Conversa de Sábado à Noite – 1/5/1976 – p. 8 de 8

Conversa de Sábado à Noite — 1/5/1976 — Sábado [AC 8] (HVicente)

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quem compreende que esse universo não é senão uma espécie de sombra ou papel carbono de um outro universo maior que o dirige e que é o universo angélico. E que os princípios da ordem desse universo e da beleza desse universo devem ser estudados mais no universo angélico do que no universo terreno.

Terceiro: Há uma contínua tendência em todas as coisas dentro do universo — sobretudo no homem, naturalmente — há uma tendência do homem a trabalhar sobre os seres inferiores a ele de maneira a comunicar a esses seres uma expressão humana. E há uma tendência dos anjos a trabalharem sobre os homens de maneira a comunicar aos homens uma expressão angélica e um modo de ser angélico.

Exprimo-me melhor: tomem, por exemplo, um jardineiro de primeira ordem, que plante orquídeas. Se ele for um artista, ele terá tendência de produzir espécies de orquídeas que as colocam, tanto quanto possível, na proporção de um homem e humanizando as orquídeas, dando uma expressão quase humana a elas de maneira que o homem as possa compreender perfeitamente.

Isso o anjo faz conosco. Há uma ação angélica em nossas almas que é levada por assim dizer a angelizar-nos. Então há uma espécie de sucção angélica no universo em que tudo vai sendo sugado para o mais maravilhoso e para transcender-se a si próprio, e entrar numa ordem maior do que a nossa. Sem entrar propriamente, mas tomando uma espécie de participação: o homem não fica anjo como o anjo não fica Deus, como o animal não fica homem, como a planta não fica animal etc., mas há uma tendência — pelo princípio que dei hoje à tarde — de cada coisa ir, de algum modo, interpenetrando-se na outra.

E essa presença explica que no Céu nós vamos ser co-reinantes com o anjo, nos sentaremos ao lado de um anjo num trono para reinarmos sobre uma certa parte da criação. Quer dizer, vamos ser “co-anjos”. E, normalmente, nosso Anjo da Guarda será o nosso Anjo co-reinante. Reinaremos ao lado dele e, mais do que príncipe herdeiro que eu posso ver analisando-me a mim, seria meu Anjo da Guarda, meu arquétipo, se eu o conhecesse. Ele trabalha continuamente em mim para eu ser como ele e digno de me sentar ao lado dele. E no extremo oposto tem o demônio [puniente?] que é a caricatura de mim, se eu ceder. Horroroso, infecto, deprimente, vai ser meu carrasco para toda a eternidade.

E as leis todas, por exemplo, sociedade orgânica, social-econômica, arte, civilização etc., no sentido mais profundo se explicam por aí. De maneira que seria preciso encontrar uma palavra, uma fórmula qualquer que fizesse sentir aos homens qual é a forma suma de beleza, ou seja, de interação entre o bem e a verdade — isso é a beleza — qual a forma suma de beleza para a qual em concreto, eles são chamados nessa terra — a tal beleza angélica, esplendorosa, etc. — a realizar, a contemplar e depois realizar no Céu. E fazer compreender que a felicidade na terra não consiste no consumo, mas consiste em estar voltado para este [viver?] do Céu.

Esse é, em todo o seu desdobramento, o princípio que hoje formulei na Reunião de Recortes, de passagem, e que me parece que se nós encontrarmos os termos felizes para exprimir e sobretudo encontrarmos a fórmula que é aquela beleza cuja consideração alivie o homem, não qualquer homem moderno, mas o que há de salvável no homem moderno e que pode ir para o Reino de Maria, e nós termos feito o nosso anúncio profético, termos feito nossa proclamação, o MNF terá entrado diretamente na linha por onde ele deve entrar.

Pode parecer uma utopia, mas é isso ou é nada, porque ou é apresentar isso ou nada… o tema é esse. A tal ponto que uma das comprovantes do que nós afirmávamos é o seguinte: toda a cultura, toda a civilização de fato está na sua ascensão na medida em que ela é tendente a uma perfeição meio mítica e extra-humana. E o fabricar esse tônus, essa espécie de Olimpo meio extra-terreno, meio sobre-humano para a qual todos tendem fez-se concretamente na civilização católica com vistas à realidade que não é um mito mas que são os Anjos. Não é o mito. Nós poderíamos chamar um desses capítulos: “Nosso mito é a verdade.”

Notem bem como é esse mito: para o trabalhador manual, o mito é o burguês; para o burguês o mito é o nobre; para o nobre o mito é o príncipe; para o príncipe o mito…

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quer dizer, não é o mito, é a ordem de horizonte superior em que já aquela inteligência posta em pequeno pela educação e que dá uma abertura de espírito única. E nas literaturas laicas não é isso, mas são os personagens de romance que formam um mundo dentro do qual o leitor de romance vive. Isso é sobretudo sensível no século XIX, aqueles personagens de romance, Colina, não sei mais o que… Delfina, aqueles personagens de Madama Stael.

Peguem aquela litografia do século XIX. Aquilo não [é] inteiramente a realidade, aquela alemanzona e diferente do que era quando está pintada lá, mas ela está mitificada para representar uma realidade mais profunda do que ela mesma. E é a produção dessas visões continuamente um tanto superiores à realidade que marcam a civilização.

Donde os nossos americanos serem loucamente famintos de mitos porque como eles não tem, o ambiente deles não dá, eles são contra-revolucionários, ficam com um fome louca disso.

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coisas que o mundo antigo, mesmo o mundo antigo muito recente fabricava, contém um pouquinho disso e nisso estava o suco delas (o fato de existir deuses para tudo: deus do sol, deus da chuva…).

Outro dia peguei um comentário de um padre — garanto que vocês vão se sentir muito reconciliados com um aspecto do passado que eu não aceitava e que era o seguinte. Vamos dizer uma cena qualquer: Maria Tereza d’Áustria, com Maria Antonieta, com Maria Carolina, rainha de Nápoles e com José II, mas todos menininhos. Bem, sobre uma superfície de mármore bonito, com umas cortinas suntuosas caindo…não muito diferentes do ambiente em que ainda está a duquesa de Nemours. Bem, punham no meio, brincando junto dois ou três cupidos dentro da algazarra. Eu me perguntava: “Mas o que fazem esses entezinhos, nus, bojudos, desordenados, obscenos, impropriados para tudo isso, diante dos príncipes tão bem vestidos, tão compostos fazendo eles a algazarra. Chuta essa canalhada para fora, são uns demoninhos.”

Aí nessa explicação da fotografia, estou vendo pela primeira vez o que é: eles procuravam exprimir através da presença desses cupidos que o lugar era cheio de imponderáveis e que poderiam ter seu símbolo em divindades pagãs transatas, mas era um modo de indicar que espécie de imponderáveis tinha dentro do lugar.

Quer dizer, isso de representar um imponderável por um ser, dá a esse ser outra razão dentro do quadro e outro interesse. Mas, muito mais é a doutrina católica: todo imponderável, sendo uma espécie de realidade superior, por isso meio impalpável, encontra uma relação especial com um anjo. E habitualmente e quando num lugar está um imponderável, nós podemos dizer como provável que o anjo correspondente esteja atuando naquele lugar.

Então, vamos dizer, um imponderável de uma paisagem muito bonita, possivelmente há uma presença angélica se fazendo sentir ali comunicando algo aos homens. Eu acho isso de uma beleza extraordinária.

Eu fiz um teste na própria reunião do MNF. Eu disse o seguinte: tomem a velha fórmula imensamente venerável — eu daria meu sangue por ela, verdadeira, etc. — de que nós devemos desejar a nossa santificação. Substitua essa fórmula por outra igualmente venerável mas que toda a realidade mais profundamente: nós devemos angelizarmos — entendido a angelização como a doutrina católica apresente, quer dizer, eu devo adquirir plena semelhança com o meu Anjo da guarda que está no Céu de quem eu sou uma espécie de símile inferior feito por Deus, mas que ajuda a subir até ele para reinar ao lado dele por toda eternidade. É ou não é verdade que o convite nos parece muito mais atraente do que a simples palavra santificação? Quer dizer, muito mais atraente.

É toda uma espécie de era nova, canticum novum dentro das melodias antigas com toda essa doutrina dos anjos. O MNF, na segunda-feira, deve começar a estudar a ordem angélica com uma lista de tema do MNF junto, aprofundar cada tema do MNF à luz da ordem angélica respectiva para poder apresentar para o público desse tempo de Bagarre assim: o demônio quer empurrar vocês para o Inferno? Está bem. A nossa palavra, o nosso convite é esse: angelizemo-nos, o reino que vem é o reino dos Anjos, nós invocamos anjos e o revide é este, o esplendor angélico, a grandeza angélica, a beleza angélica, a santidade angélica, a perfeição angélica, isso é o que nós devemos dizer.

Eu tenho a impressão que é muito audacioso, mas que é a saída, é a brecha aberta na muralha do adversário, desde que tenhamos o meio de nos exprimirmos bem. Inclusive a saída interna também.

Essa idéia dada a pouco, desse movimento ascensional do universo, o homem procurando dar a fisionomia humana aos seres inanimados, depois o anjo procurando dar a fisionomia angélica ao homem, tudo isto ligado ao Verbo Encarnado que assume todos os vários reinos pela união hipostática e espiritual… ou eu não entendo nada de grandeza ou não há grandeza a não ser essa. A coisa vai por aí.

(Sr.–: O efeito que vai causar eles saberem que os anjos é que movimentam os astros, que a Terra gira em torno do Sol por causa de um anjo que a movimenta…)

É, e não é só um impulsozinho. Há em colégios uns globinhos que giram, a mecânica celeste. A mecânica celeste não é falsa, mas ela é omissa porque o impulsionador…Seria mais ou menos como quem quisesse tratar dos automóveis ocultando que existe gasolina. Então explica que a partir de uma certa coisa que começa a girar, acontece isso, acontece aquilo, coisas que são perfeitíssimas, mas como é que começou a girar?

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precisa ver o que é assiste, não é só presenciar, ele governa. Sairia uma bagunça se os anjos não governassem. E também não é dar um tiro. Muita gente concebe o universo como um tiro dado por Deus e que depois a bala caminha por si, pára no alvo ou morre… Assim Deus: “Fiat…”, isso não é assim não., Os anjos intervém e governam. Se não governassem dava encrenca. É de toute beauté.

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O anjo é um espírito com o qual a gente tem medo de entrar em contato de medo de sair espiritismo. A piedade corrente no fundo é essa. Mas depois é preciso notar o seguinte: ele é um servidor de Nossa Senhora e é pleno do espírito dEla e faz o que Nossa Senhora o manda fazer.

Querem ver esse papel dos anjos como intermediários entre Deus e os homens? Duas coisas que o Evangelho conta: Na Anunciação, a mais alta comunicação que Deus fez com os homens, Ele manda um anjo. O que custaria ao Divino Espírito Santo se comunicar diretamente com Nossa Senhora? Se quisesse era só fazer… Ele manda um anjo.

Outra coisa é quando Nosso Senhor Jesus Cristo, no Horto das Oliveiras, disse que se Ele quisesse, pediria ao Pai Celeste que mandaria legiões de anjos libertá-Lo. Vejam qual é a ordem normal pela qual se passam as coisas no Céu: se na hora de defender o Verbo Encarnado — Ele poderia agir diretamente, dar uma ordem — Ele manda os anjos defendê-Lo. Ele não intervém. Na Agonia, trazendo o cálice, é uma anjo que vem. E quando Ele diz “Ego sum” e o pessoal caiu no chão, a meu ver foi pelo menos um anjo que reforçou e deu matiz à voz dEle para produzir aquele efeito.

Quer dizer, se a gente começa aprofundar essas coisas…

Moisés e os Dez Mandamentos. Creio que há unanimidade entre os teólogos que foi um anjo que apareceu a Moisés, que falou criando no homem a ilusão de que era Deus, refletindo a Deus — a expressão não poderia ser mais feliz.

(Sr.–: Mas no Batismo de Nosso Senhor Jesus Cristo e no Tabor acho que foi Deus quem falou diretamente.)

No Batismo, acho que sim. Também sou propenso quanto ao monte Tabor. “Sou propenso…”: É preciso procurar os exegetas. Ali como foi uma transparência na Humanidade dEle, da natureza divina hipostaticamente unida, não vejo como associar um anjo a isso, como também no Batismo não me parece. Seria preciso ver.

Um problema que se poderia pôr: se um de nós com o fervor de Nossa Senhora ir para o Céu, estando sentado ao lado do seu anjo co-reinante, se nós vamos ter um papel especial no atormentar por toda a eternidade o demônio que quis nos perder. É uma pergunta muito bonita.

Também quebra uma coisa que fica meio insinuada que os bem-aventurados tem uma espécie de horror do Inferno e que preferem esquecer que o Inferno existe: “Deus foi muito duro ali, é justo, etc., mas é melhor nem olhar para esse lado de Deus e tratar de levar uma vida suportável no Céu”, que o Céu não seria inteiramente feliz se eles tomassem um inteiro conhecimento contínuo de que existe Inferno. Acho que todos pegaram essa insinuação flutuando nas aulas de catecismo.

Isso assim não pode ser! Se Deus faz tudo por meio de criaturas, Ela não punirá por meio de suas criaturas? São Miguel Arcanjo não estará por toda eternidade atormentando Satanás? O esmagar, Nossa Senhora a cabeça da serpente não será uma coisa que é por toda a eternidade? Eu sem fazer uma afirmação, mostro que são aspectos não tratados, esquivados e às vezes insinuada à la “Le Monde”… uma posição errada, não aceitável.

(Sr.–: Não teremos portanto uma ligação direta com Nossa Senhora? Nossa devoção a Ela?)

Eu acho que Nossa Senhora age muitíssimo por meio dos anjos também. A minha resposta é hesitante porque o quanto nós devemos ser audazes em perguntar, nós devemos ser cautos em responder, se não, nós quebramos as pernas. É preciso ver o que a doutrina católica o que diz. Ligação direta, vamos ter, mas note o seguinte: é que na doutrina do Céu, como a Igreja apresenta a ligação mais íntima não é a direta, é a que se faz pelo medianeiro mais possante… isso pega as noções da terra e põe de perna para o ar, não?

Vejam quanto coisa se põe em ordem. É ou não é verdade que quase todos na sala tinham idéia de que a plena figura da TFP é na terra, morre, nós no incorporamos anonimamente na legião dos bem-aventurados. Não é. A plena faceta da TFP é o Céu.

Eu me lembro que antes de eu conhecer a devoção a Nossa Senhora por São Luís Grignion de Montfort, no Tratado, às vezes me passava pela cabeça o Céu e eu pensava o seguinte: Bem, os livros de piedade falam da corte celeste, etc., e então é a corte de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas, é ali. Ainda que me digam que é menos e ainda que se dig que no Céu deve-se desejar o mais possível, eu para mim quero aquilo.

Quando eu li o Tratado… Estava tudo explicado, eu queria sem me dar conta, mas, é o ponto, é onde está, no sulco central de todas as graças é ali.

(…)

não haverá gregos, etc., etc., não me lembro bem das palavras, eu acho que não há critério de classificação. Não vai ser classificado, a França, por exemplo, vai ficar acima da Tanzânia no Céu, isso não, portanto haver o Céu dos franceses distinto do Céu dos líbios, isso não.

Mas assim como as ordens religiosas se prolongam no Céu, as nações não são famílias espirituais, um modo de amar a Deus, elas não serão escola de amor de Deus que, enquanto tais se prolongam no Céu? Eu seria propenso a dizer que sim. Sempre com a condição de me sujeitar ao que a Igreja disse ou disser.

O que há de muito bonito e que se desvenda nesse modo de considerar o MNF é o Concílio post-MNF não ser apenas o Concílio da condenação do II, mas ser o Concílio dos Anjos. Dos anjos e Nossa Senhora, porque não se pode falar dos anjos sem falar da Rainha deles. Por exemplo, …

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TFP. Seria estupendo.

(Sr.–: Como seria esse Concílio dos Anjos?)

Quer dizer, toda a doutrina que eu esta dando a pouco, do MNF, abre um horizonte para o que seria estabelecer com base na Revelação e na razão como é a ordem angélica e em que sentido ela é um modelo para a ordem terrena.

(Sr.–: Santa Madalena de Pazzi diz que em certo sentido, os homens são superiores aos anjos porque tivemos a Redenção e eles não.)

Isto é, os homens inferiores naturalmente no plano sobrenatural seriam superiores, é isto? Acidentalmente. É evidente que isso pressuposto homens que se angelizaram.

Vocês querem ver como da doutrina dos anjos a gente localiza problemas mais ou menos insondáveis e inúmeros? Eu tinha sempre um problema na cabeça que se resolveria: dir-se-ia que a luta entre os anjos bons e os anjos maus foi incomparavelmente mais importante e maior do que a Revolução e a Contra-Revolução; que aquela foi a briga dos Lordes e que aqui é uma querela de casa de ovos da Câmara dos Comuns. Eu sei que a expressão é muito dura, mas dir-se-ia isto. Ora, não era o que me parecia sentir. Parecia-me sentir exatamente que aqui era um acontecimento que tinha proporção com aquele e que por alguns lados muito importantes. Era mais importante do que aquilo. Não era pura e simplesmente mais importante, mas por algum lado era mais importante. Mas eu não encontrava fundamento nenhum para essa impressão.

Agora, com a tese de Santa Madalena de Pazzi, vê-se que as coisas se situam perfeitamente. A grande luta dos bons e dos maus não se deu principalmente no Céu, porque dentro do plano da criação, desta atenção, eles são maiores segundo a criação e nós somos maiores segundo a Redenção. E por causa dito a repetição da luta aqui tem por alguns lados mais grandeza do que a luta primeira. Isso explica uma penca de coisas.

Não sei se para vocês resulta meio surpreendente que o MNF seja, portanto, antes de tudo uma apresentação da ordem angélica, mas a mim parece que seria propriamente a saída.

Agora, seria preciso encontrar certas coisas que sem o recurso de Nossa Senhora eu não sinto em mim nem capacidade, nem força para fazer. Por exemplo, se não tivesse havido Fra Angélico, toda a Igreja Católica ficaria sem ter um aspecto — não compreenderia — da natureza angélica, porque só com Santo Tomás não dava para realizar a coisa, era preciso Fra Angélico.

Uma coisa muito bonita seria tomar duas versões de anjos que nasceram na Igreja: os anjos hieráticos que surgiram na Igreja do Oriente antes do Cisma — aqueles anjos parados… e os anjos todos feitos de plasticidade, de movimento, flexíveis e diáfanos do Beato Angélico. Bem, seria preciso acrescentar uma qualquer coisa a isto que desse a visão inteiramente ultramontana do anjo, de maneira que um ultramontano olhando para o anjo diria: “É isto!” Pensar no semblante de São Miguel esmagando o demônio ou de São Gabriel convidando Nossa Senhora na Anunciação.

Precisaria um senso artístico, um tino literário, ou uma inspiração para dizer num determinado momento uma certa coisa que fossem os acordes fundamentais dessa nova melodia e isso e não sei fazer. Possivelmente Nossa Senhora chamará alguém dentro do Grupo para fazer isso, sobretudo os mais musicais… Os mais poéticos, eu não sou isso.

Seria uma coisa… eu hesito naturalmente, mas eu quero imaginar o seguinte: A Revolução procurou denegrir certos aspectos de Deus e, portanto, certos aspectos dos Anjos, sobretudo, certos aspectos da Igreja e da Civilização Cristã apresentando a tese de que tudo quanto é grande é desdenhoso; tudo quanto é justo é inexorável, implacável, fazendo uma espécie de legenda negra ao longo de certas perfeições morais. Era preciso que a ação angélica mostrasse essas perfeições morais de um modo tão alto e tão puro que se compreendesse não só que essa legenda negra é falsa, mas como entra em harmonia com o outro sem deixar de ser o que é.

Então, por exemplo, a majestade de Deus — falou-se há pouco do Tabor. Ora nenhum pintor ousou jamais pintar o Tabor. Pintam a Ascensão, pintam outras coisas mas não me consta que tenham pintado o Tabor porque realmente não vai… Mas, por assim dizer uma taborização desses valores, por exemplo, no Tabor, Nosso Senhor Jesus Cristo se apresentou grande, grande, grande… seria preciso representar essa grandeza de tal maneira que o indivíduo sentido-a por extenso, quando alguém viesse dizer que faltava humildade, ele reagiria: “Você é gagá? Olha que eu te agarro… porque você é nocivo, você é um criminoso.”

Também a vingança, o “Senhor Deus das vinganças”, seria preciso que a vingança fosse apresentada de tal maneira que não viesse a idéia de que falta misericórdia e se viesse alguém sussurrar que falta misericórdia, a pessoa deveria dizer: “Víbora! O que é isso?”

Agora como apresentar isto? Para apresentar a justiça e a misericórdia ? Bem, seria um erro apresentar uma ultra-justiça na sua maior ênfase e depois uma ultra-misericórdia na sua maior ênfase, que é a solução renascentista. Seria preciso apresentar uma síntese mais alto do que a justiça e a misericórdia e na qual estas se contém. E que era uma idéia transcendente de santidade contendo como um cone, todas as virtudes. Não são todas as virtudes contidas distintas, mas uma espécie de cone. Isso é que seria preciso alguém imaginar e depois alguém saber exprimir, inclusive musicar.

(Sr.–: O senhor nunca conseguiu explicitar algo disso?)

Não, depois também eu comecei a me aplicar nisso depois que começamos a tratar sobre os anjos em que a vontade de fazer as reuniões do MNF me devora, então eu comecei a pensar mais nisso.

[Um dos presentes disse que existe uma igreja no Rio onde está representado o Tabor, num vitral]

Uma idéia inteligente: representar o Tabor, ainda é melhor em vitral. Só pode ser assim.

Então, continuamente, tratava-se de encontrar, por exemplo, em música. A música que nós temos é muito analítica, composta de sons distintos. No piano é quase aflitivamente analítica, cada som tem sua individualidade — é uma forma de perfeição, eu estou longe de censurar. Mas eu gostaria de imaginar um tipo de som que contivesse muitos sons e que pudesse a partir disto ser musicado. Então, por exemplo, uma música de sons de gongo, um tom de gongo em vários tons sintetizados ali dentro, embora o gongo tenha um nota, como um sino tem também.

Com também as cores. O branco, a rodinha de cores faz o branco, eu sei disso. Eu queria uma outra coisa que a outro título fosse a síntese das várias cores em que olhando a coisa a gente tivesse a noção de várias presenças distintas dentro de uma só coisa.

Quem realizou isso magnificamente é o vitral medieval. E aquelas são cores diferentes, mas o que fica na mente do homem é uma superposição de todos os coloridos porque o espírito humano faz uma síntese ali no vitral e que é um unum daquilo tudo e que não é o vidro branco.

Em tom muito modesto, tive uma conversa com X, que foi visitar nossa sede e vendo os vitrais da janela da capela, me disse: “Você precisava mandar pôr em ordem esses vitrais porque tem tons diferentes porque com certeza na hora de montar montaram de forma desigual.”

Não entendeu nada. Eu respondi: “Não, isso é feito assim para criar uma imagem ótica, mais mental do que ótica da superposição dessas cores que está aqui.” Essa pessoa me disse: “Não é isso… Você está dando uma explicação para me dar na cabeça e uma explicação filosófica para me achatar.”

Eu disse: “Foi encontrado na Bélgica, por grandes artistas… foi comprado das freiras do Des Ciseaux, quando demoliram, elas mandaram vir da Bélgica.” Resposta: “Ah, aquelas freiras…”

O bonito daqueles vitrais é uma certa síntese que fica na mente, pouco na vista e muito na mente e isso me leva a achar que seria uma superposição de som ou superposição de cores que mais impressionaria a mente do que a vista, para produzir mais uma imagem mental do que visual.

Vou dar um outro exemplo. Duas pessoas que voltaram de Paris, me contaram que visitaram o quarto de Maria Antonieta que foi reconstituído, parece que eram duzentos ou trezentos e tantos matizes diferentes no estilo de cores no quarto dela. Foi reconstituído historicamente com aquela documentação européia que não escapa… Mandaram fabricar em Lyon. É evidente que o que fica no fundo é um matiz único, uma cor única que a mente compõe com base em vários matizes e que seria diferente de um quarto azul e outro que explora um contraste harmonicamente de duas cores.

Eu tenho a impressão de que a arte do Reino de Maria — por vindicta contra o materialismo que a arte caiu — seria uma arte muito mais feita de insinuações para o espírito do que coisas propriamente ouvidas ou degustadas e, portanto, mais próxima dos anjos. Muito à la francês, mas deixando a França longe.

(Sr.–: Ver essa síntese numa alma é mais fácil do que num vitral.)

Isso não tem dúvida nenhuma. Há homens monocolores e homens policolores. Um homem monocolor é Bismarck. Um policolor é Francisco José, eminentemente policolor, cintilantemente policolor. Aliás, ele nem cintila, as cores moram nele num estudo de outono, é dos tais homens que atingissem esplendor no outono e não na primavera, no estado de outono todas se confundem e se interpenetram discretamente, mas é colorido Francisco José que em comparação com aquela…

(…)

do Bismarck é nada.

Eu seria muito mais favorável às figuras policolores em vitrais do que as figuras monocolores. O século XIX produziu muitas pessoas multicolores.

Eu vou com aquele tipo ou não vou com aquele tipo é uma cor de síntese que ele tem que a gente quer ou não quer. Nesse sentido, os anjos são eminentemente policolores, bem como os anjos de Fra Angélico.. Todos aqueles anjos de Fra Angélico… Ele pões um com uma túnica de uma cor — aqueles quatro anjos cujos quadros estão na sala do Reino de Maria.

Bem, examina aquilo, se desprende de cada um daqueles anjos um colorido mental que não é a soma dos coloridos que estão representados no quadro.

Todo flash, ainda que seja sobre uma matéria dada, é policolor e daí para fora…

Preciso me retirar…

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