Esse é o ponto.

É o tal centro de gravidade que se trata de pedir a Nossa Senhora que nos roube. É propriamente isso que se trata: pedir a Nossa Senhora que, por uma união com Ela, união que exatamente… a troca de vontade no seu sentido mais profundo da palavra eu entendo assim. É uma coisa por onde esse apego a si próprio deixa de ser o centro da vida e apenas seja Ela.

Agora, enquanto isso existe, na hora de considerar a Bagarre, Exodus, Grand‑Retour, o que for, esse negócio pesa como fator negativo e a pessoa não entende.

* O eremita é uma pessoa destacada por Deus do privatum para o publicum

Por exemplo, uma coisa curiosa que notei nos Êremos logo que eles se constituíam. Mas um eremita no rigor do termo eremita é uma pessoa que se deu a Deus nesse centro de gravidade, e que ficou eremita para conseguir de Deus, a rogos de Maria, que o confisque ali, o torne completamente d’Ela. Então todo o resto — não sair, consagrar‑se só às nossas coisas, obedecer o quidam, etc. — da vida eremítica são circunstâncias favoráveis para se seguir isso. Mas não passa disso: são circunstâncias favoráveis, não são o clou da coisa.

E quando a pessoa é chamada a pertencer a um Êremo, e mais ainda a uma camáldula, ela foi destacada por Deus da condição de uma pessoa privada, foi destacada do privatum para o publicum. Ela se deu à causa, ela passa a ser uma pessoa pública, ter estatuto público nesta ordem de coisas.

E eu sinto — olha que nós temos um opulento número de eremitas — que se dá com essa verdade o que se dá com o negócio do …[inaudível]… através da porta. Algo entendem, mas por mais que se diga não entendem inteiramente no fundo, dessa maneira. E o que eles fazem é restringir o domínio do privatum a uma minúscula ilha. É bem verdade, isso tem seu mérito. Naquela ilha… é Robinson Crusoé e sem Sexta‑Feira, mas é ali! aquele apego do outro mundo!

Isso é mais ainda para camaldulense porque receberam um convite para isso. Deus lhe dá uma promessa implícita na vocação que é: “Se tu aceitares isso, eu falarei contigo como falava como Adão no Paraíso”. É uma analogia desse gênero.

Quer dizer, Ele se comunica a nossa alma, nós temos paz, alegria, etc. Entretanto, fazemos isso não é para ter a paz, alegria, mas é para ter a Ela e por meio d’Ela a Ele.

Mas há mais distância entre o homem que renuncia à ilha e o que mora na ilha, do que entre o homem que renuncia ao mundo para ir para a ilha.

* Os três graus de radicalidade no dar‑se e o papel do cálculo ou da intuição na escolha da vocação

Vamos imaginar três homens:

Um tem o mundo inteiro e renuncia ao mundo inteiro e vai para a ilha de uma camáldula, de um Êremo. Depois esse no Êremo renuncia à sua própria ilha e se dá inteiramente.

Bom, o primeiro lance é menor do que o segundo. É o donjon, é o que quiser. E, pela Bagarre, é o que Nossa Senhora está nos pedindo!

(Sr. –: O centro da gravidade.)

Está no modo de ser do homem que ele se interesse por aquilo que ele conhece. E que aquilo que ele conhece lhe entra pelos cinco sentidos e que constituem um conjunto de dados dentro dos quais ele faz um seletivo. O qual seletivo é a vantagem dele. Isso é …[inaudível]… seguido com comer, respirar ou …[inaudível]. Não depende de um cálculo, não depende de nada disso.

Há certa gente que faz calculadamente o que os outros fazem instintivamente. Mas não é porque eles não têm o espírito; eles têm o espírito e além do mais calculam.

Isso é uma coisa intuitiva que poderia não ser assim se o homem visse a Deus. Mas como ele não vê, ele tende a reduzir o universo dele apenas o que ele percebeu pelos sentidos. E nesse sentido… [inaudível].

* Perfil moral da alma verdadeiramente elevada

Agora, se ele fosse um homem que tivesse a seguinte elevação, ele encontraria um recurso contra esse mal: “A minha vida, a girar em torno de mim, ela tem que girar em torno de minha alma e não de meu corpo. Minha alma é o elemento mais nobre de mim mesmo, Incomparavelmente mais nobre do que meu corpo. Eu devo viver para as necessidades de minha alma. E se eu não sinto as necessidades de minha alma, eu sou um meio morto”.

Ciência, a alma conheceu ciência! E com isso… não é verdade! Se a pessoa atender às necessidades de sua alma, ela não procura uma ciência qualquer, ela procura a verdade e procura a verdade global a respeito do universo.

Alguém dirá: “Não há lugar para o espiritista no mundo”.

Há, enquanto vendo uma verdade global do universo e querendo uma verdade especial sobre um fragmento desse universo relacionada com esse universo. Aí, se a pessoa entender retamente o interesse de sua alma, a sua alma levá‑lo‑á a compreender que ele não é o centro, e [a] fazer essa extrapolação.

* No romantismo a sensualidade se disfarçava sobre a “afinidade de almas” — Descrição da psicologia romântica

Eu observei isso mil, mil e mil vezes porque eu alcancei o tempo — isso me empanturrou a juventude, a infância, depois da juventude, etc., me ficaram muitas reminiscências na cabeça — em que a sensualidade se disfarçava sob aspecto de afinidade de alma. E a afinidade de alma se disfarçava por sua vez de um comprazimento com a face da outra parte. O romantismo propriamente é isso. A heroína romântica raras vezes é elogiada pelo herói romântico ou pelo escritor romântico por outra forma de beleza que não sua face. Mas a face tem que ser arquitetonicamente bela, para que a heroína de romance seja digna do papel, do rôle que lhe é determinado. Essa beleza é tida como um símbolo de certos predicados de alma.

Então a coisa é essa:

Você conheceu uma face bela, essa face bela simboliza para você certas qualidades de alma e certas condições de convivência. Essas condições de convivência satisfazem a sua alma, porque é uma forma de convivência que você quer. Então há uma união de alma produzida com aquela alma que se revelou a você pela beleza dela.

Isso trazia no fundo um apego sensual que é evidente, mas que se disfarçava sob essa forma.

Vou imaginar um nome romântico: Selma. Se alguém aqui tem mãe ou irmã Selma me perdoe, porque não tive a menor intenção, nem sei como são os nomes da mães ou irmãs de quase totalidade dos que estão aqui.

Por exemplo, um escritor romântico poderia dizer: “Selma era encantadora. Ela tinha toda a doçura expressa nos seus olhos cor de não sei o quê, ela tinha, tará tá tá tá!”. E vem a descrição do rosto quase que traço por traço, cada traço ou um conjunto espelhando uma certa mentalidade. E o sujeito queria ser objeto do afeto de uma mentalidade daquelas. E sendo objeto desse afeto, ele estava saciado nas suas apetências de alma. De alma, de alma, de alma mas o resto é: enquanto isso não desse no ato sexual não tinha nada feito.

Por aí vocês percebem que o elemento que movia por trás disso era muito menos ou nem um pouco o elemento alma, era o elemento corpo.

Por curiosidade, vocês alcançaram restos disso?

(Sr. –: Sim, a lata de lixo.)

Estou espantado que tenham encontrado a lata de lixo, porque de tal maneira vi isso morrer que julguei que muitos de vocês — por exemplo, o George e Fernando — nem de longe tivessem pego coisas dessas.

(Sr. –: Vimos em cinema, etc.)

Mas conversas em casa em que se explicava porque é que fulano ficou noivo de fulana e então era encantadora, muito boazinha, com aqueles grandes olhos não sei o quê, ou então voluntariosa com seu feitio feito não sei de que jeito…

Vocês pegaram comentários assim?

(Sr. –: Mas de senhoras.)

Senhoras. Homem aí diz isso, mas com o consenso dos homens que estão ouvindo.

Agora, por detrás disso havia duas coisas:

Primeiro, o desaponto. Isso procuravam ocultar quanto é possível no meu tempo, mas era uma coisa inteiramente evidente.

(Sr. –: Voltando da lua de mel.)

Com cara de que tomou nocaute.

Eu moço via porque todo mundo que conheci do mesmo ambiente que eu era divorcista! Antes e depois do casamento.

* A causa mais profunda do divórcio é a “saciedade” do convívio

Agora, se é divorcista, o que quer dizer ser divorcista?

É a condição de que o número de desilusões é tão freqüente, que a indissolubilidade não se mantém! Se nos anos vinte entre as pessoas educadas em São Paulo a grossa maioria era divorcista, ah! nossa, a pequena burguesia e a média — mais a pequena do que média — é que escoravam o antidivórcio. Ao menos em São Paulo!

Não sei, por exemplo, em Minas Gerais, no Paraná, no Rio de Janeiro, mas São Paulo era isso no duro!

Bem, donde eu era levado a… começava a ver. Tal casal muito bem constituído. Eu ouvia frases dessas: “Eu com meu marido sou felicíssima! Mas nós estamos juntos porque nos sentimos felizes. No dia em que uma das partes se sentir infeliz de um dia para outro acabou!”.

Mas isso quer dizer o seguinte: “Admito francamente a possibilidade de eu me saciar dele, e se me saciar e não houver argumentos substanciosos em cena… eu largo!”.

Agora, antes a questão da causa em cena.

Fica de pé que a alma humana tem desejo de coisas dessas e que nenhum ser humano pode satisfazer. Então, ou Deus construiu mal o ser humano, ou Ele mesmo satisfaz aqueles desejos que Ele deu ao homem! Não tem conversa, desse ponto não se escapa! Mas do que Ele satisfaz, só Ele satisfaz.

(Sr. –: São Paulo no final da vida dizia que não era ele que vivia, mas Cristo que vivia nele.)

É, é isso. É a fórmula da completa renúncia ao tal senso de gravidade.

(…)

* Deus completa sua obra na sociedade outorgando carismas especiais àqueles que detêm o princípio de autoridade

O que vou dizer aqui não posso afirmar, precisa estudar para poder afirmar. E, bem entendido, o meu pensamento é o que for da Igreja a esse respeito, não tenho outro.

Mas acho que quando se estabelece, nessa perspectiva que nós falamos, o princípio de autoridade, quando ela desabrocha inteiramente numa civilização, na alma de um povo, etc., Deus completa essa obra por determinados carismas, por onde os detentores de certas autoridades centrais que de algum modo, ainda que elas são …[inaudível]…, os súditos vêem um certo lumen de Deus neles. Isso é que significa…

(…)

mas é que o detentor de uma autoridade tão quintessenciada de algum modo tem isso. E isto é muito mais verdadeiro para a autoridade espiritual do que para a temporal. De maneira que era antigamente assim com o clero. E todos nós, cem vezes, aproximando‑nos de pessoas eclesiásticas, sentimos isso.

* O crime capital do aggiornamento foi tentar assassinar o lumen carismático para dessacralizar a sociedade

Agora, o aggiornamento foi uma intencional renúncia a isso. E a dessacralização do padre, do bispo de maneira a ele rejeitar esse lumen e apresentar‑se como um outro qualquer. E foi um castigo que sofreram porque o mau uso que eles fariam desse lumen seria cem vezes pior do que esse escândalo que eles deram renunciando ao lumen, assassinando esse lumen.

Mas com as pessoas eclesiásticas a gente por assim dizer discernia neles que ainda que o Direito Canônico excomungasse quem bate num padre, esse homem ficava rompido com Deus. Ou numa freira, esse homem ficava rompido com Deus. Era de não passar pela cabeça.

(…)

isso foi tão longe, que o movimento de alma mais próprio a orientar retamente os espíritos, etc., dentro da ordem temporal, é isso. E também é o que a ordem temporal tem, é o pedúnculo que a unia à ordem espiritual, é a comunicação dessa graça.

* Discernir o lumen em tudo

Nesse sentido eu chego a afirmar… vamos dizer, para descer muito baixo, o ver isso em todas as coisas, de maneira tal que é a impressão que se procura em profundidade no contato com essas coisas quando elas …[inaudível]…, faz muito parte daquele ensinamento que dizia que as pessoas ouvem por detrás da porta sem distinguir claramente.

Essa idéia de que esse lumen se pode discernir em tudo quanto desta maneira toque à instituição, e o procurar isso como sendo o fruto do encontro de todas as coisas…

(Sr. Poli: Quem fazia isso era a Sra. Da. Lucilia.)

Ah, muito. Com uma noção político‑social muito menos acentuada do que nós. Ela tinha muito isso, comunicava muito isso, mas a atenção principal dela ia para flores, raios de sol, para objetos de arte. Não tanto para ambientes assim. Mas que ela via como nós vemos o ambiente aqui …[inaudível].

(Sr. –: O menino de ouro tinha uma noção disso vendo a Rainha Elisabeth.)

Exatamente.

Agora, tanto isso é uma coisa aflitiva, que você percebe que o Charles de Inglaterra não tem. Mas não tem e nem quer ter. Se você oferecesse a ele esse lumen, ele diria: “Não quero, não desejo isso!”.

E você vê, eu vi outro dia na…

(…)

pelo presente, amá‑lo com respeito, uma coisa que é tão ordenativa e aproxima tanto a alma do que ele deve… e ajuda tanto a transferir o centro de gravidade.

(Sr. –: O “lumen” é comunicativo…)

Ele abarca e o indivíduo perde o centro de gravidade. O indivíduo de boa vontade se põe a servir, a admirar. Nada facilita tanto a renúncia do egoísmo…

(…)

único lugar da Europa onde tive uma exclamação:

Ah! mas é tão bonito assim a Saint Chapelle?

Disseram:

Não, essa é a dos servidores, suba para ver em cima.

Eu queria dizer: “Me deixa eu ver a dos servidores que depois eu subo”, mas o fluxo de turistas, e depois… A parte de baixo é linda!

Bom, quando subi em cima disse: “Bem, agora estou liquidado porque isso aqui é uma beleza que excede a minha expectativa”. Foi a única coisa na Europa que excedeu totalmente a minha expectativa. As outras preencheram a minha expectativa, não excederam.

* O respeito materno com que a Providência trata a alma humana

(Sr. –: Os membros do Grupo brilham na face no meio do mundo aí fora.)

É tal qual. E que é a participação, mas que traz como corolário ou como causa que a pessoa se deu.

Agora, acontece que nisso que estou dizendo — é preciso bem verificar na doutrina católica se é possível, eu julgo que é, seria preciso uma justificação teológica — acontece que os tratados de direito natural dizem: “Eu vou justificar o poder público e dar o raciocínio que justifica o poder público”, depois cobra o devotamente ao poder público na base do raciocínio que deu. Assim não vai, porque é muito legítimo, está muito bem demonstrado e deve dar, mas se não há um certo apoio para a vontade, é muito difícil dar.

E esse apoio para a vontade vem, ao meu ver, exatamente disso que se discerne.

Você, por exemplo, viu o rapaz…

(Sr. –: No centro da cidade, rapaz do Grupo.)

E ficou consoladíssimo. Até agora você fala e a gente vê que se nota consolação.

Enfim, meus caros, acontece que o remédio sobe, tenho que dormir.

Eu vou conjugar as duas palavras intencionalmente: o respeito materno com que a Providência, pelas mãos de Nossa Senhora, pelas mãos da Igreja, trata a alma humana, era possível …[inaudível]… da alma humana — não de uma ou outra alma heróica, mas do conjunto das almas humanas — um sacrifício tão grande quanto esta extrapolação …[inaudível]… consolação, uma ajuda, a sensibilidade para isso. Isso a Providência faz exatamente por essa …[inaudível]..

(…)

* A auto‑suficência conduz diretamente às torcidas, comparações e invejas da graça fraterna

Por exemplo, uma coisa que dá diretamente na inveja, diretamente na inveja, depois vai para o pecado contra o Espírito Santo, são as comparações que a auto‑suficiência dão lugar! Porque se eu quero ser auto‑suficiente, é forçoso, eu vou olhar o outro e ver se ele é auto‑suficiente. E daí vêm comparações, porque todo mundo percebe no outro um auto‑suficiente fracassado. Qual de nós fracassou mais do que outro? Lá vem as torcidas, as raivas. Como é que pode não sair inveja logo direto, no primeiro passo?

Tão diferente da alegria de que o outro tem o que eu não tenho, seja o que não sou, brilhe do brilho que não possuo, e isso, aquilo, aquilo outro!

Mas de tal maneira que a pessoa com euforia reconhece no outro uma qualidade que a própria pessoa não tem e diz: “Olha que agradável, fulano tem tal coisa. Isso me faz falta, [mas] como me alegro”.

Essas são as almas que perfumam a vida. Agora esse estilo… [azedo] não vai, não funciona.

Uma pessoa a quem eu mostrei os paramentos de Pio XI, magníficos, a pessoa olhou e disse: “Muito bonitos”, porque viu e não resistiu ao choque do paramento. Logo depois disse: “Ah, em Paris se fabrica muita coisa assim”.

Primeiro: isso não é fabricado. Segundo: em Paris não se produz muita coisa assim. Produziu‑se, não se produzem, nem muita, nem pouca.

Mas é o quê? “Você tem isso, vou arranjar um jeito de diminuir, porque nós temos que estar na mesma linha de auto‑suficiência pelo menos! E eu me sinto não plenamente auto‑suficiente vendo que você tem esses paramentos que eu não tenho. Então vou arranjar um jeito de diminuir seus paramentos.”

(Sr. –: Essa mesma pessoa depois disse para outros que o paramento era tão bonito que era na linha do que ela tinha visto em museus da Europa.)

Mas para mim ele não disse.

Depois, de fato, na Schatzkammer de Viena há coisa incomparavelmente superior. Essa é a realidade. Tem os tecidos do tosão de ouro. Pode imaginar. Aquilo é um lenço de suar o nariz em comparação com os tecidos do tosão de ouro. É a pura verdade. Parece truculento, é truculento para fazer sentir a diferença.

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