Reunião Normal (Sede da Martim Francisco) – 9/8/1964 – Domingo – p. 14 de 14

Reunião Normal (Sede da Martim Francisco) — 9/8/1964 — Domingo

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A teoria do sonho no homem

* Brasil de 1964: diante do perigo comunista um tal pavor que muitos se aliam conosco; passado o susto levantam‑se todos os complexos de severidade contra nós

A gente observando bem a posição das pessoas […inaudível] que o anticomunismo delas é um anticomunismo meio parecido, digamos, para usar uma imagem inadequada e prosaica, como uma espécie de pêlo encravado, que sai e volta de novo e forma uma bolha. Porque eles são anticomunistas e a prova de que são anticomunistas é o susto que tiveram quando o Jango andou pintando o caneco por aqui.

Ainda agora eu vinha de casa com o Muratori e em [?] O Paulo[?] e estávamos comentando a diferença da calma de uma noite de hoje, por exemplo, com janelas abertas, tudo parado, tudo tranqüilo, com aqueles dias de apreensão do tempo do Jango em que por cada janela a gente tinha a impressão de entrar um comunista, atrás de cada planta a gente tinha a impressão ver reluzir um fuzil. Quer dizer, toda a sirene que passava, a gente se perguntava se não era a polícia que ia atacar qualquer coisa.

Quer dizer, era um ambiente desse. Eles ficaram naquela ocasião verdadeiramente apavorados. Agora a natureza do pavor deles é tal que apresenta isso de curioso: que na hora do comunismo eles ficam com tanto medo que eles até se resignam a se aliar conosco para combater o comunismo, mas passado o perigo comunista eles tem todos os complexos de severidade conosco e todos os complexos de indulgência com os comunistas.

De maneira que, para um comunista eles perdoam tudo e para nós eles não perdoam nada, e a gente diria que aproximando‑se do comunismo se revela neles o anticomunismo, distanciando o comunismo há uma espécie de pró‑comunismo que se acende dentro deles e contraditório com o anticomunismo que eles experimentaram em outras ocasiões. E que, portanto, esse sentimento de anticomunismo pro‑comunismo, […inaudível] então esse sentimento comunismo‑anticomunismo deveria por nós ser analisado bem exatamente em seus fundamentos para nós compreendermos o que ele é, e então o que eu vou tratar agora a noite, é exatamente uma exposição doutrinária tendendo a explicar esse estado de espírito.

* O fundo de quadro do estado de espírito contraditório da opinião pública, é o desejo absoluto de felicidade da alma humana

A mim me parece que esse estado de espírito em última análise se explica da seguinte maneira: há para o homem e para toda a criatura humana, há uma sensação por mais feliz que a criatura seja, por mais contente que ela esteja com sua vida, por mais sinárquica, por mais poética, por mais melódica, enfim, por mais variada que ela for, há nela uma sensação naturalmente de que essa vida que ela leva não é a vida que sua natureza pediria. E que sua natureza pediria uma vida, mas, notem bem, eu não estou falando de vida eterna, porque a necessidade de vida eterna é uma coisa completamente diferente, a sua natureza pediria uma vida terrena diferente da vida que leva.

Eu estou dizendo que é uma coisa completamente diferente porque corresponde a duas tendências diferentes de zonas de personalidades diferentes do homem, uma zona de personalidade é aquela por onde nós compreendemos que tudo é transitório, que tudo é precário, que tudo é falacioso e nós temos uma espécie de sede de eternidade, de verdade absoluta, sede de perenidade que nos leva a compreender que esta vida com os elementos que ela dispõem, não podem nos satisfazer e que nós precisamos levar uma vida numa espécie de densidade metafísica, numa espécie de ambiente do ser completamente diferente desta vida que nós levamos aqui.

* A utopia é propriamente imaginar como seria uma vida ideal, puramente sensorial e passada eternamente nessa terra

Inteiramente diferente em sua raiz e em sua natureza, e em sua natureza é utopia. A utopia procede da idéia de que esta vida aqui com que ela oferece de precário, com que ela oferece de transitório, do que ela oferece de puramente sensorial, de organizadinha, seria deliciosa.

Então, eu querer viver esta vida, não querer saber de outra vida, o querer viver esta vida e imaginar como seria essa vida como ela fosse ideal é passar uma vida na eternidade vivendo na terra. […inaudível].

e que não há nem um pouco a contemplação de um Deus, nem há nenhum pouco apetite de nós estarmos voltados para um Ser infinito ao qual devemos adorar […inaudível] que ora este hora, aquele sempre tem um fim, a criatura humana […inaudível] imaginando como ela seria ideal para ela ser vivida a vida inteira, e portanto uma nítida fuga do céu.

E um claro desejo de viver aqui na terra uma determinada vida. Desejo tão grande que para a pessoa dominada por esse desejo, o céu parece até uma utopia. É mais ou menos como aparecer para um homem que está por exemplo, passeando, vendo coisas bonitas, coisas brilhantes, se distraindo alguém chegar para ele [e dizer]: vem cá, você quer assistir uma aula de metafísica em cima naquela saleta que tem um professor barbado que está ensinando metafísica? Se ele não disser um desaforo, ele dá um gemido.

Como me arrancar de todas essas delícias, o que eu precisava era o contrário se você me quer satisfazer, não é me levar daqui para a aula de metafísica, mas é me tirar daqui e me levar para dentro de um automóvel bonito e me dizer que é meu, então eu vou guiar no meio dos outros”, aquilo faz parte do grande fandango geral.

Quer dizer, a apetência do meu ser não sobe para uma outra ordem do ser, a apetência do meu ser se satisfaz inteiramente nesta ordem do ser e gosta de imaginar como é que seria essa ordem, se ela fosse perfeita para eu me sentir completamente feliz. Quer dizer, é um outro diapasão e orientação inteiramente diversa.

A utopia de que eu falo é propriamente esta utopia, é a imaginação de como seria uma vida dentro desse diapasão contingente terreno, perpetuamente feliz em que a pessoa sentisse inteiramente alegre, satisfeita e não precisasse nada como é que seria. E então o imaginar isso é no fundo uma vaga fímbria de esperança de que de algum modo isso seja realizado.

* Na metáfora do bilhete da loteria, nosso Pai e Fundador faz uma magistral descrição da psicologia do utopista com suas “antenas”

É mais ou menos como todo sujeito que compra um bilhete de loteria e que sabe que existe contra ele não sei quantos centenas de milhares de possibilidades contra uma. Mas ele põe o bilhete no bolso e com o calorzinho do bilhete ele se põe a sonhar.

Talvez [se alguém] fosse dizer para ele: “mas você está fazendo sonho bobo, é sumamente improvável que esse bilhete de loteria saia sorteado”. A resposta que ele tem no fundo da cabeça é: logicamente falando sim, mas nem toda a lógica pega. Esse é o raciocínio um pouco quadrado que esse tipo assim está me maltratando com as tenazes de uma lógica que deixa escapar um pouco da realidade. No fundo existem certas possibilidades que eu sinto no meu pressentimento e que é como que uma antena, que me dá um pouco de esperança a mais do que ele diz; “eu não ouso falar a ele de pressentimento que ele vai estourar de gargalhada, hay qui lo hay, então um pouco de pressentimento que me faz esperar aquela coisa” e dai o calorzinho e o gostoso do bilhete de loteria, no seu ofício eu tenho a impressão que os bilhetes de loteria circulariam muito pouco.

Assim também é uma espécie de fímbria de idéia de que a coisa é utópica e não pode ser realizada, mas que quem sabe lá, é tão gostoso pensar nela, é tão gostoso imaginá‑la, senti‑la, querê‑la que quem sabe lá isto é verdade.

* A utopia idealizada no século XVI, como a do “bon sauvage” é muito mais fina que a propagada pela do mito norte‑americano

Eu me lembro que fiz uma conferência inaugural de uma das nossas semanas de estudos lá no Palácio Mauá em que eu falava um pouquinho da utopia norte‑americana. A utopia norte‑americana tem algo disso: é organizar para todo um país sob o rótulo de bem estar, os bispos mesmos constituem conferência nacional católica do bem estar, sob o aspecto bem estar, com a palavra bem estar, que é uma das tais palavras mágicas que o Adolphinho sugeria outro dia que fizessem alguns estudos analisando. Uma dessas é o bem estar inglês, aqui ela toma todas as fórmulas de implicações, etc., a palavra bem estar é essa utopia de uma perfeita felicidade nas contingências desse mundo, utopia realizada pelos meios norte‑americanos.

Eu me lembro até que eu falei de um documento egípcio, recém exumado, que era uma imperatriz egípcia, não me lembro mais, que externava um ideal de vida que era inteiramente a la norte‑americana, tinha permanente, tinha unas, tinha adornos, tinha jogos, tinha… Enfim, todo ideal de uma norte‑americana rica estava expresso nessa imperatriz egípcia.

Mas, isso é uma espécie de sonho humano de matéria plástica, porque não corresponde a verdadeira utopia, nem ao verdadeiro sonho humano, isto é para a utopia humana, uma espécie de pisale de mal menor (?). O verdadeiro desejo que o homem tem foi expresso, creio eu, com muito mais fidelidade e com muito mais exatidão pelos utopistas do século XVI, e se traduzido no mito do bon sauvage que teve uma expressão tão profunda […inaudível].

A idéia é a gente imaginar uma natureza vegetal paradisíaca em que o homem pode andar sem primeiro ter os pernilongos que tem aqui no Brasil, mas sem ter cobra, mutuca, mosquito, toda esta espécie de coisa que assalta a gente, pisando sobre grama perpetuamente fofa, com frutos deliciosos que se oferecem à boca da gente, gotejando sucos que a gente come quando quer.

Com bichos completamente obedientes a gente, mas que a gente não mata, que a gente não quer ver a efusão de sangue, sofrimento na natureza animal por demais próximo da nossa, com rios caudalosos, mas que tem maravilhosamente construídas árvores que caíram, que formam pontes agradáveis, a gente atravessa de um lado para outro.

* Na espontaneidade absoluta da perfeita utopia não é necessário trambolhos como relógio, dentaduras ou qualquer técnica

Com uma possibilidade de não precisar de coisa alguma e portanto de se afastar de qualquer forma de civilização que faria que isso desse no seguinte: por exemplo, forma de civilização: relógio. Um homem de nosso estilo que não tem relógio se reputa um miserável, porque não pode saber quais são as horas. Então, ideal norte‑americano, para cada homem um relógio.

Eles até poderiam fazer a campanha do relógio para dotar todo o norte‑americano de um relógio e de um suplemento de que maneira nunca vê um americano “desenrelojoado”. Mas esse mito de que eu falo é um mito muito mais fino, o homem não precisa de relógio, pela mesma razão pela qual, por exemplo ele não precisa de dentadura, quer dizer, ele tem um senso maravilhoso por onde ele sabe que horas são; e, nem é muito importante saber que hora são, porque a hora é uma hora interna dele, a hora dele é a vontade dele de fazer as coisas.

Ele percorrer, portanto o relógio para ele é servidão, não só uma servidão mas, mas é uma coisa que supre uma carência da natureza dele. A natureza dele tem empecilhos, sem instrumentos, sem técnicas de nenhuma espécie, a natureza dele tem na sua maravilhosa espontaneidade tudo aquilo de que ela precisa e ela não precisa portanto de nada disso para ser feliz.

Não tem casa também. Por que ter casa? Casa é preciso para onde chove, onde faz sol, onde o corpo humano é sensível a cansaço, mas não é preciso casas; o sujeito poeticamente chega a noitinha, ele se vai tomando de um langor, ele se encosta junto a uma moita de plantas floridas, deita a cabeça junto a um galho qualquer que está posto lá e dorme suavemente o sono de uma criança, no berço durante todo o tempo que ele quer. […inaudível] um equipamento industrial ao lado disso? A cama, a mola, a casa, o cobertor, o travesseiro, tudo isso é para entes doentios que precisam dessas coisas.

Tudo isso é muleta, é dentadura, tudo isso são os equipamentos dos deficientes. Na realidade o sujeito não precisa nada disso. É gostoso langorosamente deitar e nos primeiros clarões da aurora [ouvir] um passarinho [que o] desperta, ele não se lava porque ele nunca se suja e se põem a andar. E uma fruta lhe cai na boca e ele continua a perambular na sua plena, notem bem isso, numa espécie de paz interna completa em que ele não tem dúvida, não tem excitação, não tem conflito, não tem luta externa e em que portanto a regra do ser dele é a maior espontaneidade, ele faz absolutamente aquilo que lhe agrada. Ele não tem programa, ele não tem nada, porque tudo isso é um cerceamento da espontaneidade.

* A espontaneidade absoluta é a própria substância do sonho utópico; análise de ambientes renascentistas utopistas a partir de objetos que nosso Fundador analisou quando menino

E a felicidade consiste nesse estado interior paradisíaco, que é uma espécie de paraíso interior, a se conjugar, a se completar com o paraíso exterior, essa espécie de interior paradisíaco onde o homem tem uma felicidade interna deliciosa e completa da qual a felicidade externa é apenas um corolário.

E uma tal harmonia que ele nunca precisa se refrear, ele nunca precisa se examinar, ele nunca precisa pensar no que está pensando, é só deixar desabrochar a espontaneidade do seu ser e ele tem toda espécie de maravilhas dentro de si. E o centro então dessa utopia, vista por essa forma, o centro dessa utopia é a idéia da espontaneidade absoluta, do homem que não precisa impor‑se a si próprio nem um freio e nem uma lei, não precisa ter mestre portanto, não precisa ter senhor, não precisa ter ascese, não precisa ter economia, não precisa ter trabalho, a única coisa que ele precisa ter, é absolutamente fazer o que ele acha agradável sem outra forma de impedimento.

Quer dizer, a espontaneidade plena acaba sendo o centro deste sonho e é o que torna para nós verdadeiramente apetecível.

Bem, a gente vê que a Renascença sonhou com isso de mil modos. Eu fui educado em casa, havia na sala de jantar um prato que dava bem essa cena da Renascença em que me fazia pensar muito. Era um prato, eram dois pratos, era um prato de bordadura dourada e dentro tinha um conjunto de pêssegos e de uvas. Mas pêssegos e uvas paradisíacos, os pêssegos era de um vermelho e de um dourado que a gente tinha a impressão que deitando o dente, aquilo tudo era de uma substância inefavelmente deliciosa e ia escorrendo sucos que eram perfumes, vitaminas.

Eram coisas maravilhosas, as uvas pareciam mais essas uvas […inaudível] do que uva de uva, a gente tinha a impressão que era uns cristais deliciosos para comer. Eu sempre muito sensível aos aspectos gastronômicos da estética do universo, eu fazia longas e mal humoradas meditações a respeito do contraste entre as uvas e os pêssegos que tinha no prato, no meu prato, e aquelas uvas e pêssegos na ordem ideal que estavam colocados naquele prato.

Logo em cima havia outro prato de parede e representava uma cena mitológica, era um jovem todo nu completamente, o quadro era muito pouco edificante, completamente nu, com uma guirlanda de folhas e andando diáfano por meio de um prado mas que era a relva das relvas, os pés deles se punham lá, a gente tinha a impressão que cada passo era uma carícia para os pés deles, a idéia cafajeste do cansaço, e sobretudo da espinho que entra, ou do pedregulho, jamais, jamais aquilo é perfeito.

E, pegando naturalmente cada lado uma ninfa numa […inaudível] por meio daquela natureza edênica mas que era uma coisa que não acabava mais, e depois espontâneos, naturais, completamente dégagé, fazendo o que queriam. E me punha na cabeça que se eles andassem mais um passo, eles encontrariam a vinha e o pessegueiro que produziram aqueles pêssegos, aquela uva e que aquilo era uma outra ordem de coisas que eu sabia que era imaginária, mas para a qual eu tinha arroubos violentíssimos de querer que fosse precisamente aquele jeito.

* Correlação entre o delírio do mando e o sonho utópico do megalomaníaco

Eu nunca filosofei sobre o caso, a luta pela vida e a fräulein alemã perto de mim me impediam de filosofar sobre o caso, de maneira que só me lembrei desses pratos quando eu andei construindo idéias a respeito do que eu estou dizendo aqui.

Bem, se os senhores tomam o sonho de qualquer homem em qualquer condição, no fundo os senhores encontram nele esta idéia da espontaneidade. Não há coisa que alicie mais o homem do que ser espontâneo, o poder fazer sem pensar em mais nada tudo absolutamente quanto quer, e o não ter nada que o coíba, e o não ter nada que o cerceie de maneira que ele dê livre trato a sua imaginação, e a sua fantasia e realize a vida de fantasia.

Em última análise, por que, por exemplo, os homens gostam tanto de mandar? Porque quando eles mandam e mandam com espírito de fé, acabam por constituir uma situação que eles ficam acima de tudo e impõem aos outros as suas espontaneidades, dá um capricho, déspota oriental, dá um capricho e manda fazer tal coisa, depois chama um palhaço e diz “eu vou te contar uma graça”, ele mesmo sabe que é uma graça sem graça, conta para o palhaço e ele dobra de rir, “engraçado nada há, como o meu senhor em matéria de espírito”.

Está bom, então eu lhe contarei outra”, e faz o homem rir uma tarde inteira se o homem não der risada mata, porque quando esses instintos, quando decepcionados, são ferozes. Um outro: “eu vou te contar um feito admirável que eu fiz”, “mas, mais um feito admirável e eu que cria que a linha dos feitos admiráveis tivessem esgotado?”. “Ora, você não sabe nada”, vai contando mentira — uma outra coisa que o sujeito também sabe que não é verdade, ele não fez.

Ou então um outro que emenda dúvidas, quem não está habituado ao mega e fica meio na dúvida. Ato de fé pleno, elogio desabotoado, está compreendendo, o homem é capaz de passar a vida inteira pegando gente dobrando e fazendo adorar a vontade num cortejo de fâmulos de odaliscas, ele é capaz de passar a vida inteira porque para transbordar a sua espontaneidade.

Ser inteiramente o que ele quereria ser, ser senão outra coisa, senão isso e isso dentro de uma ordem humana em que não se desse nenhuma dificuldade externa e problema externo, isto é o último termo, a nota mais aguda daquele mito da terra de que eu acabei de falar. A nota mais aguda desse mito da terra vem a ser o mito da espontaneidade, quer dizer, é dessa espontaneidade que se trata.

* O mito da espontaneidade enchendo a Europa de campings e esvaziando os hotéis apalaciados

Esse mito da espontaneidade explica uma certa ressonância que uma porção de palavras, uma porção de fórmulas tem nos ouvidos de muita gente. Por exemplo, fulano passou o tempo numa natureza tropical maravilhosa, estava longe de qualquer forma de civilização, ele se encontrava no meio do mato, numa vegetação tropical, com pássaros maravilhosos, comendo frutas estupendas, era propriamente a vida da natureza, no que ela tem de mais esplêndido.

Há uns tantos homens que se regalam, mas nós que conhecemos a natureza tropical, sabemos bem como é, mas quem não conhece a natureza tropical se arregala os olhos com isso. Vida de praia, praia erma, sem apartamentos, sem construções em que o sujeito por assim dizer brinca na natureza marítima a manhã inteira, rola pela areia, emerge dentro d’água, come uns camarões bem frescos que ele mesmo pescou que são feitos alí, improvisadamente, num contato simples com a natureza sem pretensões.

Imagine que alguém descrevesse isso e outro dissesse: “olhe, eu gosto muito mais do bife de ouro”. Havia um levante geral contra aquele sujeito que tinha falado a favor do bife de ouro, embora até muitos gostem do bife de ouro, a simpatia vai para outro ideal. Como!? Bife de ouro, não. É pedante, pretensão; aquele que é um homem simples despretensioso que sabe gozar as delícias propriamente da natureza.

A febre do camping está se generalizando hoje em dia, que é uma das coisas mais idiotas possíveis. Na Europa cheia de hotéis ótimos, de vias de comunicações maravilhosos, o sujeito vinha já levando uma casinha atrás, lava, arranja, arma uma barraca, depois deita embaixo exausto. Com umas latarias, depois levanta e entra naquela casinha e toca de novo.

As revistas européias estão publicando caricaturas pitorescas dos hotéis palace com garções de casaca, parados na porta, olhando a fila do camping que passa. É isso mesmo que está se passando. Esse desejo do camping corresponde exatamente a essa ilusão de uma vida inteiramente natural, na qual a natureza é espontânea também, não sofre violência, e nossas espontaneidades casam com a espontaneidade da natureza.

Então, a cultura, a civilização, a técnica, o progresso, etc., são males porque são meios de que o homem sofredor se serviu para impor à natureza torta, uma ordem de coisas que conviesse para ele. Mas tudo isso é fantasma. O gostoso seria essa ordem bem espontânea. Na natureza espontânea e sem jardinagem e sem casas e sem nada feito pelo homem, o homem espontâneo, sem educação, sem ascese, sem nada que tivesse coibido e se espraiando em toda a sua normalidade em toda a sua alegria, em toda a sua euforia.

* A misteriosa inveja que a natureza humana tem dos bichos se explica a partir dessa sede profundíssima de realização da utopia

É por isso que misteriosamente falando, os homens em geral, ou por vezes, [tem] inveja dos bichos. Ainda hoje senti isso. Eu estava almoçando e conversando com mamãe, mas com a cabeça fritando de preocupações, conversando com ela uma conversinha que se pode ter com uma senhora de quase noventa anos, mas a cabeça fritando de preocupações, de repente eu olho para a janela e vejo atravessando em diagonal daquele horrível prédio de apartamento que se construiu em frente à nossa casa, rumo à Praça Buenos Aires, uma borboleta amarela que parecia dourada na luz do sol, num itinerário feito de capricho, a gente via que ela tinha uma vaga meta de ir para a Praça Buenos Aires por causa daquelas árvores, mas que o caminho dela era feito de voluptuosidades, ventinhos que batiam, depois ela achava um gostinho de fazer assim, depois ela fazia assim.

Sabe, que a mim batizado, católico, apostólico, romano, mas frito de preocupações, mas sabe qual a idéia que me veio? Que gostoso em vez de ser eu, ser aquela borboleta. Ora é impossível que as pessoas não tenham tido sensações assim mexendo com certos bichos. Há uma famosa meditação de Lutero a respeito dos porcos, em que ele gostaria de ser porco, em que ele explicava o gostoso de ser porco. Esse gostoso de ser porco, no fundo era a espontaneidade.

Em primeiro lugar é o seguinte: se é para criar má fama, cria duma vez, se é para aparecer sujo, já revestido de todas as porcarias e não tem mais nada que perder e fazer daquilo uma fórmula de felicidade: rola, come, grune, come mais, rola mais, numa matéria mole, viscosa, em que o calor do corpo dele torna tépida. O resto está feito, esta compreendendo?

Borboleta ou porco, o homem fica com uma espécie de sedução. Me tem chamado muito a atenção outras reações, por exemplo, gente diante de aquário. Aquele aquário de Santos, por exemplo, as pessoas passam no aquário, [e] por efeito da água, não sei bem, ou porque puseram vidro de aumento lá no aquário, que o aquário funciona como um vidro de aumento e o peixe parece enorme, e não… são peixes pequenos.

Eu vejo as pessoas que olham, o peixe fica lá se mexendo, e o sujeito que não entende nada de peixe, olhando o peixe e a gente se pergunta qual é o mais estúpido: o peixe ou quem está olhando. Mas essa estupidez tem o seu fundo, a gente vê que o sujeito gostaria de se despojar de todas as contingências dele e entrar num aquário e gozar daquela espécie de situação, que eu ousaria de chamar de psíquica do peixe. Deita as barbatanas e lá vai de repente come um bichinho que está posto para ele, o resto do tempo é evolucionar espontaneamente na maciez das águas.

E eu garanto que havia muita gente que dissesse: ali tem um reservatório para você, se você entrar lá dentro, você não vai mais ter problemas e vai gozar da felicidade desse peixe. É ou não é verdade que por experiência, milhares entrariam? Milhões e depois não sei quantos ficariam. E perfeitamente satisfeito começa a dar uma forma de […inaudível] que nem olha para conhecidos que estão do lado de fora. Não, acabou, caso encerrado.

(Fedeli: […inaudível])

E depois, considerando uma superioridade misteriosa e intrínseca, neste ser é assim.

* Em última análise o sonho de querer transpor a felicidade animal para a vida humana, envolve uma posição religiosa que fundamenta a idolatria

Eu não vou multiplicar os exemplos porque eles são bem evidentes, um exemplo curioso é quando a gente vê nessas praças públicas onde tem pombinhos. O sujeito dá comida para o pombo e depois quer agarrar o pombo, na hora de a gente agarrar o pombo, o pombo foge e [a pessoa] fica complexadíssima e quer estraçalhar o pombo.

No fundo é uma inveja de não poder voar como pombo. Se o sujeito pudesse bater as asas e ir lá para torre da Catedral e depois […inaudível] era o próprio vero (?) que pilhas de pessoas gostariam e que em termos humanos se traduz nesse mito nesse outro.

Quer dizer, é uma transposição em última análise da felicidade animal para o estilo de vida do homem e esse paraíso terreno de que falava há pouco. Bom, nós sentimos toda apetência dele quando consideramos a tendência para levar vida animal, então nós compreendemos bem como é possante esse mito da própria natureza humana.

Eu acho muito importante para completar essas idéias, com um dado que eu não disse que se deve acrescentar aqui que esse pecado envolve uma posição fundamentalmente anti‑religiosa, tão perigosa, que ele até foi fundamento da idolatria. Nós daqui a pouco vamos ver algo a respeito disso.

Agora, eu afirmo o seguinte: o que esse mito tem de mais tremendo, o Fedeli disse que a Sagrada Escritura explica, tem a impressão que explica, eu também tenho uma certa idéia que explica: que o homem dividido, frito, agitado, indeciso, considerando a perfeita felicidade do animal na natureza, o homem fica com uma espécie de idéia da presença de algum princípio misterioso que torna o animal, apesar das aparências, superior a ele e então daí meu…

E agora essa propensão do homem para vida do animal não é outra coisa senão a propensão para a espontaneidade, numa natureza que também é espontânea que dá todo auxilio em que tudo é espontâneo. Aqui está o fundo do negócio.

* A nostalgia subconsciente que a natureza humana tem de uma felicidade paradisíaca, é o móvel mais profundo da formação dos mitos utópicos

O que esse mito tem de tremendo, é que ele é mito perfeitamente explicável. Porque assim, como por exemplo, um sujeito que tenha nascida numa cadeira de rodas, que desde pequeno tenha usado cadeiras de rodas tem vontade de andar, para ele aquilo é um mito porque ele nunca poderá andar, mas a natureza dele pede que ele ande e portanto é natural que ele sonhe em andar.

Assim também é nossa natureza, foi criado para uma espécie de paraíso desses embora sem a espontaneidade total com que nós sonhamos, mas com muito de espontâneo, com muito de livre. Quer dizer, nossa natureza pede para ser assim e pede para viver num cenário natural assim.

De maneira que quase inevitavelmente nós tendemos para isso e é a nostalgia subconsciente que a natureza humana tem dessa ordem de perfeição animal. Assim um cego que sente de não ver, assim como um homem que anda de cadeiras de rodas sente não poder andar com suas próprias pernas, assim também por análoga razão, o homem concebido em pecado original sonha com o paraíso.

* Dois movimentos absolutamente opostos dentro do homem: aspiração de uma realidade que se identifica com um Ser superior a quem adora, e o sonho vulgar do gozo terreno puramente natural

Então, nós dizemos que a natureza humana é tão espontaneamente [feita] para isso e que tende de espontâneo para mais dessa espécie de espontaneidade e autodeterminação do paraíso, mas que seria uma autodeterminação completa onde ela nunca tivesse absolutamente nada que a coarctasse. Quer dizer, está na natureza humana e o homem tende para isso. E portanto nós vamos ver que aqui há no homem dois movimentos opostos: um é o movimento metafísico pelo qual o homem procura a outra realidade de coisas e procura um ser superior com o qual por assim dizer ele se identifica e em cuja adoração, em cuja admiração ele faz consistir a sua felicidade.

Isso cria uma espécie de aspiração profunda e de caráter filosófico. Outra aspiração banal, vulgar, do sujeito que não quer saber de ser superior nenhum, que quer saber de desenrolar o seu próprio ser como uma bobina e gozar dessa felicidade na qual não está presente um Deus e ninguém superior a ele mas está presente apenas ele e que essa felicidade ele quer gozar, porque é boa e agradável e está acabado.

Esse segundo sonho fica como uma espécie de aspiração que mesmo num homem que se governa muito a qualquer momento pode explodir e pode nascer e é propriamente o sonho do homem, o sonho terreno do homem, da vida terrena transformada num paraíso. E esse sonho da vida terrena transformada num paraíso por sua vez acaba tendo uma espécie de formulação extremamente lisongeira com a idéia de que a humanidade está numa evolução contínua.

E que nessa evolução contínua haverá um dia talvez, em que alguém no gênero humano consiga uma felicidade desse tipo e a vida terrena apresente essa felicidade sem sombra para os homens, de uma ordem de coisas em que o homem domine inteiramente a natureza, viva completamente espontâneo, não esteja mais sujeito nem a doença, nem a morte, nem nada, pela vitória da ciência, tenha uma fartura completa e não tenha mais leis, nem reis, nem senhores, nem sacerdotes que lhe falem de seres mais possantes que mandam neles, de seres mais possantes aos quais se devam consagrar, que lhes falem de leis, que lhes falem de governos, que lhes falem de regulamento, que lhe falem de qualquer coisa.

* A grande força propagandística do comunismo é a falaciosa promessa que ele faz de realizar a utopia da espontaneidade; os dois polos de opinião diante do sonho utópico

Porque a espontaneidade inteira será o termo dessa evolução ou ao menos o termo mais próximo para o qual essa evolução tende. Esse ideal é o ideal que o comunismo apregoa e que está na última evolução do comunismo. Quer dizer, o comunismo é uma seita que promete ao homem esse […inaudível] no terreno pode realizar‑se, que a ciência pode conseguir isso.

E se encontra na expressão dos nossos íntimos, dos nossos domésticos, encontra uma repercussão verdadeiramente deliciosa, em relação a esse sonho eles tem duas espécies de simpatia. Colocado diante dessa possibilidade eles acham que o homem que deseja isso é um homem generoso, inteligente, concorda com ele, unânime com ele no sentido literal da palavra, tem uma só alma com ele.

Que deseja coisas que ele também deseja e ele fica com uma vaga esperança de que algum dia isso se realize. Se não fica com essa vaga esperança, pelo menos as suas simpatias vão todas para essa ordem de coisas. E eles ficam com uma espécie de idéia de que quanto mais uma ordem de coisas se aproximar disso, tanto mais é simpática e quanto mais se distanciar disso, é muito mais antipática.

Daí então a queda progressiva ao longo da revolução de tudo quanto é convencional, de tudo quanto contraria a espontaneidade, de tudo quanto é de lei, de tudo quanto é hierarquia, de quanto é autoridade, quanto é religião, de um Deus grave, tremendo, transcendente. Por quê? Todas essas são formas e figuras que contrariam esse mito e esse abandonar todo legado do passado, nós vamos tendendo pelo menos a torná‑lo a ordem de coisa atual o mais possível parecida com isso.

* A pedagogia essencialmente antiesponteinista de outrora e a pseudo‑educação freudiana hodierna

Por exemplo, tomem a educação antigamente, a educação antigamente era eminentemente anti‑espontânea, era feita para criar reflexos em que a pessoa fazia um mundo de coisas razoáveis, mas não espontâneas e obrigar ao homem ao não espontâneo era circunstância da educação. Eu estava ouvindo falar outro dia de uma menina que esta sendo educada freudianamente, por uma psiquiatra, o pai dela é psiquiatra, é a educação da espontaneidade.

Quando a menina não gosta de qualquer coisa, ela chora, é uma menina muito pequena naturalmente. Ela, por exemplo, quer tocar essa campainha, o pai diz não pode, ela eh… eh…, chora um pouquinho e para. Ela se liberou de um acesso que houve dentro dela e como ela conseguiu exprimir aquilo, isso não ter complexo, não tendo complexo para ela acabou, resultado toca a vida para a frente.

Quer beber essa água. Eu digo, não pode porque essa está bebida. Não pode beber água bebida. Ela quer… quer… depois sentia, passou aquilo e o desejo de ter o que não podia com a expansão ficou eliminado.

O resultado é uma técnica por onde a pessoa é espontânea. Dada a expansão da primeira contrariedade, acaba querendo o que der e acaba entrando dentro da linha do espontâneo, é uma espécie de espontaneidade completa. Quer dizer, a cortesia, a educação, etc., vão todas tendendo para o espontâneo. O nudismo de tão assinalado progresso é também outra forma de espontâneo. Contaram‑me outro dia que o pai do Marcos, um homem muito espontâneo, estava com essas roupas inomináveis do domingo que se usam hoje, e entrou o Marcos de colarinho e de gravata. O pai disse isso para ele: tire essa coleira.

Agora, depois o argumento, o argumento que é curioso: “você não nasceu assim.” O argumento que é curioso, a ordem natural do sujeito é a ordem que ele nasceu. O Marcos deu essa resposta: se a gente tirar […inaudível]. Mas vejam o que está por detrás da cabeça desse homem que milhões de homens que pensam assim. Isso é exemplo do que está na cabeça de milhões, é natural, o filho da natureza, que se veste como a natureza. Pega esses play boys, eles não cortam esse cabelo porque o próprio do cabelo é crescer, depois o jeito deles, vamos dizer assim, eles macaqueiam tremendamente o espontâneo. Aquele jeito dele, eu vejo no meu barbeiro, freqüentado por play boys do bairro de Sebastião Pereira. E por causa disso que elas [essas pessoas] sentem o comunismo à distância, como muito simpático.

* O homem picado pelo mito utópico não quer o comunismo imediatamente no estilo de capitalismo de Estado, mas quem deu seu coração a esse sonho no fundo se deu ao comunismo

Donde é que vem então a antipatia delas pelo fato do comunismo, enfim, quando o comunismo tenta tomar conta do poder? É porque o comunismo que está próximo delas é o comunismo da atual etapa, é o comunismo do capitalismo de Estado, com campo de concentração, com pobreza, que os comunistas afirmam que é o meio para chegar à última etapa, é uma etapa próxima muito desagradável. O estado atual em que eles vivem é muito mais parecido com a espontaneidade do que um mágico dominado pelos comunistas.

De maneira que eles querem isso e não querem o comunismo na sua etapa imediata, mas se houvesse por exemplo, um partido politico que lhes permitisse de realizar esse sonho espontâneo completo, sem passar pelo capitalismo de Estado, eles achando que conseguiriam, ninguém os segurariam, eles o fariam mesmo. São uns retrógrados, uns retardados, ficariam encabulados pelo lado de cá, porque eles fariam o mesmo.

No fundo, portanto está nessa espécie de sonho do homem, que é um sonho terreno da felicidade terrena e do bem estar terreno, sonho terreno que corresponde a utopia de Tomás Morus, algo de Campanella, corresponde a idéia dom bon sauvage vivendo feliz na floresta, corresponde a algumas elucubrações de Jean Jacques Rousseau, corresponde às tendências do estilo norte‑americano de vida, enquanto sendo uma espécie de triunfo transitório da espontaneidade parcial a caminho da espontaneidade absoluta, corresponde a psicologia freudista e todas as escolas psicológicas modernas e dando o seu coração a isto, realmente se deram ao comunismo, quase todos os homens de hoje.

Isso significa, portanto, aquela espécie de pontinha de comunismo, mas pontinha imensamente dinâmica que todos tem, que os senhores já pensaram nisso com certeza, a grande maioria do clero tem também, a grande maioria do clero está imersa em tendências comunistas dessa natureza.

Quer dizer, eles todos tem a mesma idéia e concebem o céu dessa maneira. Olhem as pinturas do céu, as pinturas do céu representam um céu que é desse gênero: nuvens, uma coisa azul, não se vê que ele esteja adorando a Deus, ele tem uma cara livre de quem não está adorando nada e olhando para nada, está gozando a sua própria felicidade imanente dentro dele e passeando e vendo uma estrelinha para a qual ele diz a Deus. Mais adiante passa em diagonal um antigo conhecido alegre, é uma espécie de camping no etéreo indefinido e sem técnica. Uma vagabundagem perpétua espontânea.

* A concepção utópica do “céu” Heresia Branca é encharcada de utopismo

Quer dizer, até o céu é concebido dessa forma. Se eles quiserem o contrário, os senhores imaginem o céu como de fato é: quer dizer, presidido por Deus, a heresia‑branca é encharcada disso, é a religião vista assim, os senhores imaginem por exemplo, o céu como ele é um Deus certamente adorado mais de tal maneira sério e transcendente que os mais altos espíritos velam a face diante de Deus e não conseguem vê‑Lo face a face, cujo poder domina tudo e invade tudo, em torno do qual todos giram e que depois tem categorias e categorias e categorias de seres que são uns em relação aos outros, como que Deus, para compreender aquele Deus inacessível, supremo, que paira por cima de tudo e tudo banhado numa feeria, numa sublimidade portanto, numa idéia também do dever da coisa que se passa como deve ser, da coisa que passa segundo uma certa ordem e nada com os caprichos da espontaneidade.

Tudo isso fazendo literalmente justa a expressão tão freqüente antigamente, a corte celeste. O céu está cheio de querubins como uma corte está cheia de duques ou e marqueses e que tem o protocolo, tem a seriedade, tem a linha dos nobres na sua corte. Existe uma meditação mais capaz de tirar a vontade de ir para o céu de nossas famílias do que essa meditação? Agora, fazem para eles uma meditação que o céu de delícias… uma me‑ (?) a la Manfredo Leite que é a realização disto no céu, desse sonho da espontaneidade no céu.

Aqui está o porquê eles na hora de se implantar o totalitarismo de estado tem medo, na hora de sonhar com o comunismo [que] eles gostam, na hora de falar de céu como é que eles não gostam e na hora de falar do céu heresia‑branca eles gostam.

* “Nós queremos a regra, a lei, a ordem, a hierarquia, o sublime; a democracia cristã com aquela carinha lambida quer a realização da utopia: daí a implicância e a trombada conosco!”

O que é que é a democracia cristã? A democracia cristã é uma escola teológica que apresenta o céu desse jeito e promete trabalhar para com que a terra pareça quanto possível com esse céu e daí aquela carinha faceta lambida e alegre de democrata cristão, a coisa é essa.

E aqui está o ponto de implicância com nós, é que nós queremos o contrário, nós queremos a regra, a ordem a lei, a hierarquia, o sublime; e eles querem o contrário e daí vem então a fricção, a trombada. No fundo, no fundo, o colarinho e o paletó atuam nesses pontos como símbolos tremendos, porque realmente em face do descamizado, no inverno cheios de malhas de lã, mais colocadas umas sobre as outras é uma ponta de uma coisa marrom debaixo de uma coisa verde, uma gola enorme assim, uma golinha bordadinha branquinha, cujo próprio é não ter razão de ser, porque se tiver uma razão de ser não serve para nada.

Bem, vê aparecer por exemplo um sujeito, um rapaz que se apresente, vamos dizer […inaudível] o sujeito fica nodosíssimo, porque é a afirmação [na] indumentária de um estilo de pessoa, de vida que choca o que tem de mais sensível que é o espontaneísmo.

Eu creio que no conteúdo da revolução e para compreensão da R‑CR esse é um elemento muito importante. Mas é um elemento muito importante também para compreender [que] a descarga sucessivas de antipatias que nós despertamos, não são outra coisa senão alguns aspectos do mito anárquico da espontaneidade contrariado por alguma coisa nossa.

* O “português básico de trezentas palavras” e os conceitos de caridade e simpatia na religiosidade sentimental do esponteinista

Eu dou um exemplo, a linguagem, por exemplo. Para falar de uma linguagem que está sendo falada aqui no momento no auditório, não é uma linguagem corrente, a linguagem corrente supõe um esforço muito menor para constituir um vocabulário e supõe um esforço muito menor para conjugar o vocabulário, de maneira que com o tal português básico, trezentos conceitos o sujeito acaba‑se desembrulhando e dizendo o que ele pensa.

Pelo menos ele pensa apenas o que ele diz, é uma coisa irreversível, ele se mete na forma de trezentas palavras e acabou‑se. É claro que ouvindo‑me falar nesse momento, essa pessoa fica ao mesmo tempo com uma espécie de raiva e vontade de ter um vocabulário amplo, mas uma espécie de raiva e a raiva donde é? Esse sujeito é orgulhoso, porque é orgulhoso? O que é que ele pensa? o que é que é? A gente aperta mais um pouco é o seguinte: raiva de ver alguém que fez um esforço para conseguir algo que custou sacrifício à espontaneidade porque a espontaneidade não pode ser coarctada.

Caridade o que é? Caridade é deixar todas as espontaneidades e especialmente as más se desabotoarem e de desenrolarem, isto é o sujeito caridoso.

Simpático o que é que é? É um sujeito espontâneo que é afim com a espontaneidade de todo o mundo, o ligação[?], tudo azul, chapa, papai, tudo isso é, funciona nesse gênero. Quer dizer, cada vez mais o mito da espontaneidade vai nos embotando. Um pai picando as cóleras que se levantam contra nós. Do lado do livro da sabedoria, o que tem é o seguinte: é que fazendo a qualificação religiosa disso, não é propriamente dizer que isso só pode conduzir a idolatria porque pode mais […inaudível] é uma idolatria porque o homem espera uma espécie de solução interna dos seus problemas.

* A filosofia de vida do mito do espontaneismo supõe uma “redenção” que não vem de Deus e no fundo é a mais radical forma de ateísmo

Então uma espécie de redenção, ele espera de si mesmo e das coisas externas e não de Deus. Esse sistema é fundamentalmente ateu, isso que é ateísmo. P pobre do ateu do século passado, os senhores não conheceram, mas eu conheci, em camisa engomada, aqui alto, engomado aqui, um tio avó meu usava, uma couraça de língua engomada aqui, punhos engomados, hirto assim, bastante postiço, moustache e com uma linguagem elegante, inflamada procurando demonstrar que Deus não existe.

Esse sujeito tem um entusiasmo quase religioso na afirmação que Deus não existe e no seu subconsciente ele ainda é meio religioso, ele tem a religião do ateísmo.

Propriamente ateu é o sujeito que se põe nesse sonho horizontal, nessa utopia, esse que é o ateu. É o ganhar sem deus, nem é o que nega, é o sem Deus.

Segundo a minha opinião, quando a revolução começou, ela começou à maneira de uma escravização que já tinha o começo do cetro de fumaça em um ponto das almas dos homens, e que isso foi alargando, alargando, isso eu poderia expor depois, há conforme dentro disso, mas eu poderia explicar isso.

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