Santo do Dia (Rua Pará) – 27/11/1967 – 2ª feira [SD 253] – p. 6 de 6

Santo do Dia (Rua Pará) — 27/11/1967 — 2ª feira [SD 253]

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São Tomás Morus: venerado pela Igreja por não ter vendido sua alma * Como Chanceler da Inglaterra, de repente se vê entre a perspectiva de renunciar à vida ou aceitar as propostas do rei * A caminho da morte, resiste às pressões e tentativas de induzi-lo à apostasia * Após a ruptura com a família, a perda da criadagem e o desfazimento do lar, é afinal processado * Preso da Torre de Londres, enfrenta interrogatórios sucessivos até o último julgamento * Posição de São Tomás tentando salvar a própria vida: “Não censurei o Rei e estou sendo condenado porque não falei” * Uma vez condenado, pede para falar e expressa sua oposição a Henrique VIII * A cena final da execução * Tentando defende-se, tornou a iniqüidade dos juízes e a perfídia do protestantismo mais patentes * Nossa técnica seria vender a pele caro, não imergir no silêncio, mas morrer matando — Contudo, São Tomás Morus ficou como atestado da infâmia do protestantismo

* São Tomás Morus: venerado pela Igreja por não ter vendido sua alma

Eu fico um pouco na dúvida sobre o que é que eu falo, se é sobre a fita ou sobre o Château d’Amboise. Talvez dar um pequeno aviso sobre a fita e depois falar do Castelo d’Amboise.

Como os senhores sabem, eu fui a um cinema para assistir a fita da vida de São Tomás Morus, chamada bem exatamente não sei o quê…”O homem que não vendeu a sua alma”. Vale a pena fazer uma fita sobre isto porque o que nós vemos em nossos dias é muito raro: encontrar homens que não vendam as suas almas. Ele foi um, e por causa disso é um santo venerado pela Santa Igreja Católica.

* Como Chanceler da Inglaterra, de repente se vê entre a perspectiva de renunciar à vida ou aceitar as propostas do rei

A fita é uma fita bonita, de encenação bonita. Ela é sobretudo uma fita que glorifica muito a vida de São Tomás Morus porque vai mostrando pouco a pouco o caminho de São Tomás Morus para o cadafalso, a partir do momento em que ele era um homem honrado pelo rei, revestido pelo rei das insígnias de Chanceler da Inglaterra, homem de reputação mundial. O rei não tinha reputação como literato, como pensador, o rei não tinha coragem de tomar uma atitude diferente do que pensava São Tomás Morus de medo da censura do mundo inteiro por ele divergir de um tal homem, São Tomás Morus, que aparece no seu bonito castelo, rodeado de toda uma família, de toda uma criadagem, de toda uma dignidade de apresentação, de um homem de uma meia nobreza daquele tempo, mas era uma dignidade muito maior do que de qualquer grosso fabricante de nossos dias. Um homem que se vê, portanto, colocado numa posição invejável.

De repente chega para ele a hora de Deus e ele é colocado entre a perspectiva de renunciar à vida, de ser morto, ou de declarar que aceita o rei da Inglaterra, Henrique VIII, como chefe da igreja inglesa, ele que acabava de romper com o papa e que declarava que o papa não era mais o chefe da igreja inglesa, de aceitar como válido o casamento que Henrique VIII simulara fazer com Ana Bolena, quando ele se separara de Catarina de Aragão, que era sua legítima esposa.

Os senhores sabem que foi por este motivo que a Inglaterra rompeu com o papa, porque Henrique VIII queria romper o casamento legítimo dele com Catarina de Aragão para casar-se — pseudocasar-se — com esta fassura Ana Bolena. Era preciso para isso divorciar-se e o papa não quis dar o divórcio. E depois porque ele era um rei absolutista que queria concentrar em suas mãos todo o poder, e por causa disso ele julgava que deveria se tornar chefe da igreja inglesa e apoderar-se de todos os bens das ordens religiosas, do direito de nomear e de demitir bispos, etc., e de todo poderio que isto conferia a um monarca, ainda mais naquele tempo.

* A caminho da morte, resiste às pressões e tentativas de induzi-lo à apostasia

Então nós vemos São Tomás Morus que percebe que está a caminho da morte e que, entretanto, vai, um por um, enfrentando todos os obstáculos.

O rei vai visitá-lo para seduzi-lo. Ele se nega a seguir o que o rei queria. O rei chega a ter uma altercação vivíssima com ele, ele não volta atrás. Depois então um cardeal asqueroso, Cardeal Wolsey, chama-o e procura induzi-lo à apostasia. Ele que soube resistir à ação do rei, resiste assim à pressão da Igreja. Depois o Duque de Norfolk, seu íntimo amigo, um dos mais altos pares da Inglaterra, procura por sua vez induzi-lo à apostasia e dá como argumento que toda a nobreza da Inglaterra tinha apostatado e que era literalmente insuportável que só ele, um mero filho de advogado…

(…)

e ele então rompe com o Duque de Norfolk. Ele tem uma altercação física, o Duque de Norfolk chega a atirá-lo no chão.

Depois ele sente a ruptura da plebe com ele. Ele sai do palácio do rei — um lindíssimo palácio — que dava escadaria para o Tâmisa e tenta tomar uma canoa que o leve para sua propriedade. Estão ali vários barqueiros, mais ou menos… como assim uma espécie de táxis aquáticos que conversam com umas tochas acesas em cada um de seus barcos. Ele então grita e faz um sinal para que venha o barqueiro. O barqueiro chamado, sabendo da posição que ele assumira, apaga a tocha dentro do rio.

Quer dizer, a Inglaterra inteira não estava com ele. As três classes sociais aderiam ao rei para se colocarem contra este homem, que sozinho, absolutamente sozinho, dizia que não era lícito ao rei mudar a forma de governo da Igreja e que não era lícito ao rei contrair um casamento quando ele já era casado, porque o casamento instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo é insolúvel.

Depois dessa tríplice ruptura, ele não tem outro remédio, e ele, Chanceler da Inglaterra, ele ainda era Chanceler, vai andando pela margem do rio e vai vendo até que ponto, a pé, sozinho, até amanhecer, ele chega de madrugada na casa dele.

* Após a ruptura com a família, a perda da criadagem e o desfazimento do lar, é afinal processado

Na casa dele vem a mulher, rompe com ele. Vem a filha, vem o genro, rompe com ele. Ele, então, reúne a criadagem e declara que ele não é mais nada e ele não pode mais ter tantos criados e os criados então se retiram.

Os senhores sabem que estou degradado, estou mal-visto pelo rei, perdi meu cargo, etc.

Diz a criadagem:

Ó, nós ficaremos com o senhor.

Bom, a questão é que eu não posso mais ter criados a não ser se eu pagasse menos, e assim mesmo exigindo mais serviço.

Ninguém quer segui-lo. Quer dizer, é seu lar que vai se desfazendo. Todo mundo em volta dele o vai abandonando.

É uma coisa parecida com os sucessivos abandonos de que Nosso Senhor Jesus Cristo foi objeto na vida dele. Christianus alter Christus.

Então ele fica completamente só e afinal em certo momento ele é processado por um ente abjeto, muito parecido com aquele juiz Lutero que nós encontrávamos no Giordano outrora e que faz um interrogatório muito inteligente e muito bem feito. Este ente vai querendo encurralá-lo, um doméstico dele o trai, um criado que ele diz ao criado:

Eu sentirei muita falta de você.

O criado comenta para a noiva:

Imagine você … [inaudível]… sentir falta em mim. O que é que há em mim para sentir falta em mim? Que bobagem, não há razão para ele gostar de mim. Agora imagine essa: mais trabalho e menos dinheiro, se é uma coisa que se propõe a alguém. Vamos embora! — e sai também.

* Preso da Torre de Londres, enfrenta interrogatórios sucessivos até o último julgamento

Então ele vai para a Torre de Londres, inteiramente só. Na Torre de Londres ele é preso, numa prisão que apesar de ser um cárcere, ainda os autores do filme souberam arranjar uma tal disposição de espaços, que é um cárcere bonito na sua hediondez carcerária.

Na prisão ele está inteiramente só e ele começa então a enfrentar os que queriam matar. Interrogatórios sucessivos até o último julgamento.

É bonito que no último julgamento ele é conduzido ao Parlamento Inglês, os Lordes reunidos juntamente com a Câmara dos Comuns, e sob a presidência de três eclesiásticos. Ele é conduzido a este tribunal e faz tudo para salvar a sua própria vida.

* Posição de São Tomás tentando salvar a própria vida: “Não censurei o Rei e estou sendo condenado porque não falei”

A posição que ele toma é a seguinte, ele diz:

Eu nunca disse nada a ninguém a respeito do que penso do casamento do rei. Nunca disse nada a ninguém a respeito do que penso do ato do rei sobre a Igreja da Inglaterra. De maneira que se os senhores me condenarem, os senhores me condenam porque eu não falei, porque eu fiquei quieto e não porque eu falei alguma coisa. Então, assumam esta responsabilidade.

Estava nas entrelinhas: “Assumam esta responsabilidade perante a Europa e perante o mundo de condenar Tomás Morus, não porque ele falou, mas porque ele nada falou. Porque um homem não abriu a sua boca para censurar o rei, porque um homem não abriu a sua boca para protestar contra o que fora feito. Matem esse homem, mas então digam que o mataram por causa disso”. No fundo é a posição da defesa dele.

E a gente vê toda a espécie de argúcias do Parlamento para o condenar, do acusador, do tal Cromwel, antepassado do infame Oliver Cromwel, que haveria de decapitar um descendente de Henrique VIII. Então ele vê toda a má-vontade do Parlamento, a má-fé daquela gente que o condena à morte.

* Uma vez condenado, pede para falar e expressa sua oposição a Henrique VIII

Quando ele diz:

Foi condenado à morte,

Ele diz:

Bem, no tempo que eu advogava o condenado à morte tinha alguma coisa para dizer.

Quando ele diz isto, está todo o Parlamento se levantando para ir embora. Todos param, sentam-se, ele diz:

Eu aliviarei a minha alma.

E ali diz tudo: que o rei não era o chefe da Igreja da Inglaterra, que a Ana Bolena não era rainha, que aquele casamento não era um casamento indissolúvel e sustenta tudo. Ele acaba com uma posição que se ele disse, se São Tomás Morus disse, não sei se isto é histórico, com toda a veneração que se deve a um santo — eu peço a ele nesse momento que tenha pena de mim e reze por mim e por todos nós que estamos aqui — não é da maior argúcia. Ele diz:

Eu estou sendo morto, não por causa da Igreja da Inglaterra, mas por causa do casamento!

E não é verdade. O que estava no fundo era a questão da Igreja da Inglaterra. Se ele se fizesse protestante, ele não era morto. Então o Parlamento todo protesta e vem então o ato final: ele é morto.

* A cena final da execução

Aí há um misto de sensacionalismo americano e de tato inglês. Ele se ajoelha, com a fisionomia desolada, mas firme. Ele se ajoelha, um carrasco impressionante com uma espécie de capuz, perto do qual o de Felipe II seria um gorro de alegria, de tal maneira é trágico o capuz desse homem, ele se ajoelha, o carrasco se ajoelha diante dele e pede perdão por matá-lo. Ele dá uma gratificação ao carrasco e depois, então, ele começa a rezar. Ele começa a rezar, o carrasco tira uma espécie de machado enorme e vibra o golpe. E quando o público sensacionalista está a espera de sangue derramado e de pequenos arrepios de solteirona, vem, pum!… preto na tela e não se vê mais nada. A fita está acabada.

* Tentando defende-se, tornou a iniqüidade dos juízes e a perfídia do protestantismo mais patentes

Se São Tomás Morus de fato — eu nunca tive tempo de ler a vida dele — procedeu como ele procedeu, ele procedeu como nós deveríamos proceder? Nossa vocação é igual à dele? Nós deveríamos ter calado como ele calou? Ou nós deveríamos ter dado um brado que partisse do Oriente e chegasse até o Ocidente e nós deveríamos ter dito: “Não, a Inglaterra precisa, e eu protesto”, etc.?

A julgar pelas condições que a fita pinta, um brado mais explícito que ele desse não adiantava nada, e nesse caso não havia razão para ele dar esse brado. Então, o mais razoável seria ele tentar defender a vida dele. Seria mais heróico ele de tal maneira evitar a palma do martírio? É uma coisa que me pergunto.

Eu não conheço bem a parte moral neste ponto e até que ponto a pessoa pode ou não pode se entregar ao martírio, mas foi da glória de Nossa Senhora que ele evitasse de tal maneira o martírio, porque a iniqüidade dos juízes dele se tornou muito mais patente. De maneira que a perfídia do protestantismo ficou mais em evidência com a injustiça praticada contra ele, com toda a defesa que ele fez, do que se ele não tivesse falado, se ele tivesse protestado. De maneira que, em última análise, parece que ele fez o que ele deveria fazer.

Ele deveria ter fugido da Inglaterra a tempo, uma vez que ele se via perdido, ele que tinha uma reputação internacional, para de lá de fora conduzir uma luta ideológica contra o rei e pôr o seu formidável talento e seu enorme prestígio a serviço da Igreja Católica contra o anglicanismo em terra firme?

Humanamente falando, a mim me parece que sim, mas é possível que Deus tenha tido com ele outros desígnios, e que tenha querido que esta nota de sangue ilustrasse a abominável ruptura da Inglaterra com a Igreja, de maneira que por esta forma fosse revelada a cogitação péssima de muitos corações heréticos. De maneira que não se sabe se houve ali um sopro especial da graça.

* Nossa técnica seria vender a pele caro, não imergir no silêncio, mas morrer matando — Contudo, São Tomás Morus ficou como atestado da infâmia do protestantismo

De nossa técnica seria vender a pele caro, seria não imergir no silêncio, mas morrer matando. De nossa técnica seria ir para o continente e do continente dar um brado que fosse de um extremo ao outro do horizonte para achincalhar e para liquidar com ele, com o rei, e com o protestantismo.

Mas, como eu digo, às vezes o martírio diz muito mais do que isso, o martírio do grande Tomás Morus. É possível que ele tivesse feito algum mal ao adversário no continente, mas provavelmente hoje só os eruditos o conheceriam, enquanto pelos séculos dos séculos Tomás Morus fica como atestado da infâmia do protestantismo. O atestado dessa infâmia, a gente vê bem, neste ponto, e para mim o ponto é frisante, o atestado dessa infâmia a gente vê nesse ponto: a fita é inglesa, a fita é de origem protestante, é uma fita que deixa o protestantismo abaixo de zero. Aliás, a fita fica a mais antiecumênica que possa haver.

Os senhores dirão: “Dr. Plinio, que esplêndido, então nós vamos assistir a essa fita, não é verdade?”.

Eu farei como São Tomás Morus: eu não direi nem sim, nem não, mas direi um meio sim e um meio não. Eu direi: hélas, esta fita como está lá eu não aconselho. Tem algumas cenas que positivamente não são boas e que foram metidas lá, os senhores sabem porquê. É excitação sensual cinematográfica. Mas eu vou me empenhar para que a fita possa ser passada aqui, tirados dois ou três trechos, e aí eu terei o prazer de assistir com os senhores. E até de fazer duas coisas: assistir e reassistir. Primeiro os senhores assistem e vêem a fita, depois nós reassistimos e eu vou fazendo, depois que se estiver estabelecido a distância psíquica, Ambientes, Costumes e Civilizações.

Resta que os senhores me ajudem para, em tempo oportuno, conseguir esta fita para ela ser passada aqui.

Com isso já fica tarde demais para nós tratarmos do Castelo d’Amboise e fica relegado, portanto, para amanhã.

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