Reunião
normal (Auditório da Santa Sabedoria) – 11/12/1968 –
4ª-feira – p.
Reunião Normal (Auditório da Santa Sabedoria) — 11/12/1968 — 4ª-feira
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A IV Revolução: Comunismo, marcusianismo e o Segredo de Maria
Vamos entrar na matéria para poder dar um pequeno aperçue de conjunto dos vários temas da agenda que me foi dada aqui, que aliás é uma agenda bem vasta.
Eu naturalmente vou dar de um modo ultra resumido porque estes temas todos já foram comentados aqui em Reuniões de Recortes.
Nós não guardamos as fitas das Reuniões de Recortes, não é Edwaldo?
(Dr. Edwaldo Marques: Em geral, não, Dr. Plinio.)
Mas enfim, procurando condensar o mais possível as coisas, nós poderíamos dizer o seguinte: que a respeito de todos os acontecimentos contemporâneos a pergunta mais interessante naturalmente é saber em que medida elas aproximam ou distanciam a “Bagarre” e em que medida elas favorecem ou prejudicam a Revolução e a Contra Revolução.
As negociações no Vietnã evidentemente foram orientadas no sentido de produzir, de induzir o Vietnã do Sul a ter um governo que seja de coligação entre autoridades comunistas e não-comunistas, ocasionando uma reiterada dos americanos do norte e a constituição de uma posição de pseudo-equilíbrio: então, a paz no Vietcong e um governo de coligação no Vietnã do Sul, ou reunificar todo o Vietnã, Vietcong e Vietnã do Sul num governo só, que é o governo de coligação de comunistas e não-comunistas.
Agora, acontece que nesse governo de coligação, se os americanos do norte se retiram, esta situação de coligação fica encostada numa China que, em relação a eles, é muito poderosa, aos vietnamitas, é muito poderosa, a uma Rússia que tem um acesso marítimo pelo Oceano Pacífico relativamente fácil em relação ao Vietnã do Sul, e com uma América do Norte que se retira do Vietnã do Sul exausta e desmoralizada, e portanto na incapacidade de voltar.
Quer dizer, fica uma situação que pode resvalar para a bolchevização completa a qualquer momento.
Agora, como nós sabemos que esta é a intenção deles e nós sabemos que não há na História o exemplo de um só país que tenha consentido numa coligação de comunistas com anticomunistas em que depois os comunistas não tenham tragado os anticomunistas, é evidente que essa solução para a qual se caminha representa um primeiro passo para a queda do regime de propriedade privada e de livre iniciativa, enfim no Vietnã do Sul.
Agora, nós poderíamos nos perguntar quais são as repercussões que, por sua vez, essa queda pode ter. As repercussões são de três ordens.
Uma no Oriente, outra nos próprios Estados Unidos, e outra no plano mundial.
No Oriente, nós temos a completa desmoralização da posição anticomunista Se os norte-americanos se retiram do Vietnã, de fato não é só do Vietnã que eles se retiram, eles confessam a impossibilidade de sustentar um regime não-comunista em qualquer outro país da região. Porque se eles se manifestam incapazes de manter um regímen não-comunista no Vietnã, eles se confessam incapazes de intervir na Tailândia ou em qualquer outro lugar para manter as instituições atuais.
Quer dizer, essas instituições passarão a viver à mercê do comunismo, ou seja, completamente desmoralizadas.
Então, toda aquela parte da Indochina, inclusive Singapura que tem uma importância estratégica tão grande, toda essa parte fica desde já à mercê do comunismo, sofrendo a pressão do comunismo e desfraldando a bandeira comunista, no momento em que convém aos comunistas que isto aconteça, à vista de certas circunstâncias internacionais, etc.
Mas há mais: é que, bem para o sul, fica a Austrália, e a Austrália, como os senhores sabem, é fiel ao mundo ocidental, e lá, naquelas paragens, representa um certo poder. Mas ao que é que fica reduzida a Austrália, se os Estados Unidos declaram que se retiram? A própria Austrália fica completamente achincalhada, ela fica reduzida a zero.
Quer dizer, as nações de toda a Oceania e do Sudeste da Ásia ficam como ficaria a América do Sul se, por exemplo, os comunistas tomassem conta da Venezuela e das Guianas e os norte-americanos declarassem que não têm força para intervir na América do Sul.
Com uma situação pior ainda, porque a China e a Rússia estão muito mais longe do Brasil do que estão longe daquela zona. É portanto uma verdadeira catástrofe, uma verdadeira hecatombe naquela zona que se delineia.
Essa hecatombe é agravada ainda, analisando a política naquela zona, por três circunstâncias.
Em primeiro lugar que, por causa da posição neo-imperialista assumida pela Rússia na Europa, está havendo um distanciamento entre a Rússia e os Estados Unidos, e certos diplomatas estão propondo como corolário uma aproximação entre a China e os Estados Unidos, uma vez que a China estaria brigada com a Rússia. E os jornais já deram a notícia de que a China exigirá como condição de uma aproximação com os Estados Unidos que os Estados Unidos se desinteressem da defesa da Ilha de Formosa.
Quer dizer, fica criada uma possibilidade diplomática que, só ela, já enfraquece um tanto a posição do Chian Kai Cheg.
E, por outro lado, veio a notícia de uma infiltração de guerrilheiros comunistas na Coréia do Sul; outro fato que desmoraliza dos Estados Unidos e que também lança uma espécie de hipoteca contra outro baluarte anticomunista do litoral asiático do Pacífico que é a Coréia do Sul.
Então, ao mesmo tempo que tudo isto acontece, a Coréia do Sul e também a Formosa estremecem.
Isto tudo equivale a dizer que fica apenas como potência o Japão: grande potência econômica, é verdade, dizem todos que potência militar muito depauperada pela proibição que os americanos fizeram de os japoneses se armarem.
Exceto o Japão, que fica isolado no Oceano Pacífico, o litoral oriental do Oceano Pacífico fica em mãos do comunismo. Isto é um primeiro dado.
Agora, esse dado, por sua vez se reúne a um outro: é que os senhores viram que os ingleses se retiraram completamente do Oceano Índico, quer dizer, de toda aquela extensão territorial que vai desde o Vietnã e da Indochina, ao longo do sul da Ásia, até a costa oriental da África, e que os americanos não preencheram o vácuo militar criado pela saída dos ingleses.
E, pelo contrário, retirando-se da Indochina, eles deixam mais claro do que nunca que eles não têm condições de preencher esse vácuo.
Os senhores estão vendo portanto que o domínio dos mares, em toda essa zona, está aberto para a Rússia descer quando lhe aprouver.
Agora, como sopra uma campanha pró-Rússia em todo o mundo maometano e essas nações são nações quase todas maometanas, a Índia não é, mas o Paquistão o é, há maometanos em grande quantidade na Oceania, o Irã é maometano, a Arábia é maometana, sopra da República Árabe Unida, do Cairo, de Damasco uma campanha muito favorável ao comunismo, os senhores estão vendo que todas aquelas paragens não ficam dominadas pelo comunismo, mas ficam colocadas sob uma espécie de bafo do comunismo, sob uma espécie de calor do comunismo, que é uma coisa que fica como um fruto que está quase podre, para cair da árvore de um momento para outro. Sobretudo se um vendaval soprar, a fruta cai.
Agora, os comentadores militares acentuam muito a importância que tem a penetração da esquadra russa no Mar Mediterrâneo.
Com o pretexto da luta ente árabes e israelenses, os russos já no ano passado, os senhores estão lembrados, penetraram largamente no Mediterrâneo, que era um mar fechado para eles.
Mas não é só dizer que eles puseram uma marinha poderosa, mas de lá saiu outra marinha poderosa, porque a Inglaterra se retirou do Mediterrâneo. E os russos não têm apenas uma marinha boiando pelo Mediterrâneo, mas eles têm bases no Egito, na Argélia, na Síria, onde técnicos deles dirigem os portos, as operações navais, as marinhas, etc., de nações que são cada vez mais títeres deles.
Então os senhores estão vendo o seguinte: a partir do momento em que a esquadra russa, em que haja operações militares, a esquadra russa tem duas possibilidades: ela tem uma possibilidade de atacar o sul da Europa e as nações européias não têm meios de se defender.
Ela tem a possibilidade de atacar o estreito de Suez e de descer pelo Mar Vermelho; as nações do sul da Ásia não têm meios de se defender. A Inglaterra não fará nada.
Os Estados Unidos, no estado de espírito em que eles estão, com a retirada do Vietnã, eles terão meios para defender a Europa?
Os senhores podem julgar pala infantilidade que a reação que os Estados Unidos fizeram esta semana contra a entrada da esquadra russa no Mediterrâneo. Eles mandaram uma esquadra norte-americana entrar no Mar Negro.
Alguém dirá: “é bem gostoso que os russos sintam a presença da esquadra americana no Mar Negro”.
Eu digo: “É verdade e não passa do gostoso. Porque como eles não têm base nenhuma no Mar Negro, eles não podem se sustentar ali por muito tempo; pelo contrário, os russos têm bases grandes no Mediterrâneo, enormes, e têm possibilidades de sustenação colossal. O resultado é que isso é um revide que é mais ou menos como puxar a língua diante do inimigo. É uma coisa que é melhor fazer do que não fazer, mas que a gente não pode achar que tem uma utilidade militar ponderável, apreciável”.
Há portanto uma espécie de retração da influência americana e uma espécie de colocação ou de postura do mundo não comunista sob a garra da Rússia, em que o mundo não-comunista dessas regiões fica mais ou menos como o ratinho nas mãos do gato: o gato fica ali olhando; o ratinho vai brincando um pouco, mas se distanciar, o gato pula em cima e devora. Esta é a coisa.
E então o resultado é que temos com isto um prodigioso desenvolvimento da influência comunista no mundo.
Eu só vejo uma possibilidade para os vietnamitas reagirem: seria ele dizerem: nós não consentimos nisto e os norte-americanos, se nos deixarem, nós transformaremos Saigon numa nova Dien-Bien-Phu, numa Tróia, na qual nós morreremos queimados, mas o mundo inteiro verá o crime que foi feito.
Mas os senhores sabem que, entre mil outras razões para que isto não aconteça, há uma razão tremenda, é que a parte mais ativa dessa reação é a parte católica, e a parte católica é possantemente influenciada…
(…)
… entregar. De maneira que há mil razões para recear que isto de fato dê numa entrega.
Agora, ao mesmo tempo que nós vemos isto, nós devemos analisar a repercussão desses acontecimentos nos Estados Unidos.
A repercussão desses acontecimentos eu acho que se deve dizer claramente que foi deplorável. Todos os indícios eram de que areação norte-americana contra o comunismo fosse mais forte do que ela se mostrou na eleição do Nixon.
É verdade que o Nixon ganhou as eleições; é verdade que a maioria dele é maior do que teve Kennedy; é verdade que, se nós somarmos a maioria dele e a de Wallace, que era um candidato direitista, essa maioria fica ainda mais sensível.
Agora, se nós desviarmos a nossa atenção daí para a Europa, nós podemos dizer que a entrada na Rússia na Checoslováquia produziu na Europa uma espécie de pânico, mas que, nesse pânico, houve duas espécies de sintomas: o medo e a vontade de lutar.
E a gente vê que se a vontade de lutar foi ponderável, entretanto o medo foi muito ponderável também.
Quer dizer, nós temos uma Europa desmilingüida. Então, uma Ásia em deliqüescência, uma Europa desmilingüida, quer dizer, o quadro é um quadro sombrio; é de fato uma situação crepuscular, em que as sombras progridem de todos os lados.
Agora, a gente pode fazer uma pergunta quanto à América Latina e para estreitar relações, numa emergência dada com tanta fraqueza da América do Norte, com a presença do Fidel Castro, com a presença do Jagan na Guiana Inglesa, com a presença do Frei no Chile, com a presença de uma Via Láctea de Hélderes Câmaras espalhados pelo Continente, quais são as possibilidades da América do Sul? São possibilidades enfraquecidas.
Agora, este comentário é um comentário que se faz no plano internacional — plano internacional eu digo mal, eu digo no plano da política internacional — há um outro comentário que se pode fazer, fora do plano das relações entre nações, mas é um plano internacional sem fronteiras, é o plano ideológico.
Aí nós temos que analisar o que acontece nos três fronts: front ideológico católico, front ideológico comunista e front ideológico burguês.
Eu começo por notar o seguinte: o front ideológico católico burguês como ideologia está quase desaparecido, não há mais uma corrente de opinião propriamente ideológica fora da Igreja que sustente o mundo atual.
Os senhores viram com o exemplo deste artigo: este artigo aqui não faz senão justificar uma instituição que está em vigor, este artigo justifica o Código Civil justifica uma coisa que existe no Brasil desde que o Brasil é Brasil, que é o direito de herança, em última análise é o que este artigo justifica.
Isso causa um repelão, os senhores podem perceber como a ideologia burguesa morreu entre os burgueses, os burgueses não são mais uma ideologia, eles são uma rotina, eles são uma ordem de coisas existente de fato, mas eles não são mais uma ideologia, a ideologia não existe mais.
Então existem apenas dois mundos ideológicos: o mundo católico e o mundo comunista.
No mundo comunista, nós temos o progresso da agitação universitária. Esse progresso é um progresso muito curioso, porque a agitação universitária na França foi uma espécie de chama que culminou uma série de agitações anteriores e que parecia propagar essas agitações para o mundo inteiro.
Na França, caiu e se espatifou a agitação universitária e mais ou menos por toda a parte, ela começou a ficar no vácuo, a viver isolada.
Está bem, as notícias mostram que, artificial como ela seja, ela continua a ser mantida e, por toda parte, ela vai crepitando. De que espécie de coisas?
De que um comunismo marcusiano, quer dizer, um comunismo que não visa mais um estado ditatorial arquiorganizado que seria a ditadura do proletariado, mas que visa uma ordem de coisas anárquica, ainda misteriosa, a qual pressupõe uma transformação do homem ainda msiteriosa e que é a grande incógnita do mundo moderno.
Dentro do processo revolucionário o que é que isto significa? Significa o seguinte:
Os teóricos do comunismo sempre afirmaram que o ponto terminal do processo tanto quanto eles podiam ver — porque esse processo é um processo evolutivo que não pára nunca —, mas até onde chegava o horizonte deles era a anarquia, e que a ditadura do proletariado era uma situação intermediária para chegar até à anarquia.
O advento de um comunismo marcusiano e anárquico como força mais nova, mais dinâmica do que o comunismo ditatorial, burocrático, organizado, representa exatamente a aurora do fim do processo devorando a última etapa do processo, devorando a penúltima, como sempre existe nesse processo.
Assim como a república burguesa devorou a monarquia constitucional, assim também o comunismo marcusiano, anárquico, devora o comunismo estatal, o comunismo organizado.
Nós temos portanto o alvorecer de uma era que começa já a se delinear, que é a era apontada como sendo da mocidade e amanhã e que a gente vê que as… [Mais de meia linha ponteada na imagem: será corte?] … uma esperança de impor, por mais artificial que essa era seja.
E então, a gente deve admitir que todos os acontecimentos estão centrados sobre este plano de faze vencer o comunismo anárquico, a proclamação da república universal não como um suepr-estado, mas como uma situação de coisas que é a fraternidade universal, anárquica, nudista, sonhada como o fim do horizonte do mundo revolucionário. Nós vemos que tudo tem que correr para favorecer isto e nós devemos nos perguntar em que medida os acontecimentos estão favorecendo isto. Então os senhores vejam o seguinte, esse paradoxo:
A Rússia das ditaduras, a… eu digo mal, o comunismo das ditaduras, o comunismo do governo russo, o comunismo do governo de Pequim, em escala menos o comunismo de Fidel Casto, em escala … [1/3 de linha pontilhada] …, mas enfim, no plano da política entre as nações está mais forte do que nunca.
Mas, ao mesmo tempo em que ele está mais forte do que nunca na política entre as nações, a gente nota que, dentro do seio deles, como no Ocidente, se elabora uma enorme gestação do comunismo anárquico.
Então, nós temos duas derrotas em perspectiva: o comunismo dos governos derrota o Ocidente; no bojo do comunismo dos governos, como no Ocidente, o comunismo da anarquia derrota o vencedor. E que esses dois fatos vão se desenvolvendo mais ou menos simultaneamente.
Por mais que a Revolução esteja portanto chegando a uma espécie de auge, algumas coisas continuam verdadeira.
Por exemplo, continua verdadeiro que a opinião pública, mais ou menos no mundo inteiro, arde muito menos a favor da Revolução, nas vésperas dela, da IV Revolução, do que nas vésperas da Terceira, ou da Segunda Revolução, ou da Primeira.
Quer dizer, nós notamos uma efervescência pró-protestante e pró-humanista enorme nas vésperas do protestantismo e o humanismo, uma efervescência pró-Revolução Francesa enorme, nas vésperas da Revolução; não há uma efervescência a favor da Revolução, nas vésperas da IV Revolução. Há mais um abobamento, um aturdimento, uma indiferença, uma meia complacência do que uma efervescência.
Em segundo lugar, todas a revoluções anteriores contaram com homens de um dinamismo extraordinário e uma propaganda extraordinariamente bem feita. Até aqui isso não apareceu.
Esta IV Revolução está feita por homúnculos e pode se chamar, por excelência, a Revolução sem graça, ela não tem vida, ela não tem nada do que deu brilho às Revoluções anteriores.
Ninguém pode negar, por exemplo, que a Revolução Protestante comportou uma série de lances dramáticos, altamente pictóricos. O que é que está havendo agora nesta ordem? Nada.
A prova mais provada disso é dentro da Igreja. A Igreja está passando pela maior heresia de todos os tempos e não tem um heresiarca que se apresente, são todos uns nulos do ponto de vista publicitário, da propaganda, etc.
A arte moderna, ela é escandalosa, mas qual é o Michelangelo dela? Qual o Da Vinci dela? Qual o Rafael dela? Nada. A Revolução Comunista marcusiana ardente, que é do Rouget de Lisle para fazer a Marsaillaise dela? Falávamos disso ontem à noite. O que é de todo aquele sopro: Ça ira, Carmagnole e aquele mulherio, aquele penacho que existia antigamente? É uma Revolução que dorme.
(Sr. –: Menos popular.)
Muito menos popular, de um lado. Agora, de outro lado, há uma coisa que é mais difícil de exprimir e eu vou exprimir de um modo um pouco sumário; eu ia até sobre isso fazer uma conferência, mas eu não tenho tido tempo de fazer essa conferência para justificar mais a fundo isto, mas afinal de contas, resumindo o que eu vou dizer. Eu me exprimiria da seguinte maneira:
Quando nós consideramos o mundo de hoje e o mundo revolucionário, quer dizer, essa Revolução anárquica para a qual nós devemos caminhar, nós verificamos que a grande maioria do homens de hoje faz algumas concessões a esse ideal anárquico, mas nós verificamos, ao mesmo tempo que, enquanto eles fizeram algumas concessões, eles continuam profundamente apegados a algo que é o contrário desse ideal anárquico, e que eles estão portanto profundamente contraditórios em si mesmos e divididos em si mesmos; e que essas concessões eles só as fazem porque conseguem fechar os olhos para a idéia de que essas concessões os levarão para uma posição totalmente anárquica.
No momento em que eles forem obrigados a abrir os olhos para o fato de que essa concessão os leva até lá, nesse momento eles entram numa espécie de tonteira, em que tudo é possível, inclusive a conversão de muitos.
Eu não sei se eu me exprimi bem nessa minha afirmação no que consiste.
Então haverá por exemplo, certas pessoas que são contrária à herança, mas que não perceberam que a [supressão da] herança importa na destruição da família, porque se perceberam, sentem um profundo mal-estar e acabam optando pela família e portanto aceitando a herança.
…[trecho inaudível]…
… se elas quisessem ver, porque é uma questão de querer ver, elas parariam e não iriam até lá; mas elas acham que sorrir para um homem não tem nada; no dia seguinte não tem nada conversar com um homem, no outro dia não tem nada sair com um homem, no outro dia não tem nada beijar o homem, no outro dia não tem nada pecar com o homem e no outro dia não tem nada [em] matricular-se como prostituta.
Quer dizer, vão caindo para o abismo de costas, intencionalmente, mas vai de costas, sem querer olhar.
É por esta forma que o mundo moderno vai caminhando para o anarquismo, por mil vias. Mas, a partir do momento em que o progresso da Revolução seja tal que os homens percebam os pontos de convergência e compreendam para onde estão caminhando, a partir desse momento uma boa parte da humanidade ainda terá possibilidade de cristalizar-se e de voltar para uma posição totalmente sadia.
E acontece que cada vez mais a crise atual está se unificando; a crise política está tomando caráter ideológico e a crise ideológica está tomando caráter religioso. Isto é cada vez mais claro.
E cada vez mais a grande pergunta é: a Igreja é a favor da igualdade em tudo, em si mesma, como na ordem civil? Ou Ela é favorável à hierarquia em si mesma e na ordem civil? Cada vez mais a pergunta é esta.
E à medida que for tornando claro para todo mundo que a pergunta é esta, cada vez mais haverá gente que fica anarquista e cada vez mais haverá ultramontanáveis. E aqui nós estamos vendo as possibilidades do “Grand Retour” e do Reino de Maria, dentro desse crepúsculo dessa noite.
E esta é a grande carta, é a grande possibilidade. Não sei se estou exprimindo bem isto ou não.
Sobretudo os argentinos, enfim os de língua espanhola, que estão aqui, [se] quiserem me fazer alguma pergunta, façam, porque eu não tive ocasião de expor diante de todos eles esta idéia e esta idéia é capital para compreender a nossa estratégia.
Eu vejo que é muito tarde da noite e que devem estar cansados também, ainda mais o Ferraro que está chegando de viagem, para engolir esta doutrina toda. Se quiserem, podem ouvir no gravador depois e me fazer perguntas também. Eu de momento pergunto se está claro isto.
(Dr. Cosme Beccar: Dr. Plinio, a pergunta é se a Igreja é igualitária na ordem civil também… [falta palavra] …igualitária na metafísica?)
Em si mesma. Se Ela prega a igualdade como ordem do ser perfeita, a ordem da justiça, a ordem por excelência, a igualdade completa. Se ela prega, portanto, à maneira de corolário, para si, para a ordem temporal, etc., como critério de arte, de cultura e tudo mais. Essa é a grande pergunta [que] vai se destilando cada vez mais nesse sentido.
Agora, não produz o efeito que produz um artigo de caráter puramente doutrinário, porque aqui não tem nenhuma alusão pessoal. Agora, qual é a razão?
É porque há uma espécie de sensibilidade ideológica para este ponto, em que a gente vê que o mundo está entrando na crise mais grave que possa ter, que é uma crise de caráter metafísico, sobre um problema metafísico fundamental, afetando nas suas próprias raízes a religião.
E esse é um desses tipos de crise que fanatizam, porque uma vez que a coisa pegue, quem sentiu a dentada da coisa compreende que, a partir disto, todo o resto é laranjada, e que qualquer outra briga é sem graça, que briga é essa, e entra por aí. Quer dizer o furacão da tormenta metafísica começou a soprar.
(Sr. –: Sempre centrado no problema do igualitarismo?)
Centrado no problema do igualitarismo. Mas, veja bem, no problema do igualitarismo ligado… é no fundo a trilogia da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade.
Eu não quero obedecer a ninguém porque quero ter a liberdade de fazer o que me agrada, sem estar sujeito à ascese. Eu não quero me dominar a mim mesmo.
Liberté é isso.
Égalité: Eu não quero dominar ninguém, nem que ninguém me domine.
Fraternité: apesar disso ninguém se mata.
Isso é o enunciado da Revolução Francesa, e que, no fundo, é um misto de anarquia e igualdade, igualdade e anarquia, mas é uma recusa completa de autodomínio, ou de qualquer forma de domínio.
Bem, isso é metafísico, há uma coisa metafísica aí, é uma própria noção do ser que está posta nisso.
E, se quiserem aprofundar até o fim, a noção do ser é a seguinte: para que isto fosse possível, seria preciso que cada criatura fosse um deus. Vossa Excelência não acha que esta é a raiz: que cada criatura fosse um deus?
E o problema é, em última análise, se não pode haver essa divinização das criaturas, de maneira que sejamos livres, independentes e, por assim dizer espontâneos, se se pudesse dizer, como Deus é.
É claro que isto produz cristalizações, e que a bandeira que afirma o extremo oposto tem que levar atrás de si uma grande parte…
(…)
Essa confusão não seria completa se não fosse com o terreno econômico também, e que nós temos que caminhar para um terremoto econômico que seja paralelo com o terreno ideológico, é claro.
E é evidente que isto é um primeiro estalido no domínio universal do dólar e no próprio conceito da moeda e, portanto, no fundamento último da economia.
Agora veja bem o corolário disto: o mundo da economia que hoje existe é o fruto das universidades que até hoje existiram com sua técnica, com sua organização, com sua ciência, produzindo homens capazes de tomar a produção econômica do mundo, racionalizá-la e montar uma máquina que se poderia chamar a indústria universal e o comércio universal.
A partir do momento em que uma universidade se marcusianise e que tudo isto deixe de ser, e que o Estado deixe de existir, a economia tem que tomar outra … [1/3 de linha em branco] …
Então tem que haver uma espécie de catástrofe da economia burocratizada e de uma sociedade desigual para passar para a economia primária do Estado anárquico, da ordem de coisas anárquicas. E, evidentemente, isto é um primeiro estalido nesse sentido.
Não sei se querem me perguntar mais alguma coisa.
(Sr. Fernando Antúnez: …)
Eu tenho impressão de que uma alma que esteja cheia do espírito contra-revolucionário, quer dizer, cheia de fé católica e cheia dessa posição metafísica que é de algum modo um pressuposto e de outro modo um corolário da fé, que essa alma tem uma proteção de Nossa Senhora que a torna não só indene e inatingível por esse espírito, mas torna-se o terror desse espírito. Ela semeia o ódio contra si, mas é um ódio feito de pânico; e que a uma alma dessas caberá ser nesta coisa, por assistência de Nossa Senhora, o terror do demônio.
Eu creio outra coisa: que o possuir esse espírito assim tem uma qualquer relação com o tal segredo de Maria de São Luís Grignion de Montfort. Eu não sei bem explicitar isso, mas eu acho que sem uma devoção a Nossa Senhora segundo a espiritualidade de São Luís, não é possível ter esse espírito, e sem esse espírito não é possível ter aquela devoção; e que há uma qualquer ação misteriosa de Nossa Senhora sobre a alma, eu diria uma aliança de Nossa Senhora com a alma, por onde a alma é assim sem mérito próprio, é uma bondade d’Ela — claro que todos os católicos de algum modo são chamados para isso —, mas as graças supereminentes para isso Nossa Senhora dá a quem às vezes — e nós conhecemos casos melancolíssimos disso — pisa em cima dessa graça do modo mais horrível —, mas Ela mantém porque quer manter e porque Ela é Rainha, e porque faz parte do reinado de uma Rainha absoluta uma certa arbitrariedade, não está presa a regra nenhuma a não ser ao seu próprio livre alvedrio soberano, e entretanto sapiencial.
E eu creio que os escravos de Nossa Senhora só são aqueles que têm. ao menos no seu germe, esse espírito. Mas eu creio também que, sem esse espírito, não se compreende a devoção a São Luís Grignion de Montfort.
Enfim, para dizer tudo o que eu penso no fundo, tomar essa posição de alma é uma coisa que está para a alma como a virgindade está para o corpo.
Há uma qualquer, se se pudesse dizer, “imaculadez” nisto que só pode vir da Imaculada — Ela é claro que é um canal da graça, Ela não é a fonte da graça, —, mas falando nesses termos, só pode vir da Imaculada e que isto é uma graça inefável, imponderável, daqueles de quem Ela vai se servir para esmagar a cabeça do demônio. Aí são os Apóstolos dos Últimos Tempos de São Luís Grignion de Montfort.
Não sei se isto está claro ou querem me perguntar mais alguma coisa.
(Sr. Poli: …)
Eu enunciaria da maneira seguinte. Para essa posição, a graça no mundo inteiro chama continuamente os homens, porque essa graça equivale à fidelidade à Igreja. Pode, no passado, ela ter sido menos explícita, pode ela ter sido menos rutilante, mas suficiente ela sempre foi, e isto foi sempre o cerne e a substância do espírito católico. Porque afinal de contas, o que é? É no fundo a distinção entre Criador e criatura, no fundo do fundo.
Ora, isto é o b+a = bá da doutrina católica, a humildade em relação a Deus é integrante do amor de Deus, não há amor de Deus sem humildade em relação a Ele, etc., etc., etc. Ora, para esse pressuposto todos são chamados.
Agora, porque acontece que tão pouca gente tem esse espírito? Só uma recusa tão grande, tão geral, só pode ser porque é muito penoso. Porque não se pode compreender uma recusa tão enorme sem que haja na base um sacrifício enorme. Para mim isto é da primeira evidência.
Seja qual for a natureza do sacrifício, contestem ou afirmem a existência desse sacrifício, é evidente, porque sempre que nós recusamos a graça é por um ato de egoísmo, um sacrifício que não queremos fazer. Eu não vou aqui analisar a natureza desse sacrifício, mas é um sacrifício.
Agora, esse sacrifício — nós agora vamos passar para diante —, faz com que mesmo entre os que receberam graças superabundantes para ser assim haja uma aceitação incompleta dessas graças.
Porque eu creio que nenhum de nós aqui, presente uma imagem de Nossa Senhora, ousaria dizer que este é inteiramente o espírito que o Grupo tem, não o espírito que o Grupo deveria ter, mas o espírito que o Grupo tem.
Com maior ou menos distância da parte deste ou daquele, com a dor sem nome de minha parte, a gente deve dizer: o Grupo tem laivos disso, tem uma semente desse espírito, mas eu não posso dizer de cada indivíduo que ele está cheio desse espírito.
Ora, quanta coisa há dentro do Grupo que a toda hora bate à nossa porta para nós termos esse espírito.
Se nós recusamos é porque isto é um sacrifício, importa num sacrifício que nós não queremos fazer.
Qual é esse sacrifício que não tem nome definido, que é tão terrível que, por causa dele, apostatam as nações? Tão terrível que inspira a pior heresia que houve dentro da Igreja? E que leva muita gente que não quis fazer esse sacrifício a desfigurar a Igreja para não romper com Ela, mas não ter que aceitá-la? [Por]que afinal de contas isso é o drama do modernismo. Qual é a natureza desse sacrifício?
Eu digo o seguinte, que é um duplo sdacrifício:
Primeiro sacrifício é que isso implica numa verdadeira imolação do próprio eu…
(…)
… no sentido mau da palavra. O que que é o próprio eu no sentido mau da palavra?
É a satisfação de tudo quanto eu possa querer fazer para meu prazer caprichoso e arbitrário, voltado para mim. É uma concepção de minha vida tendo a mim como centro, como finalidade de tudo, de um deus que se adora a si mesmo e que não quer saber de que está voltado para nada, sou eu.
Agora, o segundo sacrifício — e eu acho que este sacrifício é muito mais terrível do que parece — é sentir-se completamente só sobre a face da terra e mal visto. Porque a pessoa que tem a coragem de tomar essa posição, essa pessoa é só sobre a face da terra e ela é mal vista. Ao mesmo tempo ela atrai sobre si todos os desprezos e todas as invejas, todas as antipatias e, o que é contraditório, todas as indiferenças; é contraditório, mas este é o espírito da contradição, é o espírito do demônio. E ele é no fundo totalmente incompreendido, inclusive dentro da Igreja.
Há uma frase alhures na Escritura, que diz: Alienus factus sum in domo matris meæ,1 eu me fiz como um estrangeiro na casa de minha mãe. Esse é o verdadeiro católico ultramontano, até dentro da Igreja, aos pés do sacrário.
Agora, esse sacrifício é um sacrifício terrível. Sentir a desconfiança, a reticência, a má vontade, quando não a inveja, mesmo daqueles que às vezes nos são mais próximos, e isso faça a gente o que fizer, imole-se como se tenha imolado, porque a gente toma aquela posição que machuca, é carregar uma cruz e morrer nela. O colocar-se numa mentalidade tal que, na vida, nada nos dá prazer, nada nos dá alegria, porque a gente está cheio da tristeza de ver o mundo assim, e a gente pensa como os macabeus: é melhor morrer a viver numa Igreja devastada e sem honra, porque essa é a transposição do dito dos Macabeus. E para um Macabeu pouco importava a ele saber se os rebanhos tinham crescido, que sua saúde tinha melhorado, que isto, que aquilo, para ele o fato é que a Terra Prometida estava devastada e sem honra e recusar qualquer prazer como sendo um prazer indigno no momento em que uma tão grande dor deveria abater-se sobre a alma de cada católico, e ser fiel a esse sofrimento, recusar o prazer.
Eu fingirei que estou alegre para que os outros me consintam em me ter ao lado deles, mas para mim não tem alegria enquanto não cair a Revolução; nada me consola enquanto não cair a Revolução, nada me descansa enquanto não cair a Revolução; para mim a vinda é um protesto contínuo, uma rejeição contínua, uma execração contínua, um desejo contínuo de destruir, porque é uma fidelidade contínua à Igreja que está sendo como que destruída.
Ah! não é fácil tomar essa posição. Não consentir em pensar numa bagatela, em distrair com uma ninharia, não consentir em nada porque é indigno nesta hora.
Como quando, por exemplo, o corpo de minha mãe estava exposto em casa, eu não consentiria em que me contassem que houve uma trombada na Av. Angélica, eu diria:
— Não ultraje este momento que para mim é sagrado, me contando uma banalidade; aqui está o corpo de minha mãe, que foi ferida pelas conseqüências do pecado original, eu choro isso como eu choro a separação dela.
Aqui está o que vale para mim incomparavelmente mais do que minha mãe, que é a Igreja Católica ferida deste jeito. Eu posso fingir que estou tomando interesse numa banalidade ou noutra, para conversar, mas não me interessa, não me importa.
Ah! não é fácil.
Agora mobilize os dedos de sua mão e veja quantas sobram, depois de procurar, quantas almas. A gente conhece que são assim. Se há tão pouco gente assim é porque isso exige um sacrifício horrível, não tem conversa. Porque onde não tem sacrifício, os homens afluem. Aqui está.
Não sei se eu respondi à sua pergunta.
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1 Texto da Vulgata : Ps 68:9 alienus factus sum fratribus meis et peregrinus filiis matris meae.
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