Santo do Dia – 24/5/66 . 6 de 6

Santo do Dia — 24/5/66 — 3ª feira

Nome anterior do arquivo: 660524-3Santo_do_Dia_3__b.doc

Leitura de São Bernardo sobre o “Fiat” de Nossa Senhora * A promessa de um redentor que deveria ser um homem-Deus para resgatar os pecados feitos a um Ser infinito * O estado em que se encontrava a humanidade antes da vinda de Nosso Senhor; na terra e no limbo * O destino da humanidade inteira dependeu da resposta afirmativa de uma donzela * Resposta à seguinte objeção: “como a aceitação de Nossa Senhora não envolveu nenhuma luta, nenhuma dor, então não merece nossa admiração” * Em geral as pessoas têm megalice de alguma coisa que não possuem. “O indivíduo muito raramente é mega da grandeza que lhe é própria”. * Pedir a Nossa Senhora a aceitação desinteressada, humilde e vigorosa da grandeza de nossa vocação

muito bem escolhido a propósito, amanhã sendo a festa da Anunciação, foi escolhido muito a propósito esse trecho de São Bernardo a respeito do fiat de Nossa Senhora.

* Leitura de São Bernardo sobre o “Fiat” de Nossa Senhora

Pois que ouvistes a palavra da alegria, que a nós também seja dado ouvir a Bem-Aventurada resposta para que…

Ouvistes a maravilha, queres cumprir e acreditastes na maneira como vai se cumprir. Vereis que dareis à luz a um Filho, não do homem mas do Espírito Santo. O Anjo esperava vossa resposta.

É tempo que ele volte para Deus que o enviou. Nós esperamos também, ó Nossa Soberana, a palavra de misericórdia, nós, miseráveis sobre quem pesa uma sentença de condenação. Eis que se vos oferece o preço de nossa salvação, aceitai sermos logo livres.

Somos todos obra do Verbo Eterno de Deus e eis que devemos morrer. Mas dizei uma palavra e seremos chamados à vida. É a súplica que vos dirige, ó Virgem Piedosa, o triste Adão; a súplica de Abraão, de Davi; é a prece constante de todos os santos patriarcas nossos pais, que também habitam a região coberta pelas sombras da morte.

É a espera de todo o universo prostrado a Vossos pés. Da resposta que cairá de Vossos lábios depende, com efeito, a consolação dos infelizes, o resgate dos cativos, a libertação dos condenados, a salvação de todos os filhos de Adão.

O Nossa Soberana, dizei a palavra que esperam na terra, o inferno e os céus! O Rei e Senhor de todas as coisas espera, Ele também o vosso consentimento que Ele colocou como condição à salvação do mundo.

Até aqui vosso silêncio o agradou mas agora vossa palavra lhe será ainda mais agradável. Se lhe fizerdes ouvir vossa voz, ele vos concederá ver nossa salvação. E não é essa a salvação que procurais, que pedis com gemidos, suspiros, orando noite e dia?

Então, é a Vós que a salvação foi prometida, ou devemos esperar outra?

Sim, sois vós a mulher prometida, esperada, desejada. Respondei depressa ao Anjo do Senhor.

Por que tardar, por que temer? Que vossa humildade se faça audaciosa. Se o pudor obriga-vos ao silêncio, o zelo vos obriga mais ainda a falar. Eis que o Desejado de todas as nações bate às vossas portas.

Levantai-vos, então, correi, abri. Levantai-vos pela fé, correi pela devoção, abri pela aceitação.

* A promessa de um redentor que deveria ser um homem-Deus para resgatar os pecados feitos a um Ser infinito

Eu tenho impressão de que esse trecho, muito bonito, pede uma tradução em linguagem contemporânea.

Em síntese, a situação dentro da qual São Bernardo se coloca é a seguinte: como os senhores sabem bem, a humanidade foi perdida e a possibilidade dos homens se salvarem foi destruída pelo pecado original.

E em conseqüência desse fato, todos os homens que nascessem se perderiam e iriam para o inferno.

Agora, para resgatar o pecado original e para permitir aos homens de irem aos céus, foi prometido o Verbo Encarnado, foi prometida a Encarnação do Verbo, foi prometido um Redentor. E esse Redentor, para redimir, de fato, a humanidade deveria ser Deus e homem ao mesmo tempo.

Ele deveria ser homem porque o resgate dos pecados de um homem, dos homens, deveria ser feito por um homem. Ele deveria ser Deus para que esse resgate tivesse um valor proporcionado à ofensa. Porque a ofensa feita a Deus é, de algum modo,infinita, porque Deus é infinito.

De maneira que se não houvesse um resgate à altura da ofensa, não haveria resgate nenhum. E esse resgate teria que ser feito, portanto, pelo homem-Deus.

Era o Verbo Encarnado que poderia resgatar, pelo seu Sangue precioso, o pecado cometido pelos homens. Mas para que Deus se fizesse homem era preciso que ele tomasse carne humana. E para que ele tomasse carne humana era preciso que ele nascesse de Nossa Senhora, nascesse de alguém.

Esse alguém, insondavelmente perfeito, santo, amado, que foi escolhido para que dela nascesse a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi Nossa Senhora.

* O estado em que se encontrava a humanidade antes da vinda de Nosso Senhor; na terra e no limbo

Então, qual era a situação?

O limbo, que os antigos chamavam o inferno — não porque o identificassem com o inferno de Satanás, mas porque era a região inferior onde estavam as almas das pessoas que tinham morrido — o limbo cheio de milhões e milhões de almas, desde Adão até a vinda de Nosso Senhor, postas na tristeza, postas na separação de Deus, esperando o momento em que vinha uma redenção que eles sabiam que viria, embora não soubessem como viria.

Depois, a terra cheia de pecadores, cheia de miseráveis, cheia de pessoas caminhando para o inferno e com alguns justos, que também viviam naquele tempo, mas que não podiam salvar-se sem que o Verbo se fizesse carne.

Pois bem, nessa situação de uma expectativa geral, nesse momento então em que os Anjos do Céu, as almas do que eles chamavam de inferno e que era o limbo, e os homens vivos, sabendo ou não sabendo, esperavam a Encarnação do Verbo.

Até nos pagãos se esperava, para aquela ocasião, a vinda de um Redentor. Bem, então todos estavam dependendo dessa condição: que a mulher escolhida resolvesse dizer “sim”. E por isso o Anjo foi até ela e deu aquela mensagem extraordinária que os senhores conhecem.

Ela, então, teve que dar o “sim” àquela mensagem. E Ela respondeu com aquelas palavras maravilhosas: “Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a Sua palavra. Quer dizer, ela fez a aceitação”.

* O destino da humanidade inteira dependeu da resposta afirmativa de uma donzela

Então, a grandeza dessa Anunciação, a grandeza da missão de São Gabriel, a grandeza da Anunciação, veio desse fato: que pendeu, um momento, o destino da humanidade inteira, da resposta de uma donzela. E essa resposta foi que abriu caminho para o Salvador que estava, por assim dizer, batendo às portas; abriu caminho para a salvação; abriu caminho para as graças de Deus de tal maneira é verdade que Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças e que tudo quanto nos vem de Deus vem por meio d’Ela. É que o Verbo Encarnado quis depender da aceitação d’Ela, para vir.

Eu estou compreendendo bem o que muitos dos senhores estarão pensando. Os senhores estarão pensando, naturalmente, no seguinte: os senhores terão em mente a Anunciação do Fra Angélico; terão em mente Nossa Senhora recolhida num jardim de uma candura maravilhosa, com pequenas flores vermelhas postas em fila num gramado verde esplêndido, numa casinha muito recolhida, com uma coluna terminada em abóbodas meios claustrais; Ela, toda inundada de um bem estar interior proveniente da ação da graça, e que responde “sim” ao Arcanjo. O Arcanjo, diante d’Ela, numa posição semi-genuflexa, abaixando o corpo, mas levantando o braço, para mostrar que ele é menos, mas a mensagem que ele trazia era mais. E Ela respondendo: “Faça-se em mim segundo a vossa palavra”.

E os senhores dirão: tudo isso é belíssimo, tudo isso é recolhidíssimo, mas tudo isso não custa sacrifício. Eu não vejo que isso tenha custado dor, eu não vejo que isso tenha custado luta. E, afinal de contas, nessa terra de luta, nós como que instintivamente procuramos a luta quando queremos nos empolgar com algo. E aquilo que é feito sem luta, nós não temos a impressão de que tenha sido uma coisa tão memorável.

Ora, nós sabemos que Nossa Senhora foi concebida sem pecado original; que nEla não havia, portanto, nada de desregrado. NEla, portanto, não havia luta, não havia oposição dos contrários. Aquilo para Ela foi simples, foi uma aquiescência dada num esplêndido momento de alegria, de consolação, de bem estar interior. Então, não podemos ver que luta dentro disso possa ter havido.

Como esse modo de julgar é errado! E quanto é importante o ensinamento que daí provém para nós!

Em geral, acontece — eu não vou discutir aqui o princípio, que não é verdadeiro — de que só as coisas realizadas com a dor merecem, de fato, nossa admiração. Esse princípio não é verdadeiro. Mas, ainda assim é interessante nós penetrarmos no que representou para o Imaculado Coração de Maria esse momento de adesão e de aceitação.

* Resposta à seguinte objeção: “como a aceitação de Nossa Senhora não envolveu nenhuma luta, nenhuma dor, então não merece nossa admiração”

É verdade que Ela era concebida sem pecado original, é verdade que Ela não tinha paixões desordenadas. Mas não é uma paixão desordenada o homem prever a dor de uma missão que ele tem diante de si; não é uma paixão desordenada o homem ter grande dificuldade em dar sua adesão a esta dor que vê diante de si. E a prova exuberante disso é que o Verbo Encarnado, no horto das Oliveiras, quando ele começou a considerar mais de perto a Paixão que ia cair sobre Ele como uma procela de dores tremenda, nunca antes nem depois igualada, o Verbo Encarnado — também nos diz o Evangelho — começou a sentir-se triste, sentir tédio, uma espécie de aridez e de pavor diante do que vinha. E Ele chegou a suar sangue, Ele chorou no horto das Oliveiras, tal era a recusa da sua natureza retíssima e elevadíssima a tudo aquilo que representasse uma dor e uma destruição da sua existência terrena.

Ora, como é possível, como é até admissível que Nossa Senhora tenha tido, no momento da Anunciação, um clarão e um relampejo de tudo aquilo que o Filho d’Ela deveria sofrer e do que Ela mesma deveria sofrer.

Nossa Senhora certamente conhecia maravilhosamente bem as Escrituras. E as Escrituras falavam, de um modo inequívoco, para quem tivesse verdadeiramente fé, de todo o sofrimento do Redentor.

Por exemplo, aquele verso de Isaías: “Eu sou um verme, não sou um homem; eu sou o opróbrio dos homens e o escárnio do povo inteiro “, e tantas outras coisas, tantos outros salmos falando do misterioso tormento desse Redentor.

Ela tem que ter compreendido perfeitamente que Ela se ligava a um destino que era de dor imensa e que aquela dor Ela ia tomar consigo. Não quero dizer que seja certo que Ela soubesse da crucifixão. Talvez soubesse. Mas, afinal de contas, um lampejo de alguma coisa, para quem conhecia as Escrituras, Ela necessariamente devia ter. E esta dor Ela aceitou. Essa dor Ela quis na paz e na singeleza de sua alma.

* Em geral as pessoas têm megalice de alguma coisa que não possuem. “O indivíduo muito raramente é mega da grandeza que lhe é própria”.

Há mais ainda: já um triste fenômeno chamado megalice e esse triste fenômeno, — que eu tenho tido várias vezes ocasião de observar — esse triste fenômeno me leva a ver o seguinte: o indivíduo muito raramente é mega da grandeza que lhe é própria. Ele, em geral, é mega de uma coisa que ele não tem.

Quando ele tem, por exemplo, qualquer coisa, digamos, uma grande inteligência, ele não é mega da inteligência; ele será mega de saber abrir direito tampinha de garrafa Caxambú.

O Pelé eu garanto aos senhores que tem uma megalice de parecer instruído, ou qualquer coisa desse gênero, porque os pés são ágeis; é muito possível que haja vários professores — gente de Sorbonne, da Academia Francesa — e que teria um gosto enorme de ser futebolista aplaudido por assembléias inteiras.

O mundo é feito assim. Muito raras vezes a gente quer a sua própria e verdadeira grandeza; e a gente quer uma grandeza boba, postiça, que não é a grandeza que compete a nós. Isso se dá até na nossa vocação.

Eu não conheci membro do Catolicismo mega com a própria vocação. Eu mentiria se dissesse que não conheci com tentações de megalice em outros pontos. Mas nunca mega de sua própria vocação.

Dizer: “bom, eu tenho uma vocação grandiosa, agora eu ficar mega”, não tem perigo. Vai ser mega de qualquer outra bobagem. Vai ter megalice de bobagem, porque megalice de bobagem eu já vi aos montes. Mas aos montes!

Mas ser mega de sua própria vocação, não. Quer dizer, não imaginem os senhores que Nossa Senhora recebeu isso: agora, chegou minha vez; me afirmei aqui, lá vem o Anjo. Está compreendendo? Oh, la, la, la.

Como isso é diferente da humildade de Nossa Senhora, da serenidade de Nossa Senhora, da perfeição moral omnímoda de Nossa Senhora; e como aqui há, dentro dos refolhos disso, a idéia verdadeira seguinte: quando a gente é chamado a uma grandeza por vocação, quase não dá tentação — eu digo quase, porque eu não posso garantir; mas eu não vi ainda tentação de fazer megalice com aquilo de ficar ambicioso; a tentação vem sempre de uma pista colateral.

* Pedir a Nossa Senhora a aceitação desinteressada, humilde e vigorosa da grandeza de nossa vocação

Então, o que devemos pedir a Nossa Senhora nessa data? Na data de amanhã; há tantas intenções para pedir. Eu sugiro uma.

A intenção que eu sugiro é essa: que nós peçamos a Nossa Senhora a aceitação desinteressada, humilde, mas vigorosa da grandeza da nossa vocação, que foi dada por Ela, com todos os sacrifícios aí inerentes, ou daí decorrentes, que nós aceitemos a grandeza dessa vocação, e que nós saibamos dizer como Ela: nós somos os escravos d’Ela, que se faça em nós segundo a palavra d’Ela; com todas as grandezas e com todos os sacrifícios.

Há uma coisa que é paradoxal em Nossa Senhora — e eu termino logo — há uma coisa que é paradoxal em Nossa Senhora, mas as almas enormes têm algo de paradoxal para os olhos das almas comuns triviais: Nossa Senhora, eu lhes garanto que tinha, ao mesmo tempo toda a pré-ciência do que lhe ia acontecer e, ao mesmo tempo, uma tranqüilidade, uma serenidade, uma normalidade, um estado de alma como de quem não conhece o que vai acontecer, como quem está vivendo a vida de todos os dias, afável, amável, integrada nos acontecimentos quotidianos no que eles têm de melhor, sem que essa perspectiva fosse de modo tal a dar a sua vida um estilo que não era o estilo de inteira normalidade corrente, de inteira humildade, eu ousaria dizer de inteira pequenez, que é intuitivo que Nossa Senhora tinha em sua vida também.

Aí há um sublime paradoxo e esse sublime paradoxo nos indica quantas maravilhas insondáveis há na alma da Nossa Senhora. Que Nossa Senhora nos leve para o céu para durante a eternidade inteira considerar essas maravilhas.

E eu lhes garanto que será, abaixo de Deus, o maior ornamento do céu e o espelho por onde nós — exceto no que diz respeito à visão beatífica — melhor poderemos ver a Deus Nosso Senhor.

*_*_*_*_*